Privado: Onirokit

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Privado: Onirokit

Marcia Tiburi

Onirokitsch pode-se pronunciar onirokit. A sonoridade das palavras nos engana. O termo kit permite que imaginemos facilmente uma embalagem bem pensada como as usadas para organizar sachês de chá. Onirokit seria uma caixinha cheia de todas as drogas prontas a provocar em seus usuários aquela sorte de efeitos mentais e psíquicos que conhecemos como alucinações. O termo kitsch, por sua vez, diz de uma espécie de antiestilo cuja característica também é causar efeitos.

Mas há mais no trocadilho do que supõe a filosofia: o que um organizado objeto de desejo – a pandórica caixinha cheia de drogas – teria a ver com a estética kitsch? Ora, as drogas provocam efeitos psicofísicos que nada mais são do que efeitos estéticos. Seja com o onirokit ou com o onirokitsch, estamos a falar do que age sobre a percepção humana. Drogas psicotrópicas e alucinógenas são aquelas que afetam nossa percepção. Do mesmo modo, produtos culturais afetam nossa percepção. Não é improdutivo, nesse sentido, perguntar se o fundamento da indústria cultural não seria a drogadição. Vejamos como.

Naquilo que Christoph Türcke chamou de “sociedade excitada”, está em jogo a natureza viciada e viciante da ordem social estética. Ora, toda droga é estética na medida em que atinge a corporal percepção humana. A injeção de estímulo estético na percepção coletiva até o ponto de transformar a realidade em uma forma de alucinação. Irônico é dizer que, no contexto da indústria cultural, revela-se que o que não pode ser vendido legalmente – drogas – pode ser vendido esteticamente. Mas a droga estética – em sentido lato – não é apenas o trash, ou a imensa gama de “sobra” no lugar do que entenderíamos como “obra” de arte, mas tudo aquilo que captura pelo efeito falso. Para além do fetiche, a mercadoria hoje é experimentada como drogadição. Podemos dizer que a atualíssima forma da mercadoria é, pois, o onirokit, um sonho barato que, visto de perto, faz pensar em alucinação.

Caminho curto para o sonho

Diz-se kitsch para tudo que provoca um específico e contraditório efeito: do anão de jardim à estampa de oncinha. A contradição entre o material pobre e o efeito que se pretende rico – como em “pedras preciosas de plástico”. Tal efeito perturbou os sacerdotes do bom gosto que, irritados com imitações baratas, deram o nome à coisa. Para eles, kitsch é a estética do mau gosto: “coisa de pobre” ou, o que é pior, de “novo-rico”.

Mas o kitsch tem uma vasta clientela, como teria o onirokit caso pudesse ser vendido em quiosques de shopping center. O kitsch vem a ser a reconciliação das contradições do capitalismo que com ele tanto goza quanto se ressente. Como estética do resto, o kitsch está entre o trash e o luxo naquele momento em que o luxo não passa de desejo de causar efeito, mesmo que seja o efeito zero das lojas chiques. Onirokitsch foi o termo cunhado por Walter Benjamin para falar deste “caminho direto à banalidade” que prenunciava o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer. Benjamin falou de um sonho “adornado baratamente de frases feitas”. Hoje podemos pensar na televisão e nos shopping centers, enquanto ele pensava no cinema e nas Passagens  de Paris. Substitutiva do sonho, a televisão é a principal máquina de produção do onirokitsch. Funcionando como caixinha organizada, não seria exagero chamá-la de onirokit. Mas já não carregamos esse kit, é o kit que nos carrega quando seu nome é sociedade do espetáculo. O espetáculo é o vício visual. A nova fissura.

A sociedade viciada em percepções quer emoções fortes. Quer sentir demais. E paga por elas não apenas correndo ao show de rock, ao cinema, ou pagando a TV a cabo, mas também indo à igreja que vende a fé como grande emoção. Mas há também uma mercadoria mais simples que garante a sensação. É o ornamento barato. O vício contemporâneo em decoração, na moda, no mundo fashion em geral, serve para acobertar a angústia com o espaço aberto do sensível, o deserto do real onde teríamos de colocar o sonho verdadeiro ao qual podemos ainda chamar de imaginação. Drogas ilegais não podem obviamente ser comercializadas, o mundo do capitalismo vende apenas o efeito da droga nas “sobras” que são as mercadorias culturais industrializadas. Se o onirokit não pode não ser legalizado, o onirokitsch acha rápido seu lugar. A violência da decoração de Natal dos shoppings e das grandes cidades é, por fim, o triunfo da alucinação no tempo da miséria da imaginação. O deserto do real é a esfera que a arte acaba por salvar em  cada uma de suas ações mesmo quando a realidade não passa mais da terra de ninguém onde a fantasmagoria, as sombras da imaginação colonizada e assassinada, vem reclamar seu lugar.

