Oswaldo Porchat e o ceticismo no Brasil
O filósofo Oswaldo Porchat ao receber o título de professor emérito da Unicamp, em 2011 (Antonio Scarpinetti)
Pouco conhecido fora da universidade, mas muito respeitado entre seus colegas, existe um filósofo que o público mais amplo merece conhecer. O fato de que seu nome circule somente entre os filósofos da academia não deixa de ser curioso, pois seus textos são claros, elegantes e acessíveis a leitores não-especializados. Mais do que isso, a filosofia que pratica costuma ter impacto imediato nas pessoas, independentemente de sua formação específica. Talvez isso se deva a seu temperamento modesto e despretensioso, pois jamais buscou a fama, nem se tornar conhecido pela mídia, preferindo, em vez disso, realizar um trabalho sério e consistente, dentro dos padrões rigorosos que sua profissão lhe exigia. Refiro-me a Oswaldo Porchat, professor emérito da Universidade de São Paulo, “uma das figuras mais importantes da Filosofia brasileira”, segundo o filósofo Guido de Almeida.
Tive a felicidade de estudar por muitos anos sob sua orientação, privei de sua estreita amizade, tenho ainda o prazer de conversar longamente com ele e concordo integralmente com Roberto Bolzani Filho, professor da USP e um de seus melhores alunos, quando diz que “Porchat é um dos poucos intelectuais que a academia me apresentou, sobre os quais creio ser verdadeiro dizer que é também um sábio, no sentido que tanto agradou aos antigos veicular: aquele que pratica o que pensa, que age como diz que se deveria agir, que faz, enfim, de sua vida, um grande argumento em favor de sua filosofia, porque, ambas, afinal, sempre se recusaram a separar-se.”
Quando adolescente, graças à educação católica que recebera, Porchat leu com afinco Tomás de Aquino. Já na faculdade, formou-se em Letras Clássicas e, em seguida, foi para a França estudar Filosofia Antiga com Victor Goldschmidt. Anos mais tarde, foi para os Estados Unidos e se dedicou à Lógica. Tendo voltado ao Brasil, suas atenções se voltaram para temas de Epistemologia, Filosofia da Ciência e para a Filosofia Moderna, estudando principalmente os empiristas. Ao longo de todas essas mudanças e reviravoltas, o ceticismo jamais deixou de ser uma preocupação central em suas reflexões filosóficas, nem a ideia de que a vida comum deveria estar no horizonte de toda e qualquer filosofia sã.
Hoje, Porchat é um consenso entre os filósofos. Roberto Horácio de Sá Pereira, professor da UFRJ e que se inclui entre a “imensa legião de seus amigos e admiradores”, identifica algumas de suas virtudes que somente quem convive com ele pode testemunhar: “Integridade, autenticidade e, acima de tudo, imensa generosidade.” Lívia Guimarães, da UFMG, reconhece que “em cada texto seu que leio, repete-se o mesmo encontro feliz com sua humanidade, inteligência, humor e curiosidade.”
A primeira razão para ocupar um lugar de destaque na Filosofia brasileira deve-se ao fato de ter formado várias gerações de filósofos. O próprio Porchat destaca a importância da docência na academia, pois “a vida de um Departamento são sobretudo seus estudantes”, e em suas atividades filosóficas, já que “sempre me senti muito bem em meio a eles, sempre gostei de conversar e conviver com eles. E dar aulas foi continuadamente para mim uma fonte de grande prazer.” Seu amigo Ezequiel de Olaso notava que “Porchat, quando se dedica a seus alunos, é extremamente generoso com seu tempo.” Poucos sabem de seu enorme cuidado na preparação de aulas, cada uma objeto de intensa dedicação, uma vez que se preparava, na medida do possível, para todas as perguntas dos alunos, a fim de dar-lhes uma resposta já amadurecida e bem considerada.
