Para cima e para baixo com Paulo Francis

Para cima e para baixo com Paulo Francis

Botecos, jornais desaparecidos, Rio e Nova York são os cenários desse relato de alguns momentos de uma amizade de 30 anos

Ruy Castro

O velho recorte do Correio da Manhã caiu-me por acaso aos olhos e espiei a data: 21 de setembro de 1967. Era a primeira página do Segundo Caderno, trazendo um artigo meu sobre o novo filme de Alain Resnais, A guerra acabou, em cartaz no cinema Paissandu. A foto mostrava Yves Montand no papel de um comunista espanhol cansado de guerra. O recorte, já amarelado, também estava cansado de guerra – 21 de setembro de 1967; parecia ter sido ontem, mas, na verdade, fora há muito tempo. No fim da tarde daquele dia, há quase 40 anos, eu estava escrevendo uma matéria em minha mesa, na redação do Correio, quando notei um vulto de pé ao meu lado e ouvi a voz, depois tão característica:

“Você é o Ruy Castro?”

Levantei os olhos para dizer que sim e vi Paulo Francis. Eu já o conhecia, claro. Desde que entrara para o jornal, em março daquele ano, podia vê-lo quase todos os dias quando ele cruzava a redação – passos rápidos, os cabelos encaracolados e já grisalhos, camisa social creme, sem gravata, com as mangas arregaçadas, os óculos de fundo de garrafa de Brahma Chopp (casco claro) e o pescoço espigado, como se ele quisesse farejar os lustres –, mas nunca havíamos nos falado. Francis era editorialista, uma casta à parte no Correio, e eu, simples repórter – pior, um foca da reportagem geral, ainda esperando para ser admitido e registrado e que às vezes emplacava um artigo sobre cinema ou música popular no Segundo Caderno, cujo editor era José Lino Grünewald. Os editorialistas do Correio só podiam ser admirados à distância, porque os repórteres não tinham permissão para entrar no Petit Trianon, a não ser a chamado de um deles – Petit Trianon era a sala em que eles se entrincheiravam, no fundo da redação.

Ali, em 1967, além de Francis, pontificavam Edmundo Moniz, Franklin de Oliveira, Gilberto Paim, o próprio Grünewald e o português Paulo de Castro. Francis, aliás, era o que menos pontificava naquele escrete – e depois eu saberia que Newton Rodrigues, redator-chefe do Correio e seu ex-colega na revista Senhor, só o contratara, um ano antes, sob a condição de que ele não escrevesse sobre política (especialidade de Edmundo e Franklin), economia (Paim), leis (Grünewald) ou política internacional (Paulo de Castro) – assuntos sobre os quais, segundo Newton, Francis “não entendia bulhufas”. Deveria ater-se a assuntos da cidade, de comportamento e da cultura e, como esses temas raramente valiam um editorial, sua participação na página nobre se limitava aos “tópicos”, que eram notinhas curtas, opinativas, sobre buracos de rua ou cachorros atropelados.

O júnior e o dente-de-leite

Francis, porém, não deixava a peteca cair. Nessa época, sua principal presença no Correio se dava no Quarto Caderno, dominical, também editado por Grünewald, no qual ele escrevia – e muito bem – sobre teatro, literatura e, olha só, televisão. Numa das poucas vezes em que penetrei no Petit Trianon, a chamado de José Lino, vi Francis empunhando um artigo que acabara de escrever para o Quarto Caderno e bradando em triunfo para os colegas: “Cento e cinqüenta linhas sobre Tchecov – e nenhum advérbio de modo!”. Diante de Edmundo, Franklin e Paim, jornalistas bem mais velhos e rodados, Francis era mesmo decididamente júnior – porque tinha apenas 37 anos. Quanto a mim, com meus 19, só podia estar na categoria dos dentes-de-leite.

Ao se certificar de que eu era eu, Francis deu o serviço:

“Li seu artigo sobre La guerre est finie. Muito bom. A partir de janeiro, teremos algumas mudanças no Correio. José Lino Grünewald vai ficar só no editorial e eu vou sair do Petit Trianon para assumir o Segundo e o Quarto Caderno. Fora daqui, vou dirigir a revista Diners, que é uma publicação interna do Diners Club, para os associados do cartão de crédito. A dona da revista, Beki Klabin, quer transformá-la em uma revista de verdade. Além disso, vou editar o Livro de cabeceira do homem e o Livro de cabeceira da mulher, que serão duas revistas mensais da Editora Civilização Brasileira, só que em forma de livro. Quero montar uma equipe de gente jovem para produzir o grosso do material para essas publicações. Já tenho o Flavio Macedo Soares e o Alfredo Grieco, que você deve conhecer. Quer ser um deles?”.