(15) Comentários

  1. Interessante texto enquanto invólucro atualizando Benjamin. Curioso como esta atualização é justamente o que ele critica como expressão moderna da excitação artificial dos sentidos, ou seja, a roupagem nova, estética também textual, estilização de um assunto mais do que conhecido. Nesta idade mídia, a tecnologia mecânica já cumpriu seu papel de nos ‘livrar’ da escravização braçal enquanto a tecnologia digital, num primeiro nível, nos torporiza os sentidos. Pena não haver aqui aprofundamento nas razões por detrás da idade mídia, que vai além da indústria. Nos vendem a droga barata e legal mas os resultados são o total controle orweliano corporativista. Talvez a única obra de arte possível ainda seja o auto descobrimento, encarar o espelho e, através do provável choque, estimular o próximo a fazer o mesmo. Qualquer inovação só pode agora ocorrer intimamente, de dentro pra fora.

  2. Márcia Tibure você sempre super inteligente em tudo que faz…E nesse texto mostrou mais uma vez que tu és uma mulher com conteúdo…Sou uma grande fã sua e gosto muito do teu trabalho no Programa Saia Justa e semrpe que posso vejo alguma coisa que você faz na tv ou na net…Bjoos e feliz ano novo…Estou com saudades de assistir o programa saia justa…adorei seu texto Márcia.

  3. Não esperava outra coisa… texto curto mas que merece ser refletido, analisado, discutido, divulgado.

  4. Primeiro de janeiro de 2011. Passagem de ano. Posse da Presidente Dilma.
    Estamos todos com overdose de imagens pirotécnicas e políticas. Segunda, 03 de janeir será verão para alguns, aguaceiro para outros, mas a TV será sempre o olho antimulticlarividente. Triste e colorido e sonoro deserto do real.Procure a toca do coelho Neo. Parabens pelo texto Marcia Tiburi.

  5. Parabéns pelo texto. Acredio que ele tenha uma grande relação com o livro Ornamento da Massa do Siegfried Kracauer.

  6. Wener M, aperitivo muito bom esse, vi que soube apreciar.
    A fissura, antes sutil, atualmente arrombada pela televisão, é a passagem indiscreta para nossos fantasmas que perdem a esperança; que vida (viva! “sic”), se fosse certa outra vida após a morte, não se jogaria ser adentro. “Drogas ilegais não podem obviamente ser comercializadas, o mundo do capitalismo vende apenas o efeito da droga nas “sobras” que são as mercadorias culturais industrializadas.”
    Como dizia Cazuza “Estou pedindo a sua mão…” Quem não for espelhos onirokits, mesmo sendo poeta ou filósofo, ou ambos, mesmo sendo qualquer profissional liberal (!), não vai encontrar mão para sair de sua própria fissura; sabe-se que quem voltar de sua “fissura” (Deleuze) e apagar a memória da vida fissurada, tem alguma chance de encontrar uma mão que aprecia “fragilidade”.
    Tem mão pra tudo os produtores de onirokitches.

    (Marcia, é voce pessoalmente que não publica meus comentários em seu Punk?)

  7. Lendo essa incisiva coluna percebo , inevitavelmente, as redes socio-virtuais que tanto nos envolvem hoje, como mecanismos que alimentam o “ornamento barato”.Vejo a criação de um perfil virtual(na maioria dos casos) como fuga do “deserto do real” através de sua ornamentação.Isso alimentaria a estética kitsch, portanto bloqueando o íntimo contato do indivíduo com sua autêntica imaginação.O kitsch, com seu efeito viciante, comodista, pseudo-onírico, permanece como mediador das contradições do capitalismo, e por isso aceitável como ordem inabalável por grande parte da população.”É mais fácil seguir um caminho pré-existente.Criar, eis o grande desafio”.Parabéns pelo excelente texto!

  8. Os textos da Macia Tiburi são incriveis. Estão sempre atualizados e com fundamentos filosoficos, antropológicos e sociais. Parabéns!

  9. “Qualquer inovação só pode agora ocorrer intimamente, de dentro pra fora.” Uma gentileza verdadeira, afinal, prova que esperança não é tão somente um paliativo da “idade mídia”.
    Só havia um ponto fraco no inimigo invencível e íntimo: o seu calcanhar. No contexto, a hiperexposição é o ápice do espetáculo, e todo espetáculo se sustenta, mas se esconde, em sua intimidade, portanto – sem confundir o autor com sua obra – basta expô-lo massivamente também, em outras palavras, desmascará-lo; por filosofia, ou qualquer meio, porque a intencionalidade define as percepções…

  10. Interessante trabalho de neologismo. Já havia lido algo parecido, porém, não no sentido que foi conduzido por Benjamim, vendo por seu ensaio. É um complexo “fenômeno do absurdo” pelo qual foi gerado ao longo das sociedades capitalistas em torno do consumo de massa, ainda mais interessante quando dizemos que é um apego de “massas” algo que tende e individualizar ainda mais e, de certo modo, banalizar. Sobre assunto, gosto muito de citar o crítico e filósofo francês contemporâneo Gilles Lipovétski.

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