Por que amamos Clarice Lispector

Por que amamos Clarice Lispector
'Amamos Clarice porque ela fala do que realmente importa: da nossa capacidade de amar' (Foto: Acervo Paulo Gurgel Valente)

 

(Acervo Nélida Piñon/Jorge Bispo)

NÉLIDA PIÑON – 83 anos, escritora, uma das
amigas mais constantes de Clarice

 

É inevitável amar Clarice. O mistério emana da sua obra e do seu ser. É um legado que se alastra pelo mundo e arrasta consigo abrasivos sentimentos. Ela provoca a admiração que se alia ao orgulho, à gratidão e ao zelo pela sua memória literária, cuja genealogia não pode ser afetada. De minha parte, mesmo tendo ela já partido, eu a mantenho viva. Cuido dos intensos 18 anos da amizade que nos uniu e fez-nos confiantes no humano. Penso nela e a vejo no Leme, à beira da praia, colhendo a brisa do mar. Ou quando nos reuníamos para validar a amizade e fazer dela um triunfo. Sem ela, então, antecipar seu destino. A glória que vinha ao seu encalço, e a fez imortal.


(Divulgação)

MARIA BETHÂNIA, 74 anos, cantora, levou aos
palcos e aos discos
passagens dos livros de Clarice

 

A primeira vez que li Clarice foi na Bahia, graças a uma assinatura da revista Senhor que Caetano recebeu de meu pai ou de meu irmão mais velho, não sei. Era uma revista muito elegante, muito bem dirigida. E saiu um conto da Clarice sobre Brasília, a construção de Brasília, ela falava dos “brasiliários”, muito bonito. Eu fiquei deslumbrada com a escrita dela, tão nova, tão franca, tão necessária. Era um texto que ela tinha que escrever, ela quisesse ou não, ela concordasse ou não. Era uma autoridade sobre ela. O texto de Clarice sempre teve isso, essa falta de ar, e isso é uma coisa que eu adoro. Além de ela escrever lindamente, genialmente, os assuntos pertinentes, tudo que me interessa, a sua nudez na escrita, tudo isso me leva a adorá-la, admirá-la, considerá-la uma das maiores autoras que eu conheço.


(Arquivo Pessoal)

MARCELA LORDY – 46 anos, cineasta, dirigiu o
filme
O livro dos prazeres, previsto para estrear no
segundo semestre de 2021, baseado no romance de
Clarice Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

 

Amamos Clarice porque ela fala do que realmente importa: da nossa capacidade de amar. Amar para conseguir nada. Ela mergulha no mar de silêncio que nos circunda e revela a nossa eterna necessidade de comunicar. E de aportar, vez ou outra, nas ilhas do afeto, tecendo a vida com a própria coragem. Uma vida que se refaz a cada tentativa e erro. Sim, o ser humano é só. E precisa aprender a tomar os seus momentos de alegria sozinho. Clarice aponta os caminhos. Não adianta pular de par em par; o vazio permanece. Ela vai fundo na dor de existir, de pertencer a alguma coisa, de ter nascido. É a partir daí que ela se coloca no mundo, a fim de ter uma vida larga. Afinal, a mulher que matou o peixe é a mesma que disse que tudo começou com um “sim”. Uma molécula disse “sim” a outra molécula e nasceu a vida. Ela sabe o quanto importa o outro. Ela sabe pedir. Ela sabe rezar. O gosto de sangue na boca da filha ao despedir-se da mãe que parte num trem é a imagem que guardo do primeiro conto que li, ainda menina.


(Divulgação)

 

MARIA FERNANDA CÂNDIDO – 46 anos, atriz, interpreta a personagem principal no filme A paixão segundo G. H., adaptação do livro homônimo de Clarice, dirigido por Luiz Fernando Carvalho. A estreia está prevista para 2021

 

Porque ela me faz amar a lama fascinante e imunda. Porque ela me ajuda  a atravessar  o oposto daquilo que pretendo alcançar, caminhando pela estrada reta de círculo, me colocando diante do horror e da graça de viver. Sem motivo maior, amo Clarice. Ela simplesmente me faz amar sem compreender.


