Os três bolsonarismos do jornalismo independente brasileiro
Sergio Moro e Paulo Guedes em novembro de 2018, na portaria do condomínio de Bolsonaro, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro (Antonio Lacerda/EFE)
No sábado passado, Bolsonaro simplesmente deu uma banana aos jornalistas que o queriam entrevistar. Literalmente, com gesto e tudo, como se não fosse o presidente da República, mas um moleque malcriado qualquer. O fato é que o jornalismo e o bolsonarismo vivem às turras. Afinal, do lado do governo Bolsonaro e do movimento social e político que o sustenta, que é o bolsonarismo, o jornalismo brasileiro que se crê independente e ainda acredita manter valores como objetividade e imparcialidade na produção do noticiário, é tratado à base de insultos, assédio e perseguição. Aliás, desde o fim da ditadura militar, o jornalismo como instituição e os jornalistas como profissionais do campo nunca sofreram uma investida tão pesada, compacta e sem limites.
Sim, eu sei que é da natureza da relação entre os campos da política e do jornalismo um certo nível de hostilidade e de desconfiança recíprocas. Antes, a sociedade e as instituições da democracia se beneficiam disto na medida em que um jornalismo que desconfia e suspeita da política por princípio não se dobraria aos interesses de manipulação e propaganda das facções políticas e dos seus projetos de poder. Por outro lado, é claro que os políticos se ressentem de um jornalismo desconfiado e desmascarador, que acumula junto à opinião pública uma cota de prestígio e influência frequentemente maior do que a fração de capital social e de poder dos atores políticos e da política enquanto instituição. Além de sempre presumir, nem sempre sem razão, que quando o jornalismo é duro contra um lado pode estar simplesmente favorecendo o lado adversário ou, simplesmente, trabalhando contra a política em geral. Mas é dessa tensão que, mesmo com tropeços e excessos, vive um ambiente politicamente saudável em qualquer sociedade do padrão liberal-democrático.
Sarney, Collor, Itamar Franco, FHC, Lula e Dilma, todos se queixaram do jornalismo, com maior ou menor razão. Alguns buscaram construir pontes com a instituição, estabelecendo canais de diálogo com as redações e facilitando o trabalho dos jornalistas que cobrem o governo por dever de ofício. Outros presidentes, por sua vez, desenvolveram considerável paranoia diante de um jornalismo cada vez mais poderoso pari passu ao decréscimo de prestígio do campo político, mas mesmo assim respeitavam pelo menos a ideia, se não a realidade, de um jornalismo livre e independente a serviço do interesse público. De toda forma, com altos e baixos, havia pelo menos o respeito cerimonial e a crítica argumentada, antes da agressão chula, antes da investida imoral contra as empresas de jornalismo e antes do assédio escrachado e exibicionista a jornalistas no exercício da sua função.
Se o petismo já adotava a sua teoria persecutória de que a mídia lhe é profissionalmente adversária e de que toda a grande imprensa brasileira formava o PIG, Partido da Imprensa Golpista, para promover um eterno terceiro turno contra o PT, o bolsonarismo tem tanto horror ao jornalismo independente quanto o diabo à cruz. Mas enquanto o petismo reprovava o jornalismo por meio de sua teoria das elites adversárias dos pobres e dos partidos populares, o bolsonarismo desqualifica qualquer órgão de imprensa ou qualquer jornalista que não seja reconhecidamente filiado às suas falanges. Além disso, especializou-se na arte de demonizar o jornalismo independente e jornalistas imparciais, reduzindo-os retoricamente a agências e agentes do comunismo, do petismo e de outros ismos que os valham.
No bolsonarismo, o jornalismo é desqualificado na sua qualidade socialmente reconhecida de relatar de forma confiável os acontecimentos políticos e de interpretá-los com a autoridade de quem conhece o mundo político ou na sua competência para determinar, como base em procedimentos institucionalizados de apuração e ausculta dos vários lados envolvidos, o que é fato e o que é invenção. É importante para o bolsonarismo que o jornalismo independente seja destituído de sua jurisdição social, da sua competência reconhecida, do poder simbólico de arbitrar sobre narrativas falsas e verdadeiras. É decisivo para os projetos do bolsonarismo que seja a ecologia midiática de direita – composta de blogs, perfis de influenciadores de direita em mídias digitais, sites de notícias destituídas de verdade e outras formas de produção e distribuição de fake news – a ocupar o lugar que precisa ser desocupado pelo que resta de jornalismo e jornalistas independentes.
E a imprensa brasileira, como reage a uma constante de insultos a seus profissionais, de ataque sistemático do presidente ao modelo de negócio das empresas de jornalismo e de investidas contra a sua credibilidade? Bem, ele divide o bolsonarismo em três. O bolsonarismo xucro, ogro e que dá bananas está sob vigilância constante e sob incessante carga da imprensa. Aí se incluem desde as bananices típicas de Jair Bolsonaro e de sua turma até as insanidades ideológicas em pastas como Educação, Meio Ambiente, Direitos Humanos e Relações Exteriores, dentre outras, que de loucos e fanáticos este governo é pleno. O jornalismo batizou isso de “pauta de costumes” e os jornalistas mostram que são civilizados e viajados demonstrando o próprio horror ante um governo tão ignorante. O segundo bolsonarismo é o morismo, a grande inovação profilática dos últimos tempos que há de ser a cura mais completa contra a corrupção política no Brasil. Este bolsonarismo, batizado de “pauta contra a corrupção”, o jornalismo o adora, mesmo que esteja já provado e comprovado que o morismo é um sistema de justiçamento seletivo em que a corrupção das instituições da Justiça e do Ministério Público está plenamente justificada porque praticada em nome do combate à corrupção do PT, a única que realmente interessa. O terceiro bolsonarismo é o guedismo, o mais feroz ataque ao Serviço Público e ao Estado de que se tem notícia, e é ainda mais querido pelo jornalismo.
Na verdade, o jornalismo chique (quer dizer, que não chafurda no lodaçal do bolsonarismo bruto) inventou uma diferença ideológica ou moral entre Bolsonaro, de um lado, Moro e Guedes de outro, que não encontra respaldo em fatos, simplesmente para justificar por que se sente lavajatista e liberal, mas não fascista. Ora, são apenas três versões da mesma cepa, é só o jornalismo não quer ver. Bolsonaro representa o bolsonarismo raiz, crescido na rua, o bolsonarismo moleque, lacrador, tosco, politicamente incorreto, desrespeitoso e autêntico. Moro é o bolsonarismo piá de prédio, criado com vó, gravata preta e lustro universitário, mas que escusa ou finge ignorar o lado miliciano e violador do Estado de Direito da sua facção. Guedes, por sua vez, é o bolsonarismo nutella, de férias em Miami e diploma de Chicago, o bolsonarismo consultor, farialimer e coach de sucessos, mas que depois de uns copos a mais vomita o seu enorme preconceito contra os “parasitas” que trabalham para o Estado e contra os pobres que insistem em viajar “lá pra fora”. É o bolsonarismo Caco Antibes, na feliz interpretação do jornal Extra, liberal no discurso, preconceituoso nos costumes. São só três versões da nossa miséria política e moral. Mas, para o jornalismo chique, não. Se o morismo é amado porque é antipolítica, o guedismo é adorado porque é anti-Estado e o jornalismo viajado no Brasil de 2020, como se sabe, tem que ser contra a política e contra o Estado.
E assim segue a relação sadomasô do jornalismo com o bolsonarismo. É tiro, porrada e banana recebidos no sábado, e passada de pano para o bolsomorismo e para o bolsoliberalismo no resto da semana. E segue o jogo.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)