Alfredo Bosi decifra enigmas de Machado de Assis

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Alfredo Bosi decifra enigmas de Machado de Assis
O escritor Machado de Assis (Reprodução)

 

 

Dizem que a formulação justa de um problema já é meio caminho andado para resolvê-lo. Neste caso, trata-se de entender o olhar machadiano, o que é um modo existencial de lidar com a perspectiva, a visão do narrador, o ponto de vista ou, mais tecnicamente, com o foco narrativo.

Olhar tem a vantagem de ser móvel, o que não é o caso, por exemplo, de ponto de vista. O olhar é ora abrangente, ora incisivo. O olhar é ora cognitivo e, no limi­te, definidor, ora é emotivo ou pas­sional. O olho que perscruta e quer sa­ber objetivamente das coisas pode ser tam­bém o olho que ri ou chora, ama ou de­testa, admira ou despreza. Quem diz olhar diz, implicitamente, tanto inteli­gência quanto sentimento.

O que se tem até hoje como consenso é a qualificação da perspectiva de Machado de Assis por meio de epítetos negativos: cética, relativista, irônica, sardônica, sarcástica, pessimista, demo­níaca. Os leitores sensíveis à pátina decorosa da sua escrita compensam a negatividade da impressão geral com atributos de atenuação que, afinal, sempre remetem ao fundo escuro que estaria sendo matizado: estilo diplomático, contido, medido, civilizado, mediador. Um olhar que morde e assopra. Primeiro morde: o barro comum da humanidade (a expressão está em A mão e a luva), embora comum, é sempre barro. Depois, assopra: o barro, sendo barro, é afinal comum a todos.

Negação e atenuação. Gesto crítico e tom concessivo. O equilíbrio entre os dois modos de olhar parece o do terrorista que precisa fingir-se de diplomata; ou o do diplomata que não esquece a sua outra metade, oculta, de terrorista. É o Machado que sai da leitura do seu testamento moral e literário, o Memorial de Aires.

Mas a descrição não contém ainda a interpretação, embora seja a sua honestidade, como disse Delacroix do desenho em relação à pintura. A descrição reconhece e mapeia as visadas distintas de um olhar que não queria perder nenhuma dimensão essencial do seu objeto; mas, como toda análise, requer o momento da compreensão.

O objeto principal de Machado de Assis é o comportamento humano. Esse horizonte é atingido mediante a percepção de palavras, pensamentos, obras e silêncios de homens e mulheres que viveram no Rio de Janeiro durante o Segundo Império. A referência local e histórica não é de somenos; e para a crítica sociológica é quase-tudo. De todo modo, pulsa neste quase uma força de universalização que faz Machado inteligível em línguas, culturas e tempos bem diversos do seu vernáculo lu­so-carioca e do seu repertório de pessoas e situações do nosso restrito Oitocentos fluminense burguês. Se hoje podemos incorporar à nossa percepção do social o olhar machadiano de um sécu­lo atrás, é porque este olhar foi penetrado de valores e ideais cujo dinamismo não se esgotava no quadro espaço-temporal em que se exerceu. Largo e profundo é, portanto, o campo do “quase” naquele quase-tudo.

De resto, por que Machado só poderia ter juízos de valor e ideais derivados imediatamente do regime paternalista dos meados do século XIX na cidade do Rio de Janeiro? Por acaso a luz deriva dos objetos iluminados por ela? A histo­ricidade que penetra os processos simbó­licos é mais aberta e complexa do que o tempo do relógio, que só mede a conjun­tura relativa à contingência biográfica do autor. A historicidade em que se inscreve uma obra de ficção traz em si dimensões da imaginação, da memória e do juízo crítico. Valores culturais e estilos de pensar configuram a visão do mundo do roman­cista, e esta pode ora coincidir com a ideo­logia dominante no seu meio, ora afas­tar-se dela e julgá-la. Objeto do olhar e modo de ver são fenômenos de qualidade diversa; é o segundo que dá forma e sentido ao pri­meiro.

 

Trecho do capítulo do livro Machado de Assis – O enigma do olhar, de Alfredo Bosi, que a editora Ática lança no Salão do Livro de São Paulo e na Bienal do Rio de Janeiro. Bosi é professor de literatura na USP e autor de obras fundamentais, como O ser e o tempo da poesia (Cultrix/Edusp) e Dialética da colonização (Companhia das Letras).

 

 


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