‘Onçanta’, um totem

‘Onçanta’, um totem
(Arte: Revista Cult)

 

  1. Duas ou três citações

[…]

“A onça era gente, ainda não tinha pelo.”

“A onça lembrou-se de urrar porque já estava amanhecendo e começou: ‘Ao, ao, ao, bo, bo, bo, bo.’”

Giaccaria e Heide: Jerônimo xavante conta.

[…]

“Voltaram para junto da cobra. Aí a anta disse [para o rapaz]: ‘Isso não é cobra! É o meu fogão!’ Ela explicou: ‘Dizem que a cobra corre atrás para morder. Mas isso não é cobra. Para nós, antas, o cachorro é uma cobra!’”

Theodor Koch-Grünberg: Mitos e lendas dos índios Taulipangue e Arekuná.

[…]

“queria sim escrever o meu poema fixo entre as palavras móveis”

Herberto Helder: Servidões.

[…]

  1. “O rapaz, a onça e o fogo”

[…]

O referido conto, pela própria resistência que parecia oferecer à leitura, deixou-me fascinado pela cosmologia indígena […]

[…]

Gostaria, porém, voltando à literatura xavante, de esclarecer que o conto indígena que me parecera tão enigmático quanto fascinante, e do qual eu nunca tinha ouvido falar nem lido nada a respeito, me caiu nas mãos quase por acaso […]

[…]

O relato indígena narrava a inusitada relação entre um jovem xavante e uma onça, relação que implicou o afeto do felino para com o ser humano e que culminou na doação ao indiozinho de algo precioso: o fogo doméstico ou de cozinha […]

[…]

[…] a onça não era um personagem “convencional”, tampouco “bonzinho”, pois, quase ao mesmo tempo, ela se apresentava como um animal feroz e um simpático e bondoso “vovô”, assumindo assim, ao longo da ação, identidades contraditórias e mesmo opostas. Apenas no final do conto a onça adquire, finalmente, uma aparência inequívoca e definitiva. Esse caráter paradoxal da onça […]

[…]

Esse caráter paradoxal da onça, na maior parte do relato, contrastava com o caráter definido do adolescente, cuja identidade me pareceu fácil de apreender, ao contrário da identidade felina, que se tornou, como já aludi, um grande enigma para mim […]

[…]

Isso atiçou a minha curiosidade, pois senti, ao tentar compreender essa ambiguidade, que a onça resistia à minha leitura, o que, compreensivelmente, acabou se tornando para mim algo inquietante, digno de atenção e até estudo […]

[…]

[…] e me sentindo cada vez mais perplexo com o comportamento imprevisível desse personagem, decidi tentar desvendar a onça sem essência definida (nem animal nem ser humano, mas ambas as coisas), que me intrigava e seduzia enquanto forma mítica em movimento “perpétuo” […]

[…]

[…] até então quase nada que eu lera esclarecia, é claro, o que mais me interessava no relato […]: o caráter compósito da onça e as estratégias usadas pelo narrador para que a ambiguidade felina aflorasse na trama, do começo ao fim […]

[…]

Hoje, revendo essa etapa inicial da minha atividade de pesquisador, posso afirmar que a onça xavante e, depois, mais genericamente, a onça mítica dos povos de língua jê, conhecida de diferentes tribos do cerrado e da floresta (Caiapó, Timbira, Xerente etc.), sobre a qual acabei me debruçando longamente […]

[…]

Creio então que posso afirmar […] que ainda não devo dar por encerradas minhas pesquisas estimuladas pela consideração da exuberância estético-espiritual da onça jê, cuja irreverência ou forma mutante e elástica é inseparável, eu acreditava e acredito ainda, do rito […]

[…]

O conto oral e o rito indígena […] sem dúvida compartilham a mesma plasticidade […]

[…]

Por essa razão, sinto-me hoje em dívida para com essa onça fecunda […] e, também, é claro, com o narrador das suas ações, Jerônimo Tsawé, cuja destreza literária não me parece pequena […]

