Perto do bruxo, Machado de Assis

Perto do bruxo, Machado de Assis
(Arte Andreia Freire)

 

Uma coisa é falar de Machado hoje, aos 180 anos do seu nascimento. Outra, muito diferente, é falar dele de perto – perto no tempo ou mesmo fisicamente, no convívio diário. Se hoje ele é uma unanimidade, inclusive no exterior, onde passou a ser lido e admirado, em sua época não era bem assim, ainda que tenha sido reconhecido em vida como o maior escritor brasileiro. Parte do interesse neste livro reside justamente em entrar em contato com opiniões díspares sobre o autor de Quincas Borba, mesmo quando igualmente elogiosas ou críticas. Opiniões de escritores, amigos e colegas que em certos momentos não se dirigiam unicamente à sua obra, mas também à figura tímida, polida e recatada que morava num casarão em Cosme Velho e trabalhava como funcionário público, chefe de seção do antigo Ministério da Viação e Obras Públicas.

Os textos, recolhidos e selecionados com apuro pelos pesquisadores Hélio de Seixas Guimarães e Ieda Lebensztayn – artigos de jornal, trechos de memórias, palestras, depoimentos, discursos, cartas, poemas –, vão do final de 1908, quando morre Machado, com relatos de seu velório e homenagens, a 1939, quando se comemorou seu centenário. Entre os autores, estão Mário de Andrade e Lima Barreto, que se mostram francamente antagônicos ao criador de Capitu, e intelectuais próximos de Machado, como Mário de Alencar e Euclides da Cunha, fãs incondicionais de sua obra, assim como Monteiro Lobato, Olavo Bilac e Júlia Lopes de Almeida. No meio desses dois polos, muitos acrescem algum “mas” aos elogios, o que mostra bem como dificilmente uma clareira comum se abre no calor da hora. Daí os reveladores desencontros nos relatos.

Muitos, por exemplo, achavam-no sisudo, fechado: outros, porém, risonho e amável. O dramaturgo Artur Azevedo lembra do fundador da Academia Brasileira de Letras como alguém “alegre, cheio de vivacidade, eternamente rapaz, dizendo um bom dito a propósito de tudo, e rindo, rindo sempre”. Vai mesmo além, ao sugerir que o “melhor, talvez, da sua obra, ficou inédito” – estaria na forma como falava, nos seus ditos de salões, repartições e cafés. A descrição combina, de algum modo, com o humor “filosófico”, tão ressaltado em suas obras, influenciada por Sterne e outros autores ingleses, hábeis na construção de subentendidos, como maneira sutil de satirizar a sociedade e os amores alheios. Mas distancia-se, por exemplo, do “olhar de fuzil” descrito por Araripe Júnior, que o recebeu (o famigerado e temido olhar) após ser confrontado pelas críticas que fizera à falta de mulheres palpáveis nos livros de Machado, que não teria a “experiência necessária” no campo (ele que vivera um casamento tranquilo e aparentemente fiel com sua amada Carolina).

Alguns, por seu lado, especulam o quanto de suas origens humildes foi decisivo para a evolução de sua obra ou mesmo para a formação de seu caráter contido, avesso a paixões (as quais deixava para os personagens). O jornalista e escritor Humberto de Campos evoca o filho de “mestre” Francisco e de Maria Leopoldina, nascido no morro do Livramento, no Rio; Aluísio Azevedo, autor de O cortiço e irmão de Artur, retraça as contradições que teriam lhe moldado o caráter e o estilo, e, numa carta, menciona a natureza “que o fizera nascer homem de cor, o que foi para ele durante a vida o seu mais íntimo e maior tormento”. Nesse caso, é inevitável não pensar na foto enegrecida (ou não embranquecida) do grande escritor, que hoje corre nas redes sociais, mostrando como era de fato sua tez, sem confrontá-la com a maneira como ele era visto até mesmo pelos mais próximos. Numa carta de José Nabuco a José Veríssimo, o grande defensor dos escravos reclama como o famoso crítico descreveu o amigo de ambos: “Mulato, foi de fato um grego da melhor época”. Munidos da sensibilidade atual, compreendemos que Nabuco considere pejorativo o termo mulato e rogue para que o crítico não o repita. O problema – e aí entra a moral ambígua da época – é que, em seguida, ele argumenta: “O Machado para mim é um branco (…) e creio que por tal se tomava”. Estranhamente, Nabuco só via o “grego” no amigo, como se esse fato tornasse o escritor mais “olímpico”.

A carta é de outubro de 1908, pouco após a morte de Machado, aos quase 70, uma das muitas, entre os artigos e crônicas deste livro que desde já é uma referência, não apenas para os estudiosos de Machado, como de nossa história. Guimarães e Lebensztayn, que estão preparando novo volume, com textos de 1939 em diante, eles mesmos autores de ótimos ensaios iluminadores para este primeiro volume, vasculharam com paixão detetivesca o arquivo de Plínio Doyle, sob a guarda da Fundação Casa de Rui Barbosa, e cada escaninho machadiano na Biblioteca Brasileira Guita e José Mindlin e no Instituto de Estudos Brasileiros. Alinhados, os 41 textos – entre eles o relato sensível de uma crise epilética de Machado, por Carlos de Laet, que o testemunhou – formam uma narrativa crítica “romanesca”, com nuances que vão da quase adulação ao desprezo.

A avaliação mais contundente, sem dúvida, é de Mário de Andrade. Constrangido e mesmo hesitante, ele revela o desgosto pela pessoa do escritor, a quem detesta, por considerá-lo excessivamente conivente com as elites e a burguesia branca, e por copiar modelos estrangeiros, mas reconhece, com equilíbrio, a genialidade do artista. Mesmo assim, o reduz ao “maior artesão que já tivemos”, como se não tivesse criado de fato uma obra original. Lima Barreto, com sentimentos semelhantes, diz, em carta ao jornalista e ensaísta Austregésilo de Athayde, que Machado “escrevia (…) escondendo o que sentia, para não se rebaixar”. Pra depois acrescentar:  “escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto”.

Já Monteiro Lobato, como a maioria, se derrama em elogios e, por isso, talvez até desagradasse o inventor de O Alienista, que não era chegado a exageros de nenhuma espécie. O próprio Machado, lembrado aqui por José Veríssimo, definiu a meia distância que separa os juízos de valor e pôs um machadiano ponto final na questão: “Entre a admiração supersticiosa e o desdém absoluto há um ponto que é a justiça”.


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