Que dúvida! (E isso era proposta que se fizesse a um garoto que começara havia menos de seis meses no jornal?) Você perguntará como posso reconstituir, 40 anos depois, um bife desse tamanho, mas você também poderia – se fosse a fala que mudou sua vida.

Os jovens, contudo, sempre têm pressa, e aconteceu que, pouco mais de um mês depois, em outubro, enquanto Francis não assumia seus novos territórios, troquei o tão querido Correio da Manhã, no qual continuava foca não-remunerado, por uma vaga de repórter da revista Manchete, recebendo um salário que, enfim, me permitiu sair da casa de meus pais, no Flamengo, para um quarto (com banheiro) no histórico Solar da Fossa, em Botafogo. Permitiu-me também, a partir dali, andar somente de táxi, comprar discos de jazz na Modern Sound e nunca mais jantar na Spaghettilândia. Em março de 1968, no entanto, atendendo ao chamado de Paulo Francis, lá estava eu, fora da Manchete e trabalhando full-time para ele nos dois cadernos do Correio (o diário e o dominical), no Diners e, em menor escala, nos Livros de cabeceira e produzindo toda espécie de material: artigos “sérios”, crônicas de humor, entrevistas, perfis, adaptações de material estrangeiro, traduções etc. Foi uma escola.

Modernidade e AI-5

Uns pelos outros, escrevi pelo menos 200 artigos para Francis, assinados ou não, nos nove meses seguintes, até dezembro daquele ano, e todos muito bem pagos. O centro das operações era a redação do Diners, na rua do Ouvidor, 61. Era onde Francis passava o dia, despachando com Telmo Martino, secretário da revista, e Dounê Spinola, diretor de arte. Era também onde ele recebia amigos, como Glauber Rocha, Fernando Gasparian, Flavio Rangel, Ênio Silveira, Octavio Malta – a nova e a velha esquerda e, por ironia, todos fazendo tsk, tsk e já prevendo o pior, enquanto, lá em baixo, na avenida Rio Branco, os estudantes e a polícia trocavam pedradas, borrachadas e um ou outro coquetel molotov. Os colaboradores também entravam e saíam de sua sala: medalhões como Millôr Fernandes, Otto Maria Carpeaux, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Armando Nogueira, Fausto Cunha, Luiz Lobo e Jaguar e novatos como Marina Colasanti, Edgard Telles Ribeiro, Jom Tob Azulay e o fotógrafo Pedro Oswaldo Cruz. Diners era uma espécie de xodó da imprensa carioca – todos queriam colaborar nela, nem que fosse pelos cachês, pagos no ato, contra a entrega da matéria. Era aonde eu ia quase diariamente, depois da praia, e já levando debaixo do braço um artigo acertado de véspera com Francis, que eu escrevera não sei a que horas daquele dia.

No fim da tarde, íamos, juntos ou separados, para o Correio, onde, das 6h às 9h da noite, Francis editava o caderno diário e adiantava o caderno dominical, sem nunca atrasar uma página – sim, era possível isso, naqueles tempos em que o único computador que conhecíamos era o Hal-9.000 do filme 2001 – Uma odisséia no espaço, recém-lançado. E de que tratavam esses cadernos? Da guerra do Vietnã, da New Left, da morte de Bob Kennedy, dos Panteras Negras, da revolução sexual e de Paulo VI, de Bertrand Russell, de Herbert Marcuse, de Marshall McLuhan, de Isaac Asimov, de Wilhelm Reich, de Jean-Luc Godard, do filme Terra em transe, da peça Roda viva, de Guimarães Rosa, do Chacrinha, do tropicalismo, dos festivais da canção – que eram os tópicos do momento, mas, de alguns deles, só o Correio parecia tratar. Sem ser concretista (longe disso), Francis abriu também um espaço quase fixo no Quarto Caderno para os irmãos Augusto e Haroldo de Campos – espaço que eles atribuíam a José Lino, mas que só se manteve porque Francis os respeitava. E, por causa de Francis (com assessoria de Alfredo Grieco), Diners e os Livros de cabeceira publicavam muita ficção científica (Paul Anderson, Robert Sheckley, Ray Bradbury), assim como o Correio e Diners tinham os quadrinhos mais sofisticados da imprensa: Peanuts, Pogo, B.C., o Mago de Id, Barbarella e Jules Feiffer.

