Para além de uma dicotomia
Vladimir Safatle
Dificilmente encontraremos uma dicotomia mais empobrecedora e equivocada para a reflexão política do que aquela que separa “reforma” e “revolução”, prática reformista e pensamento revolucionário. No entanto, não foram poucas a vezes que ela foi pressuposta por análises de situações político-sociais.
Aceita essa dicotomia, encontramos dois equívocos complementares. O primeiro consiste em elevar a revolução à condição de modelo único de acontecimento dotado de verdade. O que não tiver seu potencial disruptivo e instaurador não vale uma luta política, não deve mobilizar nosso engajamento. Se revoluções saem do horizonte histórico de uma época, então tal tempo será visto necessariamente como um tempo morto, desprovido de acontecimentos. Ele será a descrição inelutável da mortificação da existência. O resultado de tal elevação da revolução a modelo único de acontecimento dotado de verdade é a incapacidade de operar distinções.
De fato, um dos sinais da inteligência consiste na capacidade de saber operar distinções. Pensando em algo parecido, Pascal costumava dividir os homens entre aqueles que têm “espírito de finesse” e aqueles que têm “espírito de geômetra”. Os primeiros eram capazes de se fixar e imergir nos detalhes, encontrar distinções sutis, mas corriam o risco de se perder em suas sutilezas. Já os segundos conseguiam apreender rapidamente totalidades, como um geômetra que desenha figuras.
No entanto, eles corriam o risco de cegar-se para aquilo que não era tão grande. Era claro que a verdadeira inteligência estava na capacidade de viver entre dois espíritos, como se um precisasse a todo momento corrigir a hipóstase do outro. Se quisermos ser pascalianos, poderemos dizer que os que só têm olhos para revoluções talvez estejam muito fascinados por seu próprio espírito de geômetra. No entanto, a falta de finesse na análise política pode ser catastrófica por levar processos acumulados de transformação a serem simplesmente perdidos.
Abertura de novas sequências
Se esse é um dos equívocos sempre à espreita quando se aceita a dicotomia entre reforma e revolução, o outro consistirá em simplesmente recusar todo e qualquer processo revolucionário, como se estivéssemos diante de alguma forma de momento de desvario da história. No limite, toda revolução é simplesmente criminalizada, ou seja, só analisada por seus erros, por suas mortes, por suas distorções. Para tais pessoas, é difícil compreender que um acontecimento verdadeiro não garante a sequência de suas consequências. Mais do que um projeto claro, as revoluções foram o ato violento de abertura de novas sequências. Um ato que mobiliza expectativas contraditórias, que coloca em circulação valores cuja determinação de sua significação será objeto de embates também violentos. Por isso, uma revolução é uma causa a partir da qual não é possível derivar, com segurança, qual série de consequências virá.
No entanto, talvez seja importante dizer que uma revolução não deve ser um objeto político. Essa afirmação não é feita pelo fato de as consequências dos processos revolucionários serem incalculáveis, imprevisíveis. Em alguns momentos, raros, nos dispomos a confiar no incalculável.
Na verdade, uma revolução não deve ser objeto político porque simplesmente não sabemos como produzi-la, não há uma linha causal entre um conjunto de condições sócio-históricas e uma revolução. Revoluções são sempre improváveis, fruto de uma série contingente de acontecimentos.
Seria mais honesto reconhecer que a história é o processo que transforma contingências e necessidades. Uma transformação que só é visível a posteriori. Assim, o que devemos fazer é não recusar esses processos contingentes e inesperados que têm a força de romper o tempo. Não recusar já é muita coisa.
Por outro lado, deve-se compreender que uma sequência de reformas profundas provoca um salto qualitativo a partir do qual dificilmente se volta para trás. Hoje, defender uma sequência de reformas é muito mais difícil do que defender rupturas radicais. Pois é mais perigosa uma mudança que está ao alcance de nossas mãos do que uma que está fora do alcance de nossa visão. Lutar por reformas sem perder de vista o fato de que processos incalculáveis podem acontecer. Mais do que um conselho político, essa talvez seja uma forma de vida.
vladimirsafatle@revistacult.com.br
(7) Comentários
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É grande o mérito de ver as mesmas coisas por olhares diferentes.
Perfeito. Essa análise vai bem de acordo com o que eu penso. Já entrei inúmeras vezes em conflito com pessoas que pensam apenas na revolução e esquecem que as reformas são importantíssimas para uma pré-revolução. Temos que abrir os olhos para a realidade. Uma revolução imediata não traz vantagens, e não dá sustentação para em seguida se manter a revolução. Uma revolução deve ter volume, que se acumula com as reformas anterioras à revolução. É isso aí.