Porchat é uma personagem fundamental em nossa Filosofia também por ter aproximado nossos filósofos, que até então estavam dispersos Brasil afora e pouco ou nenhum conhecimento tinham uns dos outros. Quando, no final dos anos 1970 e começo dos 1980, dirigiu o Centro de Lógica e Epistemologia da Unicamp por ele criado, organizou uma série de colóquios, convidando dezenas de filósofos de várias regiões do país (e do exterior), que promoveram o mútuo conhecimento e respeito, favorecendo a enorme integração que vemos hoje. É o que reconhece Guido de Almeida, ao dizer que “Porchat deu início entre nós à prática da organização de colóquios, tendo assim contribuído de maneira decisiva para a discussão filosófica no Brasil.”
O respeito intelectual conquistado por Porchat deve-se, também, à qualidade de seus textos, que abriram muitos e diversificados caminhos. De sua obra, podemos destacar, em primeiro lugar, seu livro sobre Aristóteles, que já pode ser considerado um clássico. Essa obra é fundamental, não somente por ter inaugurado os estudos sobre Filosofia Antiga, mas também por ter aplicado, com rigor ímpar entre nós, o método estrutural, servindo como exemplo a todos aqueles que gostariam de se dedicar a um trabalho sério em História da Filosofia.
De outro ponto de vista, os estudos sobre Aristóteles marcariam o desenvolvimento das reflexões de Porchat. Como mostra Alberto Alonso Muñoz, os contornos gerais do dogmatismo já estavam presentes “em seu exame da teoria aristotélica da ciência.” Quando Porchat se insurge contra o dogmatismo e assume uma postura cética, nota-se que sua concepção de dogmatismo coincide, em boa parte, com a concepção aristotélica de ciência: um conhecimento sobre a natureza das coisas, um conhecimento que demonstra de maneira definitiva uma verdade sobre as coisas, um conhecimento tal que não poderia ser falso, um conhecimento que explica as articulações entre as coisas mesmas. Também Roberto Bolzani Filho identifica esse “realismo” da filosofia grega, extraído de seus estudos sobre Aristóteles, na raiz do ceticismo de Porchat.
O estudo da Filosofia Antiga deixaria outras marcas em seu pensamento. Em sua célebre aula inaugural, “O conflito das filosofias”, Porchat revela precocemente uma profunda desconfiança com relação às pretensões dogmáticas, para a qual os sofistas Protágoras e Górgias são decisivos. Embora essa desconfiança seja desenvolvida à luz dos textos de Sexto Empírico, não se trata ainda, como supõem alguns, de um texto cético. Certamente, o argumento (cético) fundamental utilizado contra o dogmatismo, e nunca abandonado por Porchat, já opera de maneira sistemática: a filosofia se lhe apresenta como uma multiplicidade de discursos, cada um dos quais proclamando sua verdade e denunciando os demais discursos filosóficos; ora, é impossível optar racionalmente, nesse conflito, por qualquer uma dessas filosofias. O argumento do conflito das filosofias assume uma configuração particular que, nesse contexto, o distancia de seu uso cético. Por um lado, não cabe sequer justificar racionalmente o abandono da Filosofia, já que essa seria meramente mais uma posição filosófica; por outro, essa suspensão do juízo a respeito de todas as filosofias dogmáticas não o conduz à tranqüilidade cética; assim, o ceticismo lhe parece uma posição insatisfatória ou, pelo menos, na qual ele não se reconhece inteiramente. Porchat não vê outra saída senão a renúncia “existencial” à Filosofia, um abandono filosoficamente injustificável, em que tanto dogmatismo como ceticismo são deixados de lado. É como se Porchat simplesmente se desinteressasse, não tanto da Filosofia, mas do conhecimento filosófico do mundo que aquela lhe prometia. Foi então que se deixou seduzir pela Lógica, um ramo da Filosofia sem tal pretensão, já que não fala do mundo.
