Pandemia, pandemônio e cultura no Brasil
A pandemia, ao tensionar a convivência pública ou privada, nos obriga à televivência (Foto: Coline Haslé)
Os cenários pós-pandemia que têm sido esboçados possuem imensa elasticidade. Eles variam da utopia redentora da pandemia inaugurando um mundo solidário e mais justo até a trágica potencialização da ampliação da desigualdade e do autoritarismo própria do neoliberalismo. A variedade de expectativas acena para as dificuldades de imaginar o futuro.
A pandemia invadiu o cotidiano e a transformou a vida radicalmente. Ela colonizou a agenda pública e privada. A atualidade se conformou a uma palavra de longínqua origem. Pandemia provém do grego antigo, reunindo “pan”, que significa tudo, todos, mais “demos”, povo. A pandemia se dissemina geograficamente e contamina todo mundo. Ela produz sequelas em pessoas infectadas e em toda vida planetária. A onipresença da pandemia tornou-se hoje universal.
Para além do universal, na aldeia a pandemia adquire tonalidades brasileiras. A complexa convergência entre pandemia e pandemônio sobredetermina a circunstância brasileira. A diabólica conjunção produz complexidade para seu conhecimento e seu enfrentamento. A combinação perversa de pandemia e pandemônio resulta em superlativo caos, em confusão intensamente selvagem, que desafia todos brasileiros: seu presente, seu futuro e inclusive sua civilidade.
O singular panorama nacional não deriva apenas das mais de 230 mil mortes, que coloca o país em segundo lugar na triste estatística planetária da pandemia. O Brasil sobrevive hoje na pandemia sem política de saúde, sem competência no militarizado Ministério da Saúde, sem gestão sanitária, sem vacinas suficientes, sem efetivo plano de vacinação, com um presidente que boicota todas as medidas médicas preconizadas pela Organização Mundial de Saúde. Não bastasse o pandemônio na pandemia, ele trafega para outras áreas, exacerbando a confusão selvagem, que agora dilacera o Brasil.
A crise econômica decorrente da política (ultra)neoliberal corrompe as condições de emprego e de vida da maioria do povo brasileiro, ampliando a profunda desigualdade social e a miséria, que adoece o Brasil e os brasileiros. O gabinete do ódio, instalado no Planalto, gera crises políticas, atirando contra instituições e adversários, transformados em inimigos a destruir. Ele autoriza, explicita ou implicitamente, toda sorte de violências verbais e físicas contra aqueles que pensam diferente do poder federal.
A intimidação e a destruição da vida civilizada caracterizam o exercício não democrático e não republicano do governo nacional. A “guerra cultural” evoca valores conservadores, retrógados e moralistas em atitude fundamentalista de imposição de pensamentos e comportamentos intolerantes e avessos a qualquer respeito às diferenças, às diversidades sociais e culturais, ao estado laico e à civilidade nas relações humanas. A agenda pública fica dilacerada por supremacismos, negacionismos, terraplanismos e narrativas ideológicas absurdas.
Paradoxal, o pandemônio ocupa lugar restrito na cena pública do país, apesar de assolar brutalmente a realidade e população brasileiras. Poderosas mídias invisibilizam sua visibilidade, apesar da confusão selvagem que produz. Pandemonium tem origem inglesa e literária. O poeta John Milton, no poema épico “Paraíso perdido”, de 1667, inventou a expressão para nomear o centro gestor do inferno. Ele importou as palavras gregas “pan” e “daimon”, divindade menor, demônio. Pandemonium era o palácio em que se reuniam os demônios sob a presidência de Satã. No século 19, o sentido do termo mudou para “confusão selvagem”. Hoje virou sinônimo de “bagunça, caos, desordem”. Antonio Houaiss dicionariza pandemônio como associação de pessoas para praticar o mal.
O termo e significados apresentam excepcional afinidade com a cena brasileira. Recorrer à noção e sua etimologia não funcionam como mero recurso retórico e literário, mas como acionamento de expressão com potente capacidade analítica para desvendar a atualidade brasileira e seus absurdos. Dilacerantes contradições e tensões configuram o Brasil. Os enlaces umbilicais entre pandemia e pandemônio são vitais para entender o que acontece no país e no campo da cultura.
Desnecessário reafirmar a gravidade da situação da cultura no Brasil contemporâneo. Ela foi duramente atingida pela pandemia, como aconteceu em todo mundo. Com fechamento dos equipamentos culturais, cancelamento das festas populares, suspensão de celebrações cívicas e proibição de espetáculos públicos, a cultura no planeta tornou-se uma das atividades mais cedo interrompidas e certamente será uma daquelas de retorno pleno mais tardio. A cultura criada/produzida para ser consumida em espaços presenciais de convivência sofre bastante, juntamente com seus criadores e produtores, muitos deles submetidos a delicadas condições de sobrevivência. Diversas pesquisas realizadas no país constataram a precariedade do campo cultural e de seus trabalhadores, inclusive a perda de algo em torno de 500 mil postos de trabalho.
Cabe registrar que a cultura produzida em tecnologias midiáticas permite suportar o modo de vida imposto pelo enfrentamento à pandemia, em especial nos instantes de isolamento social mais intenso. Ela viabiliza acesso ao mundo, estimula à imaginação e cuida da saúde mental de pessoas submetidas à diminuição e mesmo à ruptura dos laços afetivos de convivência, que nutrem de sentido a vida humana.