Neste bagaço de terra, desde “1500(dC)”, o Brasil ainda possue muitos nutrientes, neles uma minoria de pessoas confortáveis pela incompetência em extraí-los, e outra maioria de pessoas que, morrendo afogadas em “reformas”, fome crônica, já nem sabem a diferença ou mesmo o que significa revolução. Que pena!
Ainda, tal maioria, preferem espelhinhos, pentes e maquiagens!
Tanto machos como fêmeas! Retardo mental, ou “excesso de desejo para querer ser igual ao estrangeiro”?
Ainda o grande presente de Deus, a racionalidade, surrupiada pelos covardes, sempre a serviço dos “mais fortes”.
Viajar é preciso, viver é urgente.
Quando a defesa do novo autêntico e singular adorniano se converte, anos mais tarde, na defesa do velho. Se uma revolução não se tornar objeto da política, se o novo não compuser, ainda que numa tensão constante, um todo com o conceito, a história será relegada a uma espécie de astúcia da razão hegeliana. Mas isso parcialmente. No mais, você tem razão em apontar que não se deve pensar nessas dicotomias reificadas. A acumulação de reformas pode redundar numa transformação global quantitativa e, portanto, revolucionária. A base sociológica da sua argumentação parece ser uma certa distância do mundo das lutas diárias. Mas seu ponto de vista é importante e sofisticado (acertado em vários aspectos, sobretudo contra uma concepção enrigecida de luta social presente na esquerda.)
[Du, Fábio.]
Dicotomias! Rs, é como se as diferenças estão aí porque estão, tipo efeito semelhante à ‘evolução das espécies’. Até que um dia não haja mais argumentos capciosos.
Às vezes, quando consigo, um mínimo texto, um pequeno comentário, um poema, uma palavra, um toque, um olhar, um sentir a presença de outrem é o suficiente, incondicionalmente!!!, para estar feliz.
Salvem a revolução enquanto haja vida neste planeta.
DECOLANDO
Às vezes, no meio de uma conversa,
seja ela qual for, escapo, literalmente fujo,
para lugares incomuns, para onde sei
que não vou mais precisar de minhas armas.
Onde o jardim não tem fim e é mais além de fantástico.
Onde a vida não é um show de horrores.
Às vezes até no decorrer de um texto.
Até quando escrevo; exaspero
a sensação de que um texto normal
precisa ter começo, meio e fim.
Existe a certeza de um texto que se liga ao outro,
e assim por diante, mas existe também os “intervalos”,
ou interrupções de quem “não sabe nada do que eu digo”
um grande erro da civilização,
que determina a linguagem geral e quer determinar a minha.
O que é normal?
Não nos destacamos da bestialidade pela razão,
essa se limita na normatização da existência e inércia.
A vida em comum não corresponde ao conhecimento.
Mil e uma noites causam um único efeito
mais próximo ao todo obscuro desejado.
Enquanto isso, longe das núpcias do soberano,
um irresponsável teclar de botão é a causa de…
tantas semelhanças entre o real e o virtual.
O beijo que vendemos ou doamos, em nome de Deus
Ou roubamos, ou somos roubados, não se enganem
Tem o sabor tão quanto ou mais que…
Rs, um beijo “normal”.
Puro deleite e fruição: que prazer eu sinto em saber que todos estão certos!!! São apenas pobres moços tentando atribuir universalidade/verdade/certeza aos seus cacos de espelho!!!
“Esses moços, pobre moços, ah…” Adoro tudo isso também, saber dessa certeza inexpugnável. Como pode um nome, um corpo, uma mulher, uma dicotomia ser/objeto – e quanta semelhança nesta terça feira de carnaval – resgatar-me tão bem, daquela solidão tão comum e, paradoxal?, tão raramente pronunciada.
Hoje simboliza o top de tudo que não quero, ou queria, dizer agora e aqui, porque amanhã, claro, que sempre haja tanta simbologia!, serão apenas cinzas; enquanto o sentido literal, “o vento leva”.
Amo as alices, dentro e fora dos espelhos, sinto-me sempre pronto, dentro ou fora, para aceitar ou soltar suas tênues mãos.
Queria fazer alguma daquelas perguntas – minhas! – de praxe – existe diferença de sabor entre quem está dentro ou fora dos espelhos? – mas esperamos o vento varrer as cinzas; eu não sei brincar, e todo fogo tem um quê de sagrado em sua profanação.