Os alquimistas

Os alquimistas

Pedro Alexandre Sanches

“Os alquimistas já estão no corredor / e não tem mais nada, negro amor”, cantou Gal Costa, visceralmente, em 1977. O folk-soul-pop-tropicália chamava-se “Negro Amor” e fazia uma esquisita síntese entre o folk-rock do norte-americano Bob Dylan e o samba-soul do brasileiro Jorge Ben (hoje Ben Jor).

A citação da letra vinha de “Os Alquimistas Estão Chegando”, do genialmente doidão LP A Tábua de Esmeralda, lançado três anos antes por Jorge. E “Negro Amor” era uma versão de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti para “It’s All Over Now, Baby Blue”, composta e lançada por Dylan em 1965.

Caetano estava então constatando o que teria sido o óbvio para qualquer ouvinte mais observador, desde seus primórdios, em meados dos anos 1960: o rock folkeado de Dylan fora desde sempre uma das principais referências poéticas, se não propriamente musicais, para o folk brasileiro tropicalista de Caetano.

A conexão direta voltaria a ser religada em 1992, no álbum-show de revisão histórica Circuladô Vivo, para o qual Caetano apanhou do passado outro Dylan, o de “Jokerman” (1983), em inglês mesmo.

A influência do compositor na música brasileira existiu desde muito cedo (Dylan começou a lançar discos em 1962), mas nos primeiros anos parecia ser mais questão de espírito do tempo.

Surgido como cantor de folk tradicional, Dylan envolveu-se em confusão a partir de 1965, quando passou a sugar referências dos Beatles, dos Rolling Stones e do rock em geral, colocando, por exemplo, guitarras em sua música, em lugar dos violões habituais do folk. Não foi perdoado pelos artistas mais tradicionalistas do gênero.

A arenga era muito parecida com a que aconteceria, dois anos mais tarde, aqui no Brasil, em torno da famigerada passeata contra a guitarra elétrica, atiçada pela TV Record e capitaneada por Elis Regina em asfalto paulistano.

Os fundamentos eram os mesmos: para os adversários, as guitarras eletrificadas iriam acabar com a “pureza” do folk, nos Estados Unidos, ou da nascente MPB universitária, aqui no Brasil. O inimigo oculto por trás das guitarras era o sucesso comercial avassalador do yeah yeah yeah dos Beatles ou do iê-iê-iê de Roberto Carlos e sua corte, que deixavam tradicionalistas para trás, comendo poeira.

Dylan encarnou a modernização pós-roqueira lá fora, causando encolhimento em carreiras folk como as de sua ex-namorada Joan Baez ou de compositores como Pete Seeger e Phil Ochs. Aqui, o mesmo conflito tomou feição de guerra entre “nacionalistas” e “entreguistas”. Elis, Geraldo Vandré e Edu Lobo combatiam a invasão imperialista de artistas que faziam substituição de importações, tivesse o fenômeno industrial o nome de jovem guarda ou tropicália.

Embate parecido acontecera no final dos anos 1950 com a bossa nova, mas, exceto o crítico marxista José Ramos Tinhorão, na segunda metade da década de 1960, ninguém mais parecia se importar com a influência “ianque” do jazz na bossa – até artistas mais tradicionais-nacionalistas, como Chico Buarque, Edu e Vandré, já se orgulhavam de descender da bossa nova de Tom Jobim e João Gilberto.

Havia outra semelhança entre Dylan, Caetano e demais modernizadores, no hemisfério norte ou no sul (o que, no caso brasileiro, significava a MPB universitária inteira). Todos haviam se iniciado na música prezando e praticando algo que se chamava “protest song”, lá, e foi literalmente traduzido aqui como canção de protesto.

Dylan foi tido como um bardo politizado até muito tempo depois de ter deixado de praticar as canções políticas contundentes dos anos de ascensão, como “Masters of War” (1963), “The Times They Are A-Changin” (1964) e “Chimes of Freedom” (1965), entre inúmeras outras.

Chico, por ironia, era menos politizado em seus primeiros anos profissionais (vide “A Banda”, “Carolina”, “Sabiá” ou “Bom Tempo”), mas, antes da eclosão da tropicália, a massa emepebista compunha e gravava protestos, de Edu Lobo a Gilberto Gil, de Maria Bethânia a Nara Leão, de Vandré a Caetano.