O abatimento da área cultural
só não foi maior devido à
invenção de modalidades novas
de expressão da cultura, a exemplo
das infinitas lives surgidas para
viabilizar eventos artístico-
culturais e debates.
Sua inovadora profusão ameniza perdas e danos. Ela nem de longe possibilita uma dinâmica cultural em plenitude. Mas sua novidade não se restringe à experiência da pandemia. As novas modalidades culturais devem se tornar permanentes e redefinir a própria sociabilidade e sua cultura. Eis uma das poucas certezas a imaginar no cenário pós-pandemia.
A pandemia atingiu a sociabilidade moderna. Ela impõe aos governos responsáveis e não genocidas distanciamento social e quarentena. Ou seja, a modernidade entra em xeque-mate ante a disseminação pandêmica do coronavírus. Com espaços/tempos presenciais de convivência pública interditados ou fragilizados, a sociabilidade moderna sofre intenso abalo. Em momentos normais, ela se alimenta da convivência presencial em ambientes públicos de compartilhamento social. Sem eles, a modernidade parece se esvair.
Hoje, com o recesso de quase todas as modalidades modernas do conviver público, resta a presença compulsória do espaço privado. A quarentena redefine dimensões substantivas da vida e da sobrevivência. Elas não são experiências fáceis e sem angústias. Ela nos retira o espaço público, aquele espaço compartilhado com outras pessoas para o bem ou para o mal. Resta o espaço da casa, confortável para quem tem boa residência e cruel para quem habita em condições precárias, como grande parte da população brasileira. Vive-se como nunca o espaço privado, ambiente de mais familiaridade e maior intimidade, cheio de afetos e cuidados, mas também violências, físicas e simbólicas, muitas silenciadas.
O encolhimento da vida pública e a expansão do espaço privado não expressam, em plenitude, as alterações inusitadas da vida na atualidade. Outra dimensão, nascida na modernidade e consolidada na contemporaneidade, se alastra por todos os lugares, através de aparatos sociotecnológicos de produção e distribuição de bens e serviços culturais. Tais aparatos nos inserem em novas modalidades de vida. Eles propiciam uma vivência à distância em tempo real e espaço planetário. Um mundo global não destituído de amores e dores locais.
A sociabilidade contemporânea combina o global e o local, sintetizados com rara felicidade na noção glocal. A contemporaneidade miscigena em sua sociabilidade, convivência e televivência. Ou melhor, vivência em presença e vivência à distância. No mundo proliferante das telas, a expressão tele adquire sentido crucial. Infinitas teles são usadas por diversos autores para designar mundos à distância vitais para a experiência humana contemporânea no planeta: televivências, telerealidade etc. Telas e teles geram a sociabilidade atual.
A pandemia, ao tensionar a convivência pública ou privada, nos obriga à televivência. Apesar de já existente, ela não era vivida no cotidiano por grande parte da humanidade. Agora, ela se naturalizou cotidiana. Proliferaram trabalhos remotos, ensino à distância, reuniões virtuais, múltiplas lives e muitas vidas estendidas, hoje mescladas, de maneira umbilical, com as vidas gestadas no entorno.
A inibição da convivência pública, as tensões da vida privada e a explosão das vidas à distância, com realidades tão reais quanto aquelas tecidas pela proximidade, conformam o admirável novo mundo da sociabilidade contemporânea. Enfim, a pandemia nos tornou contemporâneos. A exacerbação das vidas à distância, tão sedutoras para os jovens em seus infinitos jogos eletrônicos, e desencanto com agruras das vidas públicas e privadas, talvez nos tornem perigosamente pós-contemporâneos.
No cenário brasileiro, o trágico panorama da cultura não decorreu apenas do impacto da pandemia. Os poderes executivos federal e de alguns estaduais e municipais agravaram intencionalmente tal situação, desde a posse de Messias Bolsonaro em janeiro de 2019, através do descaso e incompetência no (mal)tratar a pandemia e fabricar o pandemônio. Para além do desleixo com a área institucional da cultura, o governo federal e sua ala mais programática, autoritária e fundamentalista declararam uma guerra cultural a todas as manifestações político-culturais afinadas com a democracia, a diversidade cultural, o pluralismo político e as culturas identitárias. Censura, repressão, ameaças e violências físicas e simbólicas aos membros do campo cultural se tornam constantes, em visível contraste com a liberdade vivida no país até 2016. O clima anti cultural e a mediocridade se impõem na cena político-cultural brasileira atual.
O imbricamento perverso entre pandemia e pandemônio dificulta projeções de futuro. O caos, acionado de modo deliberado como procedimento político, debilita instituições que ainda restaram após o golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e as eleições antidemocráticas de 2018. Sem padrões institucionalizados delineados a previsibilidade de cenários de futuro se esvai. No caos institucional e intencional tudo se torna possível. Mesmo o potencial imbricamento cultural de convivências e televivências, que nos faria contemporâneos, pode entrar em colapso. Todas as oportunidades e previsibilidades de futuro ficam interditadas, a não ser que sejam inventadas manifestações e mobilizações, que superem tanto a pandemia como o pandemônio, que aprisionam o Brasil.
Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT). Professor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia. Ex-Presidente do Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Ex-Secretário de Cultura da Bahia.