(Ana Carmo/Divulgaçaõ)

EUCANAÃ FERRAZ – poeta, organizador do site
dedicado a Clarice Lispector
no portal do Instituto
Moreira Salles, para o qual organizou, com Veronica
Stigger, a mostra Constelação Clarice, que será
inaugurada em julho de 2021 em São Paulo

 

Lembro de meu alvoroço ao ler Água viva. Era meu primeiro contato com a escrita de Clarice Lispector, talvez fosse 1975, dois anos após o lançamento do livro. Eu era muito jovem e inexperiente não só como leitor. Mas a violência mágica daquelas frases me apanhou em cheio, como se meu frescor indefeso fosse propício à experiência do abandono, da dissipação e do choque.

Cinco anos depois, lera outros livros de Clarice e achava-me então um escolhido, ou pelo menos um iniciado. Ingressara na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) imaginando que ali todos eram, como eu, membros da sociedade secreta. Decepcionado, descobri que entre meus colegas poucos conheciam Clarice Lispector, mas tentava ampliar a maçonaria emprestando-lhes meu exemplar de Água viva – quem poderia resistir àquela beleza atordoante? – e com isso meu mundo se dividiu entre os que se espantavam e se convertiam e os que achavam aquela malha discursiva apenas uma algaravia excessivamente psicológica, tediosa e hermética.

Fora da universidade, Clarice seguia restrita a pequenos círculos, ainda que Maria Bethânia tenha levado aos palcos e aos discos passagens de seus livros – inclusive Água viva, ainda inédito; mas, naquele momento, Bethânia era também considerada uma cantora sofisticada ou, como se dizia, restrita ao diminuto público universitário. Enquanto isso, nos muitos sebos vizinhos à Faculdade de Letras, na avenida Chile, centro do Rio, era fácil encontrar a preço irrisório as primeiras edições daquela que chamavam de – quem chamava? dizia-se, estava no ar – “escritora difícil”. Curiosamente, como cronista do Jornal do Brasil Clarice experimentara uma popularidade que surpreendia sobretudo a ela mesma, que sabia o quanto seus livros circulavam entre poucos leitores.

Tantos anos depois, a autora de Água viva é um fenômeno popular (há quem diga pop, a fim de resguardar alguma dignidade artística em tal propagação). Quanto a mim, não tenho saudades dos meus tempos de sacerdote. Julgo que após uma série de contingências – algumas de natureza editorial – a escrita de Clarice mostra sua extraordinária força justamente por ter se popularizado. Não lamento que seus textos circulem pelo mundo, que sejam lidos por muitos e por qualquer um; que, traduzidos, copiados, sejam mesmo alterados, deturpados, falsificados etc. Como preservar das vicissitudes da popularidade a obra que se agiganta para longe de seus “laços de família”? Como solicitar ao público que tenha respeito com as milhões de reproduções de obras de Leonardo da Vinci? Como pedir que, por favor, cantem “Carinhoso” afinada e corretamente? Vejo enorme beleza nessa liberdade, gosto de ver a obra de Clarice Lispector ter chegado a tanto, de ver seu nome circular já quase desligado da obra e da personagem, como uma fórmula mágica, impessoal. Não deploro que possamos dizer William Shakespeare sem ter assistido aos dramas do autor que levava o nome; é magnífico que qualquer um use os termos inconscientemente, complexo de Édipo e egocentrismo sem aspas, sem a leitura de uma linha sequer de Sigmund Freud. É fácil entender que as frases de Clarice – sim, sua truculência, sua luminosidade áspera – sejam usadas como máximas açucaradas de autoajuda. Como evitar que os girassóis de Vincent Van Gogh se transformem em violetas sentimentais? Não desejo para a obra de Clarice Lispector o estatuto de reserva ecológica, de lugar sagrado; não é preciso mostrar documentos ou tirar os sapatos. Enquanto isso, as forças de Leonardo da Vinci, de Van Gogh, de Shakespeare, de Piet Mondrian (quem?) ou de Pablo Picasso seguem intactas. A crítica, a universidade, os pesquisadores, os arquivos, cada um continuará fazendo seu papel – é aí que, inflexíveis, devemos exigir o máximo rigor.