Toda essa modernidade se esboroou da noite para o dia em 1968, quando Francis, que tinha ido a Nova York contratar publicações cujo material passaríamos a usar aqui, desembarcou no Galeão na manhã de 14 de dezembro. Na noite de véspera, enquanto ele voava para o Rio, o governo militar baixara o Ato Institucional nº 5 e começara o festival de prisões.

Os inimigos diziam que Francis pusera o pé na escadinha do avião, respirara fundo e perguntara: “E aí, como se comportou o Brasil na minha ausência?” – ato contínuo, fora algemado e recolhido. Outros, mais bem informados, sabiam que Francis fora preso horas depois, em seu apartamento, na rua Barão da Torre (no mesmo prédio onde morava Rubem Braga), só que de pijama. Seja como for, ali acabava tudo. Os milicos ocuparam o Correio, prenderam o superintendente Oswaldo Peralva, ameaçaram a proprietária Niomar Moniz Sodré e passaram uma lista de gente a ser banida do jornal, encabeçada por Francis, mas que incluía até a mim, ao lado de outros muito mais importantes.

Por questões políticas, Francis teve também de deixar a Diners e, com isso, Beki Klabin resolveu liquidar a revista.
O volume de matérias compradas e pagas por Francis, contudo, era tão grande que, juntamente com os contratos de publicidade por vencer, justificava-se que ainda soltassem dois ou três números. E, só por isso, Diners sobreviveu pelos dois ou três primeiros meses de 1969, editada por Millôr Fernandes, com alguma assistência minha e de Marina Colasanti. Quanto aos Livros de cabeceira, passaram para outras mãos e agonizaram junto com a Civilização Brasileira na década seguinte.

Considerando-se que, no ano de 1968, devo ter visto Paulo Francis quase todos os dias de semana e, às vezes, também nos fins de semana, nossa convivência, a partir daí, poderia ser considerada esparsa, mas não foi o caso. No ano seguinte, Francis me indicou a Tarso de Castro e comecei a colaborar em O Pasquim quando este estava apenas em seu número 7 e a redação ainda era a original, na rua do Resende, na Lapa. Mais um ano e os papéis se inverteram: desta vez, era eu o editor de uma revista (Fairplay, a primeira “masculina”, ou seja, de nus femininos, do Brasil), em condições de pedir artigos a Francis e tendo o prazer de pagar-lhe muito bem, quando nenhuma outra queria saber dele – mesmo o seu esquerdismo platônico incomodava os patrões. Aliás, foi por falta de condições de trabalho por aqui e pelas sucessivas prisões (quatro em dois anos – todas incompreensíveis) que Francis se mandou para Nova York em 1971.

Furinhos nas axilas

Poucos meses depois, fui dos primeiros amigos a visitá-lo lá. Ele morava na Bleeker St., no Village, em um apartamento que a Universidade Columbia mantinha reservado para Fernando Gasparian, seu professor visitante, e que Gasparian lhe cedeu de graça. Em seus primeiros tempos de Nova York, Francis viveu na maior pindaíba, mas, como sempre, não perdia a pose: comia nos restaurantes mais chinfrins nos quais descobria grandes virtudes, assistia a um bocado de televisão por não poder ir muito ao cinema e usava camisas de linho tão bem engomadas que mal se notava que estavam rotas nas axilas. Em 1974, depois do longo período de carência, e já bem plantado em Nova York, Francis finalmente armou uma rede de colaborações na imprensa paulista que lhe permitiu ficar de novo por cima, em termos profissionais e financeiros. Naquele ano, quando estivemos juntos em Lisboa (eu estava trabalhando lá e Francis foi fiscalizar a Revolução dos Cravos), era nítido que a prosperidade lhe batera de vez à porta – uma simples gravata sua, por exemplo, devia valer mais que meu guarda-roupa inteiro…

Em 1975, ao ser contratado pela Folha de S.Paulo para mandar material de Nova York, conseguiu a façanha de se tornar popular sem ter de apelar para o popularesco. As pessoas temiam os seus comentários, como se ele fosse uma espécie de oráculo; outros passaram a desprezá-lo, quando ele se tornou “de direita”. Ninguém deixava, porém, de lê-lo. Com a abertura, em 1978, Francis passou a vir com freqüência ao Brasil e, quase todas as vezes, me telefonava. É possível que minha própria ida para a Folha, como repórter especial, em 1983, tivesse um toque dele junto aos Frias ou a Boris Casoy, então diretor do jornal. Sem dúvida, devo-lhe muito.

