Palavreado tóxico
(Imagem: Hyeronimous Bosch)
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Somos um país intoxicado. Não de drogas, lícitas ou ilícitas. Mas de palavras. Palavras malditas, palavras mentirosas, palavras que humilham e segregam, palavras que incitam o ódio. O bando designado como “Gabinete do ódio” lançou milhões de litros de bile envenenada sobre a população brasileira. Não foi uma garoa, ou uma breve chuva de verão, mas uma tempestade daquelas que parece que nunca vai terminar. Por muito pouco o Brasil não sucumbiu à septicemia semântica.
Os psicanalistas apostam(os) alto no poder curativo da palavra. Talking cure foi o nome dado por uma paciente, a célebre Anna O., para o método terapêutico que viria a ser conhecido como psicanálise. De fato, o gênio de Freud consistiu em criar uma prática clínica que tem como objetivo possibilitar ao paciente em sofrimento psíquico construir uma narrativa capaz de acolher e dar sentido à sua dor. “Fale tudo o que te vem à mente, sem censura”, é o convite do psicanalista. E a chamada associação livre é a regra fundamental da psicanálise.
Fantasias absurdas e/ou engraçadas, palavrões, sacanagem, feridas morais que nos envergonham, paixões, preconceitos, ofensas… tudo tem lugar no consultório, de maneira a se explorar de que modo ampliam ou limitam a potência de cada sujeito. A psicanálise se impõe, portanto, como o espaço da vida social onde a liberdade de expressão pode alcançar seu grau máximo. O que se diz ao analista não se diz aos amigos, colegas de trabalho, cônjuges, pais ou filhos, ao menos se não se quer cometer sincericídio serial.
Só há psicanálise, efetivamente, em sociedades que adotam a liberdade de expressão como um valor especial. As teocracias e as ditaduras não são amigas da psicanálise. Mas o que dizer de conjunturas como a que assistimos recentemente no Brasil, na qual representantes eleitos e gestores públicos se autorizaram a dizer o que lhes vinha à cabeça, sem censura e sem decoro, como se estivessem deitados no divã do psicanalista, tornando-nos espectadores atônitos de sua estupidez, de suas mentiras fantasiosas e de suas associações de ideias aversivas ao senso civilizatório? Trata-se de exercício legítimo da liberdade de expressão? Essas palavras curam ou adoecem, intoxicando-nos?
Frente ao aparente paradoxo, é preciso reconhecer que as palavras detêm o estatuto de remédio, de um lado, e de veneno, de outro. Dessa maneira, se há um poder curativo, há também um poder intoxicante nas palavras. Sobretudo quando as palavras são usadas para promover humilhação do outro subalternizado e para desmentir seu sofrimento.
O psicanalista Sándor Ferenczi teceu uma teoria das relações de linguagem, conhecida como “confusão de línguas”, capaz de contribuir para o entendimento das diferenças da palavra curativa e da palavra traumatizante e intoxicante.
Ele nos ensina que, no processo de constituição da nossa subjetividade, antes da adoção da linguagem socialmente convencionada, chamada “linguagem da paixão”, experimentamos uma linguagem expressiva e evocativa, criadora de sentido para a existência e para o mundo, a “linguagem da ternura”. Sabemos disso intuitivamente quando nos dirigimos a crianças pequenas ou a sujeitos em estado de vulnerabilidade, como um doente no leito de hospital. Falamos mais baixo, mais afetuosamente, expressando nossa empatia com a sua posição. Mas também quando dizemos um não contundente ao filho adolescente carente de limites. A palavra terna é aquela que reconhece a alteridade, dignidade e humanidade do nosso interlocutor.
Um sujeito em estado de vulnerabilidade, vítima de uma violação da sua dignidade, tende a buscar um outro ao qual testemunhar sua dor. É assim com a criança que sofre maus tratos, com a mulher objeto de violência sexual, com o jovem preto ofendido ou agredido pelos seguranças do supermercado, com o indígena vilipendiado pelo garimpo ilegal. Exemplos, infelizmente, não nos faltam.
O reconhecimento empático do testemunho da dor da vítima dá lugar às palavras curativas. Por outro lado, o desmentido do testemunho da violência que lhe foi infligida é extremamente tóxico, porque fere, no âmago, sua dignidade e seu sentido de pertença ao que chamamos humanidade, sem falar em seus direitos cidadãos.
É o caso de frases como “não há racismo no Brasil”, “você não merece ser estuprada”, “é só uma gripezinha” ou, mais recentemente, “nunca um governo dispensou tanta atenção aos indígenas”, proferido pelo ex-presidente frente à tragédia humanitária que se abateu sobre o povo yanomami. São desmentidos institucionais da dor e do sofrimento de sujeitos pertencentes às parcelas mais vulneráveis da população que, assim, se encontram absolutamente desamparados, destituídos de dignidade moral e humilhados.
Nos últimos anos, fomos bombardeados pelo exercício cotidiano da ofensa aos grupos minoritários e da mentira descarada. Lemos ofensas e mentiras nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp, escutamos ofensas e mentiras nos podcasts, canais do YouTube e em reuniões familiares. Muitas vezes compartilhamos mentiras sem checar as fontes, se elas nos são egossintônicas. Fomos expostos a tamanha quantidade de ofensa e de mentira que, se fossem radioativas, decerto estaríamos mortos.
Um país envenenado pelo palavreado tóxico precisa reaprender a falar a linguagem da ternura, da empatia e do reconhecimento.
Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.