‘Pantera Negra’ e ‘Mulher Maravilha’: abordar direitos na era da informação
Lupita Nyong'o, Chadwick Boseman e Letitia Wright em cena de Pantera Negra (Disney/Divulgação)
O professor Ricardo Alexino, da Escola de Comunicações e Artes da USP, publicou no Jornal da USP uma crítica dos filmes Mulher Maravilha (2017) e Pantera Negra (2018), intitulada Filmes, lucros e infantilização das diversidades. A ideia central do professor e pesquisador renomado na discussão de temas vinculados a diversidades é que “as diversidades étnico-sociais, envolvendo questões de gênero, etnias, orientações sexuais e outras estão no agendamento midiático”. Diz ele, ainda, que “em sociedades capitalistas, que tendem a reificar praticamente tudo, elas também têm se tornado mercadorias valiosas, principalmente nas produções cinematográficas.”
Nos argumentos que sustentam esta reificação da agenda das diversidades, Alexino lembra que o filme Mulher Maravilha, em seu lançamento, arrecadou 821,9 milhões de dólares, batendo o então recordista Homem Aranha, que atingiu a cifra de 821,7 milhões de dólares (ambas as produções são da DC Comics/Warner). Já Pantera Negra bateu o recorde, chegando a 897,7 milhões de dólares – o quinto filme mais lucrativo da Marvel, que, como ainda está lotando as salas, tem tudo para subir de posição no ranking.
Os dois filmes tocam em temas importantes da chamada agenda das diversidades: as relações de gênero (Mulher Maravilha) e raciais (Pantera Negra). Por isto, as duas produções foram amplamente discutidas e consumidas por ativistas de movimentos feministas e negros. No caso do Pantera Negra, houve até sessões especiais promovidas por organizações negras que transformaram a discussão do filme em pautas frequentes nas redes sociais de ativistas antirracistas. Esta pauta só se reduziu por conta da tragédia do assassinato da vereadora Marielle Franco.
Alexino tece críticas consistentes baseando-se principalmente no conceito de reificação, ou seja, a capacidade do capital em incorporar temáticas e transformá-las em mercadorias a serem vendidas. E, a partir desta conceituação, o tratamento dado a estas temáticas busca esvaziar, ou reduzir ao limite, os sentidos de ruptura existentes nestas agendas. No caso dos dois filmes analisados, Alexino mostra que, em ambos, prevalece a perspectiva militarista como solução para os impasses (militarismo preenchido de uma concepção estadunidense) e a existência de um homem branco que tem importância fundamental na luta destes segmentos oprimidos (levando à ideia da necessidade de uma paternalização – de gênero e raça – de suas lutas).
Considero importantes as ponderações do professor Ricardo Alexino. Entretanto, é fundamental compreender o porquê do sucesso destas películas. Não se trata apenas de um frisson dos movimentos sociais da diversidade que entenderam (equivocadamente, na visão de Alexino) que tais produções expressam suas reivindicações. É necessário entender elementos existentes na sociabilidade contemporânea que levam a estes comportamentos.
O primeiro deles é que a temática da diversidade está na agenda pública, independente da vontade das pessoas. E isto, em boa parte, foi uma conquista dos movimentos sociais, que conseguiram desmontar os mitos da inexistência da opressão de gênero e de raça. Ainda que persistam o machismo e racismo, o repúdio a atitudes explicitamente racistas e machistas é frequente – veja o caso do jornalista William Waack, que praticamente foi demitido da Globo após o vazamento de um vídeo em que faz comentários racistas.
As redes sociais possibilitaram que estes movimentos construíssem mecanismos de denuncia e de tornar públicas as atitudes que ficavam – e morriam – nos círculos privados. Denúncias de racismo e machismo passaram a ser elementos que arranham o capital simbólico de pessoas e instituições. Aí, as instituições públicas e privadas tiveram de se reposicionar quanto a isto para manterem seus prestígios.
O segundo elemento a ser considerado é que este novo contexto trouxe também uma nova agenda marcadamente identitária para o seio da opinião pública. Pessoas pertencentes aos grupos historicamente discriminados, ao se depararem com denúncias de práticas violentas e preconceituosas, passaram a se empoderar por meio de reconhecimento com estas causas. E isto foi importante porque passaram a se constituir novos sujeitos coletivos, que trouxeram para a esfera pública as reivindicações da agenda da diversidade.
Novamente aqui a sociabilidade pelas redes sociais favoreceu estas novas articulações. Formaram-se o que chamei em um outro artigo de “novos protagonismos midiáticos e culturais”, que passam a disputar o espaço nesta sociedade da inflação das informações.
Porém, aqui entra um terceiro elemento que pode ser uma das chaves para o entendimento do sucesso destas produções, inclusive junto a ativistas da diversidade. O elemento central desta disputa na sociedade da inflação das informações é a visibilidade. São sujeitos coletivos que perceberam que a sua condição de subalternidade se expressa, primeiramente, na sua percepção, pela sub-representação nos espaços de poder (político, econômico e simbólico).
Assim, a visibilidade – em especial midiática – tende a ser sedutora para estes segmentos. Mas uma visibilidade não vazia de conteúdo. As representações destes grupos, para serem sedutoras, não bastam ser “miméticas”: devem incorporar também os conteúdos reivindicatórios. Daí que não são apenas pessoas negras ou mulheres, mas pessoas negras que lutam contra o racismo e mulheres que lutam contra o machismo. E é inegável que esta é uma novidade nas narrativas midiáticas do mainstream.
E a sedução ocorre porque a reivindicação de grande parte destes novos protagonistas midiáticos culturais (não todos, sem dúvida) é que estas narrativas de contraponto sejam também consideradas nesta esfera da sociedade da inflação das informações. Não se trata de uma reivindicação de que uma reflexão crítica estrutural esteja presente, mas que haja representações de sujeitos que se identificam como mulheres, negra(o)s ou LGBT e cujas identificações sejam baseadas numa afirmação positiva das suas condições (portanto contrária às negativações feitas pelo sistema).
Em uma sociedade imagética e de hegemonia do discurso minimalista (que tem como expressão máxima os 280 caracteres do Twitter), este é o campo dos conflitos que está sendo gerenciado pela indústria cultural. Na crítica de Alexino, o que se percebe é a defesa da necessidade de uma esfera do esclarecimento para se chegar as raízes do problema das opressões. Porém, a sociabilidade da inflação das informações não permite. Assim, a questão vai além da reificação da indústria cultural. As condições da sociedade contemporânea é que possibilitam este tipo de reificação.