Poetas, corpos, percursos: uma aproximação

Poetas, corpos, percursos: uma aproximação
O corpo do poeta é, a um só tempo, guardião de uma de uma escrita da vida e fonte de muitas outras (Arte Revista CULT)

 

Há pouco mais de uma semana, em Brasília, tive a alegria de conhecer pessoalmente o poeta Francisco Alvim. Ele nasceu em 1938 e completará 80 anos daqui a pouco mais de um mês. Ouvir os poemas que leio há tantos anos saindo da boca dele, há menos de um metro de distância, foi algo espantoso. É como se aquele corpo ali carregasse uma parte decisiva não apenas da poesia (e da história da poesia) que admiro, mas da minha própria história e certamente também de outros leitores de longa data da poesia do Chico – daí a intimidade para chamá-lo assim, perdoem.

Não era uma voz qualquer saindo de qualquer corpo (e quem conhece a poesia dele sabe como há sempre uma voz saindo de um corpo que não é exatamente o seu). Era a voz de alguém que se dedica à poesia há mais décadas do que as que vivi até aqui (Sol dos cegos, seu primeiro livro, é de 1968). E isso me tocou bastante.

Deve ser a minha crise dos quarenta, talvez. Mas ando aficionado por percursos, pensar esses longos percursos, principalmente esses percursos afetivos, como a relação de alguém com a poesia: lendo e escrevendo. Chico Alvim, quando coloca no ar novamente, com vivo entusiasmo, um pequeno poema que gravou num livro há cinco décadas, está esticando um pouco mais o seu percurso, entrando em novos corpos que vão esticá-lo não se sabe para onde. Seu percurso é, por isso, o percurso de muito mais gente: é a continuação dos percursos que o antecedem e influenciaram e, por sua vez, também será continuado por todos que foram tocados por sua poesia.

Olhar tão de perto para um poeta que tem tudo para se tornar um monumento (e, de fato, se tornou, mas vivíssimo) é uma experiência explosiva, porque ali se desfaz toda a mediação das fotos e teorias e leituras e, no lugar do distanciamento, vem um corpo que fala, ouve, gesticula, cumprimenta, sorri, lembra, treme, agradece, enfim, um corpo que troca enquanto solta no ar poemas que já lemos tantas vezes.

Saí dali pensando sobre essa espécie de passagem do bastão que se dá, não apenas na leitura e na escrita de poemas, mas na vida. Numa pergunta: do que é feito Chico Alvim? Que experiências atravessam seu corpo? E como suas experiências atravessam tantos outros corpos? Até onde? Até quando? E cada pergunta dessa fez ficar ainda maior aquele corpo, cada um dos livros que escreveu (um deles, aliás, tem o sugestivo título O corpo fora), cada um dos poemas que colocou na página. O livro, que às vezes engana como ponto de chegada, revela-se na verdade como ponto de partida. Para além da experiência que nele vem dar, há outras tantas que se iniciam nele e vão para onde ninguém imagina. Aquele corpo, portanto, é, a um só tempo, guardião de uma bio-grafia – de uma escrita da vida – e fonte de muitas outras.

Num poeta aos 80 anos, claro, toda essa escrita da vida é ainda mais abissal para quem acha – e cada vez mais acho – que pensar a vida como uma foto, parada, é muito mais desesperador que pensá-la como um filme, que não sabemos bem onde e como começou e muito menos onde e como vai terminar. Não importa tanto saber, afinal a vida só faz sentido como um filme. O monumento-poeta – as fotos que já vi mil vezes, os livros que já li mil vezes, as interpretações que não canso de ler –, por maior que seja, não rivaliza com a dimensão que seu percurso assume quando o colocamos no movimento muito mais amplo de que ele decorre e continua.