[…]

Afirmei que a onça desse mito me abriu uma perspectiva de leitura e orientou um roteiro de pesquisa […]

[…]

Inicialmente, eu não dispunha de um instrumental teórico e analítico que me permitisse abordar a questão do caráter compósito da onça […]

[…]

[…] embora, com isso, eu não esteja querendo sugerir que eu tenha, num determinado momento, encontrado finalmente o instrumental certo ou o mais eficaz, o qual me tivesse permitido desvendar o mistério do felino […]

[…]

Percebi que não me cabia tentar […] “domesticar” um personagem indomável […]

[…]

[…] também desejava ter informações sobre os ritos relacionados com essa literatura, pois talvez neles estivesse a chave para decifrar o caráter da onça, a qual continuava me parecendo, depois de haver comparado muitos contos indígenas entre si, uma personagem única e inconfundível […]

[…]

Conheci finalmente Jerônimo, cuja data de nascimento era, conforme percebi, meramente especulativa. Contudo, a maioria dos índios com os quais conversei sobre o assunto me garantiu que ele teria perto de 100 anos, ou talvez até mais. Realmente, Jerônimo era muito idoso, mas continuava passeando pela aldeia e seus arredores […] Ele parecia estar sempre sorrindo […]

[…]

O fato é que compreendi, então, que eu não conseguiria arrancar de Jerônimo […] nenhuma elucidação sobre o caráter da onça. Nossas relações, a partir desse momento, continuaram cordiais como sempre, mas se limitaram a passeios ocasionais pela aldeia, que realizávamos sem dizer nada um para o outro […]

[…]

No meu caso, eu ainda acreditava na existência de uma chave que me permitisse ao menos entreabrir, num futuro não muito remoto, a porta da “alma” […] da onça jê

[…]

[…] mas eu só tinha certeza de uma coisa: essa chave não estava mais sob a guarda de Jerônimo […]

[…]

Poderia ainda estar na aldeia e até ser acessível a mim, mas ela certamente não pertencia mais àquele ancião amável, com quem eu mal conseguia me comunicar […]

[…]

Com quem então estaria essa chave?

[…]

[…] além disso, a cerimônia que eu pretendia vivenciar na aldeia, e que poderia (segundo ingenuamente acreditava) me dar a chave que eu tanto buscava, era completamente artificial e em hipótese alguma poderia ser chamada de rito indígena: consistia apenas em me sentar diante do narrador xavante, quem quer que ele fosse, e ouvi-lo contar mitos para mim mesmo […]

[…]

Encontrava-me, portanto, numa situação desconfortável […]

[…]

[…] houve a oportunidade de conversar com um pesquisador salesiano muito informado, George Lachnitt, estudioso da língua xavante de quem logo acabei me tornando amigo. Ele comentou comigo a atuação performática de narradores experientes diante das crianças da aldeia […]

[…]

[…] as crianças eram reunidas diariamente na escola da aldeia, onde, como parte do currículo, às vezes ouviam atentamente histórias xavantes e se deliciavam com as aventuras do menino que fora adotado por uma onça ora feroz, ora paternal […]

[…]

[…] lançavam então gritos de susto e depois também gargalhavam, enquanto o narrador, imitando os sons da fera mítica, ameaçava avançar sobre o público eletrizado […]

[…]

Viajei depois para fora do Brasil ainda pensando no personagem que eu considerava o mais intrigante da literatura xavante, a soberba e fascinante onça, e refletia sobre a “subjetividade não-humana”, que pressupõe uma época (que nada tem de primitiva) em que as fronteiras ontológicas são porosas e na qual ocorrem os contatos mais inusitados entre o índio e o animal […]

[…]

Aterrissei finalmente longe da aldeia […]

[…]

[…] necessariamente, a questão principal ainda era para mim, nessa época, a instabilidade do caráter da onça […]