Este último cuspiu fogo nas patrulhas ideológicas com “Odara” (1977) e polemizou com as esquerdas inúmeras vezes, mas é até hoje visto como artista engajado e autoridade credenciada a palpitar sobre todo tipo de assunto político – e parece amar a posição, ainda que reclame dela.

Houvesse ou não relação de causa e efeito entre uma coisa e outra, a vitória das guitarras, aqui como lá, correspondeu à derrocada da música de protesto como era praticada nos anos 1960. Hoje rotulam-se canções politizadas de “chatas” a torto e a direito, como se essa fosse uma inevitabilidade desde que o mundo é mundo (enquanto isso, rappers paulistas e funkeiros cariocas continuam compondo protestos ouvidos por multidões nas periferias).

Raul Seixas

Afora a atração explícita de Caetano por Dylan, a música brasileira parece em geral intimidada pela grandeza poética do trovador norte-americano. A jovem guarda esbaldou-se em produzir versões em português para os rocks dos Beatles, mas nunca teve coragem (ou vontade) de mexer com Dylan.

Em 1965, o conjunto vocal Trio Melodia até fez uma versão para “Blowin’ in the Wind” (1963), chamada “Escuta a Voz do Vento”, mas não passou muito disso. A influência prosseguiu muito mais de modo indireto.

Exceção curiosa, e deliciosamente iconoclasta, é a do roqueiro baiano Raul Seixas, que apreciava surrupiar trechos do repertório de gente como Elvis Presley, sem lhes dar crédito. Ele também aprontou para cima de Dylan: “Meu Amigo Pedro”, de 1976, é uma cópia descarada da melodia de “Billy 1”, da trilha sonora cinematográfica Pat Garrett & Billy the Kid, composta em 1973 por Bob the Kid.

Referências mais diretas são pontuais, mas marcantes, especialmente dos anos 1980 para cá. Os ásperos nordestinos que despontaram nos anos 1970 são particularmente sensíveis à obra de Dylan, sobretudo Zé Ramalho, Fagner e Geraldo Azevedo.

Todos produziram versões em português de seus folks, sendo as mais difundidas “Romance no Deserto”, suculenta releitura de 1987 de Fagner para “Romance in Durango” (1976), e “Batendo na Porta do Céu”, recriação de 1997 de Zé Ramalho para “Knocking on Heaven’s Door”, recolhida do mesmo disco de que Raul surrupiou “Meu Amigo Pedro”. O gaúcho Vitor Ramil, em sua “estética do frio”, também costuma elaborar transcrições de Dylan.

Uma favorita de brasileiros é “Hurricane”, do colossal disco cigano Desire (1976, o mesmo de “Romance in Durango”), transformada em “Furacão” (1986) por Cida Moreira e em “Frevoador” (1992) por, ele de novo, Zé Ramalho. É desse último, por sinal, o mais audacioso e bem-sucedido esforço de “dylanizar” a MPB. Em 2008, Zé lançou Tá Tudo Mudado, um disco todo de adaptações nordestinas para os folks nortistas de seu influenciador.

Destaque máximo, ali, era “Mr. do Pandeiro”, em que o “Mr. Tamborine Man” (1965) de Dylan reencarnava nordestino brasileiro, na figura do folkman paraibano de vanguarda Jackson do Pandeiro. “Ei, Jackson do Pandeiro / toque para mim”, gemia amorosamente Zé Dylan.

O respeito inspirado por Dylan em terras tropicais encontra paralelos na distância guardada por nossos profanadores de outro compositor crucial do pop anglo-saxão da geração dos anos 1960, o britânico David Bowie.

Por incrível que isso pareça hoje, David surgiu por volta de 1967 como artista folk calcado em Bob – “Song for Bob Dylan” era o nome de uma composição sua incluída em Hunky Dory (1971), o disco que marca a transição de Bowie de copiador de Dylan para originalíssimo coinventor do chamado glam ou glitter rock. “Changes” abria o LP, pedindo por mudanças modernizadoras ao mesmo tempo em que ecoava a agora velha “The Times They Are A-Changin”.

Principalmente a partir dos discos fundados em personas (semi)fictícias The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spiders from Mars (1972) e Aladdin Sane (1974), o rock conceitual e profundamente andrógino de Bowie tornou-se referência capital (mas raramente admitida em público) para tropicalistas que preferiam o protesto comportamental à politização agora tachada como antiquada dos violeiros e violonistas da década anterior.