E eu nem havia me “recuperado” desse encontro com Chico Alvim e vivi uma outra experiência parecida no último final de semana. Recebemos o poeta Chacal no Vozes Versos, em São Paulo, para ler poemas junto com duas jovens poetas, Alice Sant’Anna e Danielle Magalhães. No meio da leitura, Chacal começa a falar sobre seu processo criativo e revela: “só sinto que o poema é meu quando sei os versos de cor”. Escreve o poema, mas apenas quando ele não precisa mais do papel como suporte, isto é, quando o poema já voltou para o corpo, para a memória, é que, de fato, é seu. Ou melhor: apenas quando o poema pode sair novamente e novamente do corpo, somando aos versos a temperatura daquele momento (o palco, o público etc.), é que o poema é seu. O poema, para Chacal, começa na escrita, mas se completa no momento em que se multiplica: primeiro, na memorização; depois, na produção pessoal dos livros que ele mesmo imprime e distribui como uma necessidade da sua poesia.

Ouvir esse depoimento, mesmo de um poeta que, já há algum tempo, pode ser encontrado em larga escala nas editoras e livrarias, remete a sentidos da chamada “geração mimeógrafo” (a que Francisco Alvim também é associado) que não podemos deixar que se percam. Fazer o poema, para Chacal, é fazer até mesmo a viagem para ler os poemas. É sair de madrugada do Rio para São Paulo, num bate-e-volta, para expor a partir do corpo, com o corpo, no corpo, o poema que é mais seu quando se torna também dos outros. Isso explica porque Chacal promove há quase três décadas os encontros do “CEP 20000”, em que poetas e outros artistas de todas as tendências sobem ao palco para que a arte que fazem seja, enfim, sua ao ser dos outros.

(Um parêntese: entre os encontros com Chico Alvim e com Chacal, tive também a alegria de ver o poeta Ricardo Aleixo no palco performando “Na noite calunga do bairro Cabula” em homenagem a Nelson Mandela. A cada verso do poema, o corpo de Aleixo sentia e fazer sentir cada um dos tiros da chacina que deixou 12 mortos em Salvador, em 2016. As palavras como balas; o público, seu alvo: “Morri quantas vezes/ na noite mais longa?”. Aleixo colocou em cima do palco, em São Paulo, cada um dos corpos devastados pela chacina – e é como se suas palavras tivessem o poder de fundir, no corpo de quem ouve, o corpo morto a que o poema remete, ou melhor, o corpo crivado que o poema encarna. Um dia volto a falar desse outro terremoto…)

Comecei este texto sem saber muito bem aonde queria chegar. Termino-o mais ou menos com as mesmas questões abertas. E deve ser porque foi escrito – como registro mais do que interpretação – sob o impacto de experiências tão fortes em tão pouco tempo, não apenas pelo significado dos poemas lidos em cada encontro, mas do que foi dito ali para além do texto. Do que foi vivido no entorno dos poemas.

É uma pancada ver de perto o corpo de que saem os poemas (e os corpos em que esses poemas entram e se multiplicam), ainda mais quando neles se revela uma história de vida e poesia que nos toca – em Chico Alvim e Chacal (e no Aleixo), mas, de outros modos igualmente contundentes, em poetas mais jovens nesses eventos. Para o leitor, observar no corpo as marcas do percurso de que o poema participa é uma forma única de entrar nos textos, conviver com eles, tomá-los para si e, talvez, ser tomado por essa coisa estranha que chamamos simplesmente de poesia. E vida.

TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.

(4) Comentários

  1. Excelente texto sobre uma das relações que considero das mais difíceis para o poeta, a percepção de seu próprio corpo.

  2. A marca dos afetos nos homens são trajetos historiografados direto aos sentidos, muito mais do que uma propriedade da razão.

  3. Belo texto meu caro Tarso. Extraordinária visão de poeta estendida em direção a outros poetas que, como vc, admiro e acompanho há bastante tempo. O poeta do ELEFANTE precisa ser mais divulgado entre nós. Precisa ser mais lido. O q aconteceu em Brasília já ocorreu tmb comigo em oportunidades parecidas. A vida nos reserva essas surpresas, e só por isso merece ser vivida da forma mais verdadeira. Parabéns. Seu amigo e leitor

  4. Tarso, amo tanto poesia que escrevo. Não sou um grande leitor nem sei decor minhas poesias, mas me sinto bem escrevendo e sendo lido.

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