Olavão e o bolsonarismo, o capítulo final

Olavão e o bolsonarismo, o capítulo final

 

Nesta semana morreu pela última vez Olavo de Carvalho. Já havia sido dado por morto algumas vezes, inclusive politicamente, mas esta foi a derradeira. Morreu “por cima”, embora em evidente decrepitude, pois poucos ideólogos tiveram a fortuna de falecer enquanto seus alunos e seguidores assentavam-se no trono ou se espalhavam pela corte como vencedores.

Há de ser por isso que foi objeto de uma das raras manifestações de pesar emanadas pelo presidente da República, que decretou um dia de luto oficial e declarou que havia morrido um gigante na luta pela liberdade e um farol para os brasileiros. Todos sabem o quanto Bolsonaro e o bolsonarismo lhe devem, mas essa relação era complicada.

De uma maneira paradoxal, Olavo de Carvalho foi efetivamente um sujeito brilhante, a começar pela habilidade de autopromoção. Um homem que, a despeito de ser versado apenas em astrologia e autoindulgência, conseguiu convencer milhões de adultos, dentre os quais uma dúzia de pessoas razoavelmente inteligentes, de que era um pensador profundo e original.

Não era. Era um leitor tendencioso, superficial e de interpretações forçadas do pensamento alheio, e, sobretudo, era um escritor de pensamento confuso, raso e contraditório que citava muito e assimilava nada. Era basicamente um autodidata, portanto, sem formação consistente no sentido estrito do termo, que escolhia as obras que lia segundo suas intenções beligerantes, e as lia apenas para confirmar o seu ponto de vista ou para refutar o que se chocava com suas crenças. Nunca para realmente entendê-las. Seus livros, que os seus leitores e alunos consideravam uma obra filosófica, consistiam em uma constelação de disparates, erros grosseiros e interpretações distorcidas, capazes de enfurecer qualquer especialista nas obras que ele citava. Olavo estava para a filosofia como um auxiliar de pedreiro para a engenharia civil, as intenções são as mesmas, mas há alguma diferença no acúmulo e manejo do conhecimento.

Por outro lado, escrevia e falava como um pregador que conhecia bem o coração do seu auditório e sabia para onde levá-lo. Sobretudo porque dele se acercavam outros autodidatas, gente sem formação nem discernimento, aquela típica população em que o sujeito nem é muito estúpido nem muito inteligente, até se vira com ideias e leituras, mas é incapaz de uma interpretação profunda e de perceber contradições e falácias. Nem tem instrumentos intelectuais para contestar o mestre. Por isso a anedota corrente, atribuída a Ruy Castro, não sei se é verdade, de que Olavo era considerado um imbecil pelos filósofos e um filósofo pelos imbecis. Assino embaixo da primeira parte.

Por mais de 30 anos, Olavo foi uma espécie de napoleão de hospício: alucinado, preso em seus devaneios e com delírios de poder. Considerava-se imenso e o repetia com despudor. Mas foi um napoleão que conseguiu convencer todo o sanatório, médicos e enfermeiros inclusive, de que era o próprio Bonaparte. Olavo suspeitava que era o Deus Optimus Maximus, seus seguidores têm certeza disso. Sorte a dele, pois como se diz naquele ditado romano, beati monoculi in terra caecorum.

Por isso mesmo, foi tão influente. Olavão teve o mérito de coletar todos os delírios da direita norte-americana, empacotá-los de maneira atraente para os conservadores brasileiros, dar-lhes um verniz pretensamente intelectual, com o famoso truque da chuva de citações, como se decorressem de investigações profundas e de reflexões densas e originais. Com isso, o maluco à cata de uma causa, o conservador complexado que se orientava por sentimentos reacionários, mas não tinha argumentos para sustentá-los, o fanático fundamentalista político que precisava situar o seu ódio em algum projeto existencial, o wannabe intelectual carente de um mestre, toda essa gente passou a ter um eixo, uma agenda, um conjunto de crenças que estruturavam minimamente a nebulosa de sentimentos e intuições que habitavam.

Esse foi um papel exercido de forma magnífica por Olavão, que representou muito bem o personagem do profeta destemido e desbocado, afrontoso e planejadamente desagradável, cujo estilo era baseado no insulto, no insistente autoelogio e na degradação dos adversários. A polêmica na sua forma mais vulgar, a da briga de rua, do vale-tudo, da difamação do adversário, era base do seu estilo. Olavão era o rei do ad hominem, o príncipe do xingamento, o imperador dos impropérios. E ai de quem fosse por ele transferido do catálogo de seguidores e aliados para a caixa dos ingratos, traidores e detratores, tratado doravante por apelidos degradantes e objeto dos ataques e da fúria do mestre que os excomungara.

Por outro lado, Olavo de Carvalho antecipou em mais de uma década a transformação digital da pregação e da discussão política. Quando os intelectuais brasileiros consideravam “a internet” uma coisa elitista, sem alcance e esvaziada de sentido, Olavão já estava fazendo discípulos e aliciando para os seus cursos online no Orkut. Pelo menos uma década antes que a expressão “influenciador digital” aparecesse no jornalismo popular, Olavão já doutrinava no YouTube. Olavo plataformizou a formação de seguidores quando isso tudo ainda era mato.

Por fim, devo dizer que se engana, contudo, quem acha que o olavismo é igual ao bolsonarismo ou que exista uma continuidade entre uma coisa e outra. É certo que o olavismo precedeu em mais de duas décadas o bolsonarismo, é exato considerar que Olavo foi uma espécie de João Batista para Jair, mas entre os dois há continuidades, sim, mas muito mais descontinuidades.

Primeiro, o bolsonarismo é um movimento social e uma forma de militância, o olavismo é uma ideologia ou, para não lhe conceder mais do que merece, um conjunto de premissas ideológicas que vertebrou o bolsonarismo. Se é demais dizer que moldou o pensamento bolsonarista (o bolsonarismo dificilmente pode ser acusado de pensar), pelo menos lhe deu os slogans, as palavras-chaves, as figuras do imaginário e uns scripts fundamentais para usar nas suas histórias e nos complôs que imagina. Sem falar na inspiração para a afronta, para uma