Ney Matogrosso e seus Secos & Molhados, Dzi Croquettes, Maria Alcina, Edy Star e Frenéticas eram exemplos de glam emepebistas sintonizados no espírito do tempo bowieano. Se a crueza de Presley e Dylan eram moldes para o rock anárquico de Raul Seixas, a androginia de Bowie, (Mick) Jagger, (Lou) Reed e Iggy (Pop) revolucionou a cabeça de Rita Lee – e, com ela, todo o pop-rock brasileiro.

Seu Jorge

Rita nunca falou muito explicitamente sobre isso, mas seu visual ruivo na época de “Mamãe Natureza” (1974), “Ovelha Negra” (1975) e “Babilônia” (1978) era Ziggy Stardust e Aladdin Sane na veia. “Pare de pensar que só você é que é / largue de dizer ‘não sei se é homem ou se é mulher’ / pare de pegar aquele amigo pelo pé”, clamava o hard rock “E Você Ainda Duvida”, assinado pelas Cilibrinas do Éden (Rita mais Lúcia Turnbull), dupla e rock engavetados pela gravadora Philips em 1974.

Vetos à parte, quando o primeiro disco pós-Mutantes de Rita finalmente veio à tona, veio todo impregnado de androginia pop e visual glam. “Lacinhos cor-de-rosa ficam bem num sapatão / eu nasci descalça, pra que tanta pergunta?”, protestava-indagava “De Pés no Chão” (1974), faixa de abertura do disco Atrás do Porto Tem uma Cidade, no qual Rita era secundada por uma banda pansexualmente batizada de Tutti Frutti.

Rita, como Raul, foi exceção brilhante ao comportamento geral da muitas vezes medrosa nação MPB. Bowie, como Dylan, nunca foi muito diretamente molestado pelos versionistas brasileiros. Demorou até 1989 para que um grupo brasileiro, o gaúcho Nenhum de Nós, vertesse para o português “Starman”, da fase Ziggy Stardust, tomando as paradas de assalto com o hit cosmopop “Astronauta de Mármore”.

Bowie continuou praticamente intocado, até o advento de um maluco chamado Seu Jorge. Também ator, ele participava quase como figurante do divertido filme pop A Vida Marinha com Steve Zissou (2004), do cineasta norte-americano Wes Anderson.

Seu personagem, um marinheiro, vivia com um violão em punho, e o ator-cantor surpreendeu a equipe de filmagem com as versões improvisadas que passou a fazer, em português, para clássicos da fase andrógina de Bowie como “Life on Mars?” (1971), “Rock’n’Roll Suicide” (1972) ou “Rebel Rebel” (1974).

Em consequência da diabrura, o personagem ganhou mais espaço no filme, e as 13 versões que o músico compôs tornaram-se um disco à parte da trilha sonora oficial do filme, chamado The Life Aquatic Studio Sessions. “Eu já quase morri de fome, mas hoje estou bem”, cantava em “Ziggy Stardust” Seu Jorge, ex-morador de rua que foi parar em Hollywood.

“Pretinha, eu tenho uma proposta indecorosa pra te fazer / quero que você venha comigo, nega, pra você ver”, pervertia “Queen Bitch” (1971), originalmente inspirada em Lou Reed e em seu grupo Velvet Underground.

As releituras, como se pode notar, não tinham nada a ver com as letras sexuais dos originais – mas Bowie em pessoa elogiou o trabalho desse Raul Seixas pós-pós-tropicalista.

Paradoxalmente, desde que trocou o violão pela guitarra, a MPB raramente ousa se despir do manto do medo e da capa da obediência. Assim, a manada pouco ouve as vozes traquinas e rebeldes de gente como Raul, Rita, Caetano (em “Negro Amor”) ou Seu Jorge.

Mas suas homenagens amalucadas são do melhor tipo que há: respeitam os objetos de seus amores sendo infiéis e irreverentes, antes de reverentes e submissos. O pai da pop art, Andy Warhol, nem deve ter nunca ouvido falar deles, mas se estivesse vivo e os conhecesse teria orgulho desses filhotes que espalhou pelo mundo.

Pedro Alexandre Sanches é jornalista e autor de Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba (Boitempo)

(2) Comentários

  1. Usar Sabiá e Bom tempo como exemplos de um Chico “menos politizado” é um erro de interpretação, Pedro.

  2. A propósito, Gal Costa merece um dossiê. A cantora que mudou o canto feminino brasileiro, musa da Tropicália, quebradora de tabus, fãs que a seguiam na famosa “dunas da Gal”, sem contar sua fantástica discografia do final da década de 60 e toda a década de 70.

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