Os sonhos e o despertar para a travessia de desertos
Pesquisa realizada entre abril e julho mapeou sonhos de profissionais da saúde e educação (Foto: Jr. Korpa/Unsplash)
Um gesto: em tempos de pandemia, psicanalistas pesquisadores convidam profissionais da saúde e da educação a encaminharem seus sonhos por escrito. Contemplam, nesse convite, um pedido acerca das associações do sonhador. A aposta é a de que esse gesto pode promover condições de construir uma trama discursiva numa perspectiva que coloque em relevo um saber do sujeito do inconsciente. Uma aposta de que o compartilhamento dos sonhos pode contribuir para o pensamento e a reflexão sobre o mal-estar deste tempo surpreendente que vivemos – tanto global, em função da Covid, quanto localmente, com o descaso e o desgoverno na política brasileira em meio à pandemia.
Esse gesto é justamente o ponto de partida da pesquisa “Sonhos em tempos de pandemia”, coordenada pelos professores doutores Rose Gurski e Claudia Perrone (NUPPEC/UFRGS), Miriam Debieux Rosa (PSOPOL/USP), Christian Dunker (LATEFISP/USP) e Gilson Iannini (Instituto de Psicologia/UFMG). A pesquisa aponta para a possibilidade de que as narrativas oníricas, quando compartilhadas e endereçadas a outro, podem furar o discurso totalitário e religioso da atualidade, além de decantar na produção de novos sentidos sobre os efeitos do mal-estar atual.
Iniciado em abril, o estudo teve como objetivo a criação de um campo possível de endereçamento das angústias e do sofrimento vivido pelos trabalhadores da saúde e da educação em tempos de pandemia, distinguindo o isolamento físico do social e tornando possível compartilhar com outros as vivências subjetivas deste período traumático em que cada um precisa enfrentar novos desafios e se reinventar.
O convite do grupo de psicanalistas pesquisadores foi respondido com o ato dos sonhadores, que endereçaram seus sonhos. Sonhos de uma noite, de noites seguidas, relatos extensos, fragmentados. A escrita seguiu o sonhar. Profusão de imagens, cenas do cotidiano, desconexões e conexões, efeitos de deslocamentos e condensações, resultado do trabalho do sonho. No conjunto, a pesquisa reuniu cerca de mil relatos de pessoas de todo país entre 10 de abril e 24 de julho de 2020.
O gesto de dar ouvidos ao sonhador, acolhendo a sua intimidade, configura-se como um ato que convoca a fala. Na contramão do descaso e da indiferença governamental fizemos a aposta de que, ao ofertar a escuta aos sonhos e às suas associações, as questões do viver ganhariam espaço e se revelariam nos sonhos como produções, fotografia, obra de arte. Coube a eles, os sonhadores, oferecerem seu saber inconsciente – aquele que não se sabe – para uma pesquisa, para a ciência, a universidade, a saúde e a educação, tão desprezadas pelo desinvestimento político maciço.
Ao endereçar seu sonho à leitura de outros, o sonhador repete a atitude esperançosa de alguém que lança ao mar uma garrafa que contém um breve escrito, uma mensagem. Esse pequeno escrito também vai com uma aposta de que alguém o lerá, de que haverá escuta, de que haverá devir em um período tão sombrio. Instauram-se redes que mobilizam relações de confiança, um dos nomes dados à transferência – que, aqui, deve ser compreendida como uma categoria ética que faz do ser humano um sujeito no laço social.
A pesquisa torna-se, então, uma convocação aos nossos contemporâneos para contarem a história do seu tempo, compondo um ato de dupla inflexão, clínico e político. Há uma dimensão de reconhecimento da palavra e do sujeito ao transformar a dor e o sofrimento vividos em pertença coletiva – dimensão que, em tempos de distanciamento, oferece um laço que acolhe e recolhe a palavra como transmissão, testemunho desse tempo.
Como pesquisadores e sujeitos da história, nosso compromisso é sermos contemporâneos. Para Agamben, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne, e que não cessa de interpelá-lo. É aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo.
O conjunto dos sonhos dos nossos contemporâneos não compõe um texto unificado de diferentes vidas, mas cada escrito, cada vida e cada sonho pode compor um tecido discursivo, um mosaico, captando estremecimentos imperceptíveis que, tomados em conjunto, sem que se faça deste conjunto totalizador, possibilita captar os dizeres da nossa época.
Os sonhos de cada sonhador são capazes de nos dar pistas para que possamos confluir em um devir coletivo. Assim como na obra Guernica de Picasso, que retrata os horrores da Guerra Civil Espanhola, podemos nos deter em cada cena pintada ou passar os olhos em seu conjunto para sentir o estremecimento da dor e do terror retratados onde também podemos identificar esperança e alternativas que compõe a utopia necessária para a saída do imobilismo.