[…]

Passei a encarar essa instabilidade como fruto legítimo da construção narrativa indígena e não consequência de possível falha ou hesitação do narrador […]

[…]

Assim, só me cabia reconhecer […] a existência de uma poética mitológica jê […]

[…]

“Como os ritos, os mitos são in-termináveis” (Lévi-Strauss, Mitológicas) […]

[…]

Ao final de tudo, senti que era preciso aceitar integralmente a “inconstância” (para usar um termo caro a Eduardo Viveiros de Castro) da alma da onça e não buscar mais, por trás dela, como eu havia pretendido, algo bem mais estável e até apaziguador, que transformasse a criatura selvagem num personagem domesticado que não desferisse mais golpes sujos no leitor incauto […]

[…]

Pressupus, depois de uma conversa com o helenista francês Jean-Pierre Vernant, que o destino de Ulisses poderia servir de padrão para iluminar de alguma forma a vital complexidade ética da onça mítica, que se movia entre a lógica da doação (ou a lógica do dom) e a lógica da vingança – depois de “doar” o fogo aos homens, ela declara guerra ao gênero humano […]

[…]

Sem pretender recuperar aqui, depois de tantos anos, as palavras de Vernant, […], ressaltarei apenas que ele enfatizou, no nosso diálogo, a complexidade de Ulisses, e defendeu que essa complexidade podia ser discutida sem que se corresse o risco de reduzi-la a algum truísmo sobre a identidade grega e ocidental […]

[…]

[…] como a questão da hospitalidade indígena […]

[…]

Talvez eu ainda venha, ao retomar futuramente a análise, que considero para sempre inconclusa, do caráter da onça jê, rediscutir o pacto da hospitalidade mítica, buscando, por meio dele, uma melhor compreensão “da alegria e da tensão” visíveis no relato jê, quando a onça aceita receber o estrangeiro, o jovem índio, em sua toca mágica, chamando-o, a partir de então, de “meu neto” […]

[…]

[…] o mito jê da origem do fogo, que eu então vinha estudando em alguma de suas versões, havia se transformado, entre os Bororos, vizinhos dos Xavantes, em mito da origem da água […]

[…]

3. Elogio das transformações

[…]

Em 2001, quando publiquei Mais ou menos do que dois, a transformação do mito no seu contrário, no plano estrutural e no plano semântico, foi a principal estratégia de que me vali para organizar os textos desse meu primeiro livro […]

[…]

[…] e ela de novo aparece, em 2015, no meu nô indígena, O fim de tarde de uma alma com fome, que se apresenta também como uma série de versões de uma “mesma” história, cujos termos tendem a trocar de sentido, invertendo-se, modificando-se […]

[…]

Ou seja, de um modo geral, os meus livros de poesia e ficção se estruturam sobre uma série de versões, que vão dialogando entre si e se transformando, inclusive no modo, pois podem passar do poema em verso para a narrativa em prosa e vice-versa […]

[…]

***

Não existiria […] um modelo normativo da narrativa indígena, um modelo único, já que o fragmento também é uma narrativa completa, tanto para o narrador quanto para o seu público […]

[…]

A série de versões de Lévi-Strauss, por mais plástica e fascinante que seja, pode muito bem repousar num único modelo narrativo, que apenas se inverteria ao final da série, como um reflexo especular da versão inicial, trocando, portanto, de sentido, mas não necessariamente de forma. As versões que, no interior da série, não se apresentarem completas ou se revelarem fragmentárias, serão consideradas espúrias, ou parciais, mas isso não me parece mais aceitável hoje, depois da minha leitura do estudo de Barre Toelken (para quem o fragmento evoca a totalidade sem perda de informação) […]

[…]

Essa proposta de Barre Toelken, assim como a de Lévi-Strauss, influenciou não apenas a minha percepção do que é (ou pode ser) uma narrativa indígena, mas também a composição dos meus livros de poesia e ficção […]