Em meados dos anos 1980, Porchat encontra uma resposta filosófica ao ceticismo que lhe pareceu satisfatória. O ceticismo era, a seu ver, a principal ameaça para a Filosofia e a tarefa filosófica por excelência deveria ser dar-lhe uma resposta. Esse teria sido um dos legados de Descartes: toda e qualquer Filosofia que se pretenda verdadeira ou aceitável deve responder ao desafio cético. A solução filosófica de Porchat, em que a presença dos trabalhos de George Edward Moore é inegável, seria promover a vida comum a uma forma de realismo filosófico e as verdades da vida comum a verdades filosóficas. Não se deve, entretanto, confundir vida comum e senso comum. Para Porchat, o senso comum está repleto de crendices, superstições, falsidades etc., mas a vida comum consiste somente numa espécie de núcleo duro do senso comum, que se acha livre de todos esses erros e não contém senão verdades. O ataque cético às verdades da vida comum não obteria sucesso: estas resistiriam a todas as objeções que os céticos formulariam contra elas.
Num terceiro momento, Porchat percebe, graças ao trabalho de dois alunos seus, como ele mesmo reconheceu, que sua resposta ao ceticismo se baseia numa má compreensão do pirronismo antigo e que, na verdade, as críticas que lhe dirigira são infundadas. Em particular, Porchat tinha pensado o ceticismo como uma espécie de idealismo, inclusive o ceticismo antigo, que seria uma forma incipiente de idealismo. Ao menos o pirronismo estaria livre de uma, por assim dizer, contaminação de idealismo. Nesse momento, Porchat faz sua maior contribuição à Filosofia brasileira: a invenção do neopirronismo. Endossando finalmente o ceticismo, ao qual resistira por tanto tempo, Porchat dá-lhe nova roupagem, profundamente enriquecida por seus conhecimentos de Filosofia contemporânea, lançando mão das reflexões de filósofos como Willard van Orman Quine, sir Peter F. Strawson, sir Karl Popper e John L. Austin, entre outros.
As reações à obra de Porchat são muitas e as mais variadas possíveis. Entre essas cabe destacar seu debate, pertencente à segunda fase, com Bento Prado Jr., que em texto sutil, elegante e erudito, criticou duramente seu realismo da vida comum, fazendo não somente rigoroso diagnóstico sobre o que estaria por trás de suas mudanças de posição, mas também certeiro prognóstico, pois adivinhou que Porchat se tornaria cético, o que acabou acontecendo. Para Bento, Porchat estaria preso entre dois pólos, um cético, outro dogmático, e a “lógica” de seu pensamento o obrigaria a oscilar entre ambos, sem jamais sentir-se satisfeito em qualquer um deles.
O interesse de Porchat pelo ceticismo, ao longo de toda sua trajetória filosófica, deu um impulso notável aos estudos sobre sua história. Mas é do ponto de vista da reflexão filosófica que o neopirronismo abriu um caminho sem precedentes para a nossa Filosofia. Foi certamente o neopirronismo que mais polêmicas suscitou e ainda suscita entre nós. Roberto Horácio deu-lhe uma resposta de inspiração kantiana; Paulo Faria criticou-o porque aceitaria uma forma de idealismo; Danilo Marcondes Filho desenvolveu reflexões céticas paralelas às de Porchat, apoiando-se na Filosofia da Linguagem Contemporânea; Luiz Henrique Dutra e Hilan Bensussan levantaram objeções provenientes da Filosofia da Ciência; Roberto Bolzani Filho denunciou o que seriam pressupostos implícitos do neopirronismo; em minha própria pesquisa, procurei expurgar o neopirronismo de alguns elementos supostamente dogmáticos, depurando-o e tornando-o mais consistente; Luiz Antonio Alves Eva examinou o neopirronismo e, contra a interpretação de Bento, viu antes um “caleidoscópio” do que um “pêndulo”, cujos capítulos seguintes seriam previsíveis; entre tantos outros. Percebe-se claramente, nessas múltiplas e diversas reações, a riqueza e fertilidade do pensamento de Porchat. Creio não ser exagerado dizer que, talvez pela primeira vez em nossa história, temos um genuíno, extenso e rigoroso debate filosófico.
PLÍNIO JUNQUEIRA SMITH é coordenador do programa de pós-graduação em Filosofia da Universidade São Judas Tadeu