O método proposto de leitura do material consistiu em nos deixar interpelar pelos sonhos e pelo saber neles contidos quanto à política libidinal presente nos laços sociais vividos no atual momento. Com Freud, as cenas dos sonhos nos permitiram recolher, a partir da posição singular do sujeito, a sua articulação coletiva, o seu diagnóstico e a prospecção das crises em andamento. Nessa proposta, em vez de interpretar o sonhador e a realidade, invertemos: os sonhos endereçados se apresentam como intérpretes dos laços sociais, da cultura e da política de nosso tempo.
Na leitura dos sonhos
observamos, de um lado,
o desamparo e o sofrimento
e, de outro, a busca por
alternativas e formas
de resistência.
Outro aspecto relevante foi certa perda do limiar entre sonho e realidade – um fenômeno presente em situações de interrupções violentas de modos de vida, como guerras ou transformações sociais e pessoais repentinas, que acionam o processo de elaboração caracterizado como traumático. Há ainda um terceiro tipo de sonho, próprio dos tempos de crise social, que interroga o absurdo e o obsceno de modo que o litoral entre ficção ou realidade, sonho ou vigília, torna-se fluído.
Nos sonhos relatados durante a pandemia encontramos determinados significantes descritivos da atual situação: perigo, medo, fuga, isolamento. Mas também testemunhamos movimentos de elaboração de um novo modo de vida que afeta as relações afetivas, libidinais e políticas, assim como a recriação e a retomada da potência e da resistência – chaves das análises do momento social e político e do despertar subjetivo.
Neste ato, convocamos a produção de enlaçamentos que criem trilhas para a travessia. Mais ainda, nosso horizonte foi o de incitar o sonhador a acessar o saber contido nos sonhos através do relato e suas reverberações presentes nas associações, com vistas ao despertar subjetivo e político do transe hipnótico e paralisador diante da crise atual, como um convite à vida e à potência.
Edson de Sousa utiliza a expressão “atravessar desertos” como metáfora para enfrentar o totalitarismo reinante que nos inunda de paralisia e conformismo, anestesiando o que temos de mais precioso, nosso direito à revolta, nossa potência de desejar, nosso compromisso para com a nossa imaginação. Edson propõe que nos aproximemos desse deserto e que coloquemos o pé em seus contornos para esboçar uma travessia possível. O autor lembra o texto “O deserto do Saara”, de Jorge Luis Borges, para dar um possível tom estratégico para esse percurso:
A uns trezentos ou quatrocentos metros da Pirâmide me inclinei, peguei um punhado de areia, deixei-o cair silenciosamente um pouco mais longe e disse em voz baixa: estou modificando o Saara. O fato era mínimo, mas essas palavras pouco engenhosas eram exatas e pensei que havia sido necessária toda minha vida para que eu pudesse dizê-las.
Como psicanalistas e pesquisadores, visamos pegar esse punhado de areia e constituir um levante ao nos debruçarmos sobre as questões do nosso tempo com um mínimo gesto, o compilar dos sonhos como nosso punhado de areia para nada menos do que modificar o Saara brasileiro. Os próprios sonhadores revelam um compromisso, pois também pegaram um punhado de areia e se debruçaram sobre as questões do nosso tempo. Os sonhadores da pandemia são sonha–dores, pois trazem o trauma, a revolta, a repetição, a ruptura do tempo, os lutos infinitos, mas também a luta de quem sabe que estamos em revolução.
No atual contexto histórico brasileiro, em que o anonimato e a mentira ocupam a cena política, sonhar é um ato revolucionário. Revolucionário porque subverte o campo do não querer saber, do não se responsabilizar pelo dito. Ao sonharem por todos nós, os sonhantes/sonha-dores oferecem uma profusão de imagens que revelam e afirmam que ainda há sonhos para nos despertar para a vida.
Miriam Debieux Rosa é psicanalista, professora titular do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e do Instituto de Psicologia da USP. Coordena o Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e o Grupo Veredas: psicanálise e imigração e é presidente da Rede Interamericana de Psicanálise e Política (REDIPPOL).
Sandra Luzia Alencar é psicóloga e psicanalista, doutora em Psicologia Social e membro do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política.
Emília Estivalet Broide é psicanalista , doutora em Psicologia Social pela PUC-SP, membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (PSOPOL) e professora do curso “Psicanálise nas Situações Sociais Críticas” (COGEAE-PUCSP).