[…]

Exploro a oscilação das formas literárias, indo da série de Lévi-Strauss (ou à moda de Lévi-Strauss, já que o meu tema nem sempre é mítico) à série de Barre Toelken (ou à moda de Barre Toelken […]

[…]

Por isso os meus livros (não sei se todos) passam “com facilidade” do poema à prosa e da prosa ao drama e do drama ao aforismo nonsense (não sentencioso), ao percorrer várias versões de uma mesma história […]

[…]

Derrida destaca […] a “imobilidade” do título, ao longo das versões sucessivas, da série de versões de uma história […]

[…]

A questão do título dos relatos indígenas é, parece-me, ainda pouco estudada, assim como a definição de suas bordas, de seus limites […]

[…]

Lévi-Strauss, ao falar de séries de narrativas e, Barre Toelken, de vários níveis de sentido, certamente nos ajudam a pensar os paradoxos da “imobilidade” do título […] assim como a inconstância das margens (o que é fragmento e o que é totalidade?) […]

[…]

Esse relato imprevisível, praticado tanto por Maurice Blanchot quanto, acrescento eu, pelos narradores indígenas, culmina numa “vertigem classificatória”, numa quase, acredito, impossibilidade de classificação segundo os gêneros estabelecidos […]

[…]

Pergunto en passant se a onça mítica não poderia ser a metáfora ou o emblema desse relato “selvagem” que não quer (ou que não pode) ser “domesticado” […]

[…]

A onça, tal como o relato indígena no qual ela está inserida, participa de vários gêneros, sem pertencer na verdade a nenhum (cf. Derrida), pois troca constantemente de máscaras ao longo do diálogo com o “neto” que a visita em sua toca mágica […]

[…]

  1. Lévi-Strauss, escritor (um poema deslocado)

[…]

Gostaria de lembrar rapidamente que, no livro Histoire de Lynx (História de Lince), publicado na França em 1991, num prefácio bem-humorado, afirma Lévi-Strauss que os seus estudos sobre mitologia indígena se situariam entre os contos de fadas e os romances policiais, gêneros considerados fáceis de ler […]

[…]

  1. Anta, a dona da metáfora

A relação entre humanos e inumanos […] está presente também na coletânea Mitos e lendas dos índios Taulipangue e Arekuná […]

[…]

Destacarei apenas um dos mitos colhidos por Koch-Grünberg, porque esse mito é, de certo modo, uma “versão amazônica” do mito jê da iniciação do adolescente pela onça mítica […]

[…]

Intitulado “Como os venenos azá e inég, para matar peixes, vieram ao mundo”, esse mito […] está no centro do meu livro O fim de tarde de uma alma com fome, que fala da caça à anta ancestral, dona da metáfora e do duplo sentido, grande professora de retórica, em suma […]

[…]

Diria que descrevo nesse livro uma “onçanta”, mistura da onça jê com a anta pemon […]

[…]

Quando li esse relato pela primeira vez, chamou-me logo a atenção a similaridade dele com o mito jê da origem do fogo, já que em ambos um adolescente se afasta da aldeia natal em busca de algo desconhecido […]

[…]

Ao ver-se depois sozinho no meio da mata, entra em contato com um animal mágico, dotado de fala humana; no caso do adolescente pemon, o animal é a anta e, no caso do adolescente jê, a onça, cujas ambiguidades tentei descrever e analisar nesses últimos anos […]

[…]

Em ambos os casos o adolescente é iniciado por um animal extraordinário […]

[…]

O que exatamente se pode afirmar a respeito da anta amazônica, numa comparação com a onça xavante?