Vejo uma energia avassaladora no fato de a “escritora difícil” ter se tornado um fenômeno de massas – ou que esteja nesse caminho. Como Vinicius de Moraes: citados, repetidos à exaustão, copiados, vulgarizados, deformados pelo amor.


(Divulgação)

MARIA HOMEM – psicanalista e professora, autora
de No limiar do silêncio e da letra: traços de autoria em
Clarice Lispector

 

Clarice tem um estilo próprio e portanto absolutamente singular. Ela se permite mergulhar na língua como se estivesse muito à vontade tanto nas águas mais submersas como na ligeireza de boiar na superfície. E vai indo. Em contos ou crônicas ou romances. Sempre no seu jeito. Sobretudo nos romances, segue com uma épica toda feita de peripécias interiores, violentas, sutis – por vezes epifânicas. Clarice é quase clínica, como se cada personagem e ela mesma estivessem na interminável análise da alma diante da vida.


(Divulgação)

SIMONE PAULINO – 48 anos, editora, autora de
Como Clarice Lispector pode mudar sua vida

 

O centenário de Clarice me fez amá-la ainda mais que antes. Eu leio Clarice desde os 17 anos. Primeiro de forma intermitente e atrapalhada. Mais tarde, de forma cotidiana e mais segura de mim e dela, digamos assim. Ela é quase um oráculo pra mim. Preciso da convivência quase que diária com seus textos. E eles naturalmente me atravessam. Agora, com essa vida virtual desenhada pelos algoritmos, o universo entendeu de forma definitiva que tudo o que é relativo a ela me interessa, de modo que diariamente algo novo de Clarice chega a mim. Uma das grandiosidades epifânicas que me aconteceram este ano foi uma aproximação súbita, espontânea e quase inexplicável com Nélida Piñon, que foi uma das maiores amigas de Clarice e esteve ao lado dela até o último instante. Nélida me contou coisas belíssimas e comoventes sobre a amiga, algumas das quais não estão escritas em lugar algum, pelo que eu saiba. Esse reencontro com a dimensão humana de Clarice fez agigantar o meu amor, que já era uma espécie de devoção.


(Arquivo Pessoal)

CARLOS MENDES DE SOUSA – 60 anos, professor da Universidade do Minho, Portugal, autor de Clarice Lispector: figuras da escrita e Clarice Lispector: pinturas

 

Quando me foi solicitado este depoimento, pensei num verso de que gosto muito, do poeta português Mário Cesariny: “Ama como a estrada começa”. Nunca conseguiria expor racionalmente em poucas linhas as razões do meu amor por Clarice. Poderia tentar, já o esbocei noutros lugares. Mas na verdade talvez eu mesmo o não queira explicar. O verso diz tudo: é um amor que vem de longe, é o princípio da estrada. Vem do tempo do grande encantamento pelas palavras lidas. Mantenho muitas fidelidades. Clarice é um caso maior. No meu caminho, cruzei muito cedo com os seus textos, quando estava a sair da adolescência e quando ela era ainda muito pouco conhecida em Portugal. Tê-la escolhido como objeto privilegiado das minhas pesquisas e dos meus estudos não fez esmorecer o impacto. Pelo contrário. Numa das cartas para João Cabral divulgadas recentemente, a jovem Clarice, antes de completar 30 anos, ao falar da sua obra em processo escreve: “Eu preciso fazer uma coisa nova, João Cabral, não a bem da literatura, a bem da vida”. Clarice está sempre à procura da coisa nova. Talvez por isso tenha sido para mim um encontro de vida. Ao verso de Cesariny junto uma frase da própria Clarice, de uma das suas crônicas. Uma daquelas muitas frases que repercutem como versos que nos acompanham até o sempre: “Amar não acaba”.


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