Por todos aqueles anos, de 1968 até sua morte, estive regularmente com Francis, mas sem exageros. Certa vez, no Rio, fizemos juntos a dieta do astronauta – nenhum dos dois emagreceu, pelas calorias acumuladas nos uísques, que, segundo ele, estavam liberados. Bebemos juntos sei lá quantas vezes, até que, nos anos 1980, ele parou de beber e, bem mais tarde, eu também. Continuamos, todavia, rindo e fofocando sobre os velhos amigos do Rio e os novos de São Paulo – pena que os melhores comentários não possam ser reproduzidos. E conheci algumas de suas namoradas do passado, embora mais de um amigo comum me jure que Francis morreu virgem. Não tenho opinião formada a respeito, porque, com toda a convivência, a diferença de idade entre nós não permitia que eu tivesse com ele uma cumplicidade que só pode haver entre pessoas que se conhecem desde a era glacial e, quase sempre, são da mesma geração – no caso de Francis, pessoas como Marcello Aguinaga (seu amigo mais antigo), Millôr Fernandes, Jorge Zahar, depois Paulinho Bertazzi, talvez Alberto Lee. Se nunca fui tão íntimo de Francis quanto gostaria, também nunca brigamos – coisa que aconteceu entre ele e três grandes amigos com quem, pelos motivos mais bobos, passou anos rompido: Ivan Lessa, Telmo Martino e Jaguar.

O adeus ao Rio

Em dezembro de 1996, ele fez uma visita relâmpago ao Rio. Vinha expressamente para ver Jorge Zahar, a quem amava como a um irmão e que estava doente. Francis chegou de Nova Iorque pela manhã. Passou o dia com Jorge no hospital, tranqüilizou-se quanto à saúde do amigo e aceitou um convite de Carlos Heitor Cony para jantar naquela noite – Cony, aliás, sendo um dos poucos a chamá-lo de Paulo, não de Francis. Seríamos apenas nós três, mas, quando Francis subiu a meu apartamento, no Leblon, para me buscar, outro amigo comum, o jornalista Fernando Pessoa Ferreira, estava comigo, e fomos todos para o apartamento ­de Cony, na Lagoa. Francis estava angus­tiado com o processo que a Petrobras ­ lhe movia, mas não queria se envenenar ­com o assunto.

Foi uma noite hilariante. Pelas horas seguintes, as orelhas de metade da imprensa brasileira devem ter ardido aos comentários e histórias de Francis e Cony, e houve um momento em que eu próprio tive de sair correndo para o banheiro, temendo fazer nas calças de tanto rir. Finalmente, já bem tarde, Cony nos pôs em seu carro e nos devolveu cada qual a seu pouso. Francis voltou para o Caesar Park, em Ipanema, onde estava hospedado. No dia seguinte, tomou um vôo matinal para Nova Iorque, onde, dois meses depois, morreu, aos 66 anos, de um enfarte provocado em boa parte pelo processo que ameaçava arruiná-lo. Que morte mais besta, meu Deus.

Em seu enterro, no São João Batista, no Rio, uma semana depois, um helicóptero jogou rosas sobre o cortejo. Bem a propósito do homem doce, generoso e educado que ele era – um Dr. Jekill enrustido – e que, na versão Mr. Hyde que fazia no jornal e na televisão, precisava falar impostado e parecer engessado para manter sua fama de mau. Havia quem gostasse do seu lado Jekill e detestasse o seu lado Hyde, e vice-versa.
Eu preferia os dois.

(1) Comentário

  1. Ruy,
    que delicia de artigo, o texto, a memória, os personagens, o Paulo Francis – que não conheci.

    abraço,
    Rosa Nepomuceno

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