[…]

[…] e o livro O fim de tarde de uma alma com fome, publicado em 2015, é uma exploração literária, na forma de drama poético, do contato de um jovem com um animal mágico que tem a incumbência de revelar-lhe nova esfera da existência, tirando-o de um status e introduzindo-o em outro, superior […]

[…]

Gostaria de chamar a atenção para o fato de que o meu livro O choro da aranha etc., de 2013, contém a recriação de um longo poema bororo intitulado “Canto de caça às antas”, que é como uma introdução ao livro O fim de tarde de uma alma com fome, em que o ritual de caça e o ritual de iniciação se sobrepõem e são explicitamente discutidos (isso mesmo!), em três versões diferentes e complementares […]

[…]

No mito jê da origem do fogo, o morador da paragem mítica é uma onça falante; no mito pemon, é uma anta que eu definiria como professora de retórica, pois ela entrega ao menino que a visita a linguagem figurada, em particular as metáforas, que representam um bem cultural precioso, tal como o fogo, que era desconhecido dos índios primordiais e representava “toda a cultura”, no mito jê já comentado […]

[…]

A aquisição da linguagem abundante, ou desconcertante, significa uma modificação radical, que culmina no “tornar-se outro”, objetivo de todo ritual de iniciação de um adolescente […]

[…]

A anta, porém, vai mais longe, pois ela não apenas educa o rapaz, dando-lhe outra linguagem e outra visão de mundo, mas também o inicia sexualmente, ao tornar-se sua mulher […]

[…]

Para os índios que ficaram na aldeia e nunca tiveram acesso à paragem mágica, a anta é, evidentemente, apenas um animal, cuja carne eles apreciam muitíssimo […]

[…]

Nessa condição, ela será depois caçada pelos adultos […]

[…]

Do ponto de vista da anta, existem dois mundos diferentes, o familiar ao rapaz, onde a cobra é uma cobra, e esse outro mundo infinitamente mais rico e ambíguo, ao qual ele está sendo aos poucos introduzido, que é o mundo da cultura, o mundo da abundância metafórica, onde a cobra é um fogão, sendo que a palavra fogão significaria, segundo Koch-Grünberg, uma chapa redonda em que os índios assam os seus alimentos, a qual possuiria certa semelhança com uma cobra enrolada […]

[…]

Quero acreditar que, nesse instante, a anta doou aos índios o seu fogão, essa cobra enrodilhada em si mesma […]

[…]

Também nesse mito o “fogo” é um tema central […]

[…]

Ao considerar a aula de linguagem da anta amazônica creio que cheguei a compreender melhor a onça jê, a qual, embora seja um caçador e não um mestre como a anta, atua, no entanto, como ela, no mundo da abundância e do duplo sentido […]

[…]

Escrito na forma de um diálogo entre um rapaz (soldado) e uma anta (velha), o meu drama poético, o meu nô indígena está estruturado sobre três versões diferentes desse encontro relatado originalmente na narrativa pemon, e em todas as versões a luz é um tema crucial (luz do sol, luz do fogo doméstico): na primeira, a velha é a mãe do soldado, uma ancestral indígena; na segunda, a velha é uma entidade inumana, a mãe das antas; na terceira, ela é a mulher do soldado […]

[…]

A terceira versão é um “apêndice”, e, ao classificá-la assim, quis mostrar ao leitor que o “final” desse encontro entre o rapaz e a anta é provisório e não conclusivo […]

[…]

Na abertura do livro O fim de tarde de uma alma com fome proponho uma tabela de leituras possíveis, em que a ordem das versões se altera […]

[…]

Também sugiro, nessa tabela, a possibilidade de inserção de outros enredos e imagens entre as minhas versões, prolongando o jogo de variações e permutações e levando o contato entre linguagens a um grau máximo, o que é, a meu ver, um dos procedimentos da estética e da filosofia pemons […]

[…]

A cena de iniciação do jovem pela anta mítica já havia sido recriada por mim num breve texto do meu livro Totens, de 2012, que propõe um diálogo dos Pemons com James Joyce, que criou, no Ulisses, de 1922, um personagem chamado Enrique Flor, um músico português […]

[…]

Enrique Flor, ao tocar um órgão mágico, reinventa as núpcias míticas entre seres humanos e vegetais, quer dizer, cria uma nova linguagem e ajuda assim a “reflorestar” a Irlanda, o segundo país mais desmatado da Europa, depois de Portugal […]

[…]

No meu livro, o músico Flor vem ao Brasil e passa pela floresta (conduzido por bichos-do-pé), onde, num local secreto, mora a anta pemon […]

[…]

Naturalmente, aos nomes de Lévi-Strauss e Toelken, que inspiraram essas recriações do mito pemon, eu gostaria de acrescentar agora o de Julio Cortázar, que propõe, em O jogo da amarelinha, pelo menos (!) dois percursos de leitura independentes, que o leitor poderá escolher a seu bel prazer […]

[…]

Sinto um eco dessa proposta em O fim de tarde de uma alma com fome, cujo subtítulo é: “variações sobre um ou dois temas indígenas” […]

[…]

  1. O jaguar e a “onçanta”

[…]

O jaguar mesoamericano está associado tanto com a água quanto com o fogo, o que também se verifica no mito jê, onde se descreve que a toca da onça, ou jaguar do cerrado, está rodeada de água […]

[…]

Na mitologia bororo, como mostrou Lévi-Strauss, o mito da origem do fogo jê já se transformou no mito da origem da água, elemento central na cultura desses vizinhos dos jês […]

[…]

O jaguar, de acordo com as fontes mesoamericanas, geralmente caça perto da água e é um bom nadador […]

[…]

Quanto à sua ligação com o fogo, sabemos que o Deus Jaguar do Inframundo é o Deus Sol com as orelhas do jaguar […]

[…]

Por tudo isso, compreende-se por que, no PopolVuh (eu o traduzi para o português, com Gordon Brotherston), um poema cosmogônico que descreve tanto a origem do mundo quanto a evolução das espécies, até chegar na criação do homem, aparecem tantos jaguares, às vezes meros felinos, às vezes associados a deuses, demônios, guerreiros, caçadores, feiticeiros […]

[…]

Os dois heróis principais da cosmogonia maia-quiché são os gêmeos Hun Ah Pu (Caçador) e X Balam (Jaguar Veado), o que por si só já demonstra a importância da “linhagem do jaguar” no poema em questão […]

[…]

O emocionante episódio em que os gêmeos, durante sua estada em Xibalba (o inframundo), encontram pela primeira vez o pai deles no Pátio (ou Campo) Empoeirado e percebem que ele ainda não acredita estar morto, pois não foi sepultado, foi recriado por mim em O fim de tarde de uma alma com fome, no qual sobreponho essa passagem (a instituição do funeral maia) a uma outra, anterior, também passada no mesmo local, que narra como a jovem mãe dos gêmeos encontrou o marido e dele engravidou, subindo então para a superfície da Terra […]

[…]

Eis a superfície do texto […] ou da página […]

[…]

Sérgio Medeiros ensina literatura na UFSC. Traduziu, entre outros, o poema maia PopolVuh(Iluminuras, 2007), em colaboração com Gordon Brotherston. Publicou Mais ou menos do que dois (Iluminuras, 2001), Alongamento (Ateliê, 2004), Totem & sacrifício, edição bilíngue português/espanhol (Jakembó, 2007, Assunção, Paraguai), O sexo vegetal (Iluminuras, 2009), finalista do Prêmio Jabuti 2010 e lançado nos Estados Unidos sob o título Vegetal sex (UNO Press/Universityof New Orleans Press, 2010), Figurantes (Iluminuras, 2011), Totens (Iluminuras, 2012), O choro da aranha etc. (7Letras, 2013), todos livros de poesia. É autor de um livro de mitos e lendas, O desencontro dos canibais (Iluminuras, 2013), e de O fim de tarde de uma alma com fome (2015), drama poético (nôindúgena). Publicou o ensaio A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai (2015) e a coletânea Contos de duendes e folhas secas (2016).

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