Ouvindo a canção do vento
Nos romances de Haruki Murakami, as personagens são pessoas comuns no mundo cosmopolita do
Japão atual.
De pouco adiantou os pais de Haruki Murakami, ambos professores de língua e literatura japonesa, tentarem incutir no filho o gosto pelos autores tradicionais de seu país: desde cedo seu interesse se voltou aos autores ocidentais, em particular americanos. Fitzgerald, Truman Capote, Tim O’Brien, Paul Theroux e John Irving são apenas alguns dos muitos escritores que influenciariam sua carreira literária. Além da tradução de obras desses autores, Murakami introduziu ao público japonês toda a obra de Raymond Carver e, recentemente, completou uma nova tradução de O apanhador nos campos de centeio, de J.D. Salinger. E foi entre uma e outra tradução que Murakami começou a escrever contos curtos e romances. Lançado em 1979, seu primeiro livro Kaze no uta wo kike (Ouça a canção do vento) possui visível influência dos pós-modernistas Kurt Vonnegut e Richard Brautigan. Nas primeiras linhas, Murakami define sua percepção do ato de escrever: “Não existe o que se possa chamar de sentença perfeita. Da mesma forma que inexiste perfeito desespero”.
O grande sucesso, todavia, viria somente com o lançamento em 1987 de Norwegian wood, quando o escritor se viu inesperadamente alçado à condição de autor mais popular e influente do pós-guerra japonês e ícone da cultura pop, posição que se sustentou nos 25 anos de sua carreira literária. Norwegian wood vendeu mais de dois milhões de exemplares no primeiro ano após seu lançamento, sendo responsável pelo que se rotulou entre os japoneses de “Fenômeno Murakami”. A popularidade instantânea levou o escritor a optar pelo auto-exílio na Europa e mais tarde nos Estados Unidos em busca de anonimato, voltando apenas em 1995 em definitivo para seu país natal. A ida para o Ocidente significou para Murakami a fuga aos valores tradicionais japoneses e a procura por sua individualidade. “Quando estava no Japão, tudo o que eu desejava era ser um indivíduo, me distanciar, me afastar ao máximo da sociedade, dos grupos, das restrições” (cf. Haruki Murakami and the Music of Words; Jay Rubin, London: Harvill Press, 2002).
As restrições a que Murakami se refere não se limitam às rígidas convenções da sociedade japonesa, mas também dizem respeito ao establishment literário japonês, onde os cânones da junbungaku, ou “literatura pura”, deveriam ser observados à risca, tornando o criar literário algo voltado a um número pequeno de críticos e leitores. Em uma palestra na Universidade de Berkeley, em 1992, Murakami comentaria: “Não há nada demais em escrever dessa forma, mas nada obriga a que todos os romances sejam escritos assim. Essa atitude apenas sufoca. Porém, ficção é algo vivo, que demanda ar fresco. Encontrei esse ar fresco na literatura estrangeira”. Apesar da influência marcante de vários autores ocidentais, Murakami desenvolveu um estilo iconoclasta original, produzindo obras ficcionais únicas que desafiam qualquer classificação.
Os grandes mestres contemporâneos da literatura japonesa também se inspiraram em autores ocidentais: Tanizaki em Edgar Allan Poe, Mishima em Jean Genet, Kobo Abe em Kafka. Porém, nenhum deles ousou se afastar dos parâmetros formais exigidos pela junbungaku. Ao contrário dos romances de Yasunari Kawabata, onde se transpira a cultura japonesa em cada página, através de cerimônias do chá, quimonos e gueixas, as personagens de Murakami são pessoas comuns no mundo cosmopolita do Japão atual. Através delas, Murakami atinge uma ampla audiência das mais variadas faixas etárias. Embora o cenário de seus romances seja seu país natal, a literatura de Murakami é universal. Os leitores se identificam imediatamente com as personagens, que vivem fora do eixo central da sociedade moderna, em solidão ou angustiadas ao lidar com os mistérios da vida cotidiana, mas sempre à procura de algo indefinido que lhes preencha o vazio interior. O narrador em terceira pessoa é raro em sua obra: os protagonistas narram a estória, o que imprime à narrativa um nível maior de sinceridade, aproximando-a ainda mais do leitor. Devido a seu caráter universal e estilo direto e envolvente, suas obras alcançam uma vasta gama de público também no exterior, onde já foram traduzidas para mais de 15 idiomas. Em tradução para o português estão disponíveis Caçando carneiros (Ed. Estação Liberdade, 2001) e Minha querida Sputnik (Ed. Objetiva, 2003). Para este ano está previsto o lançamento de Norwegian wood (Ed. Objetiva) e Dance dance dance (Ed. Estação Liberdade).
Muitos de seus livros reverenciam a cultura pop americana, em particular a dos anos 50 e 60. Apaixonado por música, costuma afirmar que possui mais de 6 mil discos de todos os gêneros musicais. Numa época em que o destino da grande maioria dos jovens universitários recém-formados era o de trabalhar nas grandes corporações japonesas, Murakami abriu e administrou durante quase oito anos um bar de jazz em Tóquio, o Peter Cat, juntamente com a esposa, antes de se dedicar integralmente à literatura. O amor pela música se depreende nas constantes citações de canções populares ocidentais dos anos 60 e 70 e seus intérpretes. Norwegian wood, por exemplo, é o título de uma famosa canção dos Beatles e Kokkyono minami, taiyo no nishi (Sul da fronteira, Oeste do Sol) empresta parte do título da canção “South of the border”, de Nat King Cole. Seu apurado senso musical se reflete no estilo de suas sentenças, de inconfundível aspecto rítmico.
Murakami formou-se em Arte Dramática pela Faculdade de Letras da Universidade de Waseda, celeiro de proeminentes escritores japoneses. O movimento estudantil de final dos anos 60, quando lá estudava, assim como a incipiente contracultura no país, teve profunda influência sobre sua obra, na medida em que representou a primeira exposição de sua geração ao vazio de ideais em uma sociedade voltada para o grupo em detrimento do indivíduo e à total submissão, sem questionamentos, às exigências sociais. Embora se proclame apolítico, a vivência no exterior despertou nele a conscientização para a história e a situação social moderna do país. Na qualidade de pesquisador histórico, debateu em um de seus livros o delicado tema dos crimes cometidos durante a ocupação japonesa de países asiáticos durante a Segunda Guerra, buscando no passado razões para a condição de vazio existencial do presente. De volta ao Japão, pesquisou sobre o problema da violência social, que deu origem a Underground, livro sobre o ataque com gás sarin ao metrô de Tóquio pela seita religiosa Aum Shinrikyo (Verdade Suprema) em março de 1995, baseado em entrevistas conduzidas por ele autor com membros da seita e com vítimas do ataque. Escreveu também sete estórias curtas relacionadas ao grande terremoto de Kobe, reunidas na coletânea Kamino kodomotachi wa minna odoru (Todos os filhos de Deus dançam).
O gênero de suas obras é variado, englobando contos curtos, romances como Norwegian wood, Minha querida Sputnik ou Sul da fronteira, Oeste do Sol, obras de realismo fantástico em estilo detetivesco, a exemplo de Caçando carneiros e Dance dance dance, ou ainda estórias curtas de suspense e horror, como em Zombi (Zumbi), baseado no videoclipe Thriller de Michael Jackson, ou Rekushinton no yurei (O fantasma de Lexington). Além desses, Umibeno Kafka (Kafka à beira-mar), seu mais novo romance, lançado no final de 2002, tem sido rotulado de “road novel”, visto que seu protagonista, um rapaz de 15 anos fugido de casa, vive em contínua mudança dentro do Japão ao lado de um ex-combatente de guerra com quem acaba fazendo amizade.
O tema central da obra de Murakami é a perda e o vazio dos relacionamentos humanos. A perda manifesta-se sob diferentes formas: pela morte, como no caso dos suicídios de Kizuki e Naoko em Norwegian wood, ou por misteriosos desaparecimentos, como o de Sumire, protagonista de Minha querida Sputnik, o da namorada de orelhas soberbas, de Caçando carneiros, ou ainda o da esposa atormentada, em Nejimakidori chronicle (Crônicas do pássaro movido a corda). A esses somam-se a perda do idealismo dos anos 60, que conduziu à instauração de uma cultura altamente consumista, o comodismo e o conformismo, o desespero pela dificuldade em alcançar a verdadeira felicidade, a alienação como resposta às pressões sociais e a falta de individualidade. O fantástico em Murakami é usado como instrumento de crítica social, a exemplo da busca por uma identidade em Caçando carneiros. Pressionados pelo passado, suas personagens são repletas de melancolia, loucura e niilismo advindas de sua situação de indecisão e incerteza diante da vida. Todavia, mesmo lidando com temas existencialistas, Murakami é capaz de revesti-los de fina ironia e de um erotismo destituído de gratuidade e dotado de leveza quase inocente, num estilo sempre fragmentário e simbólico.
Críticos da velha guarda condenam a “ocidentalidade” da obra de Murakami e seu estilo inovador, rotulando sua literatura de frívola e contrapondo-a à literatura “sólida” de Oe, Tanizaki ou Mishima, os quais valorizaram a estética formal preconizada pela junbungaku. Tais críticos parecem no fundo recear o aspecto revolucionário da obra de Murakami de tentar subverter os parâmetros do elitista establishment literário japonês de dentro para fora. Uma revolução estilística que, diga-se de passagem, Murakami vem conseguindo brilhantemente alcançar ao quebrar todas as regras e correr altos riscos.
Jefferson Teixeira
tradutor das línguas japonesa, inglesa e francesa e Doutor em Economia Agrícola pela Universidade de Tokyo. Sua tradução de Norwegian wood, de Haruki Murakami, deve ser lançada neste ano pela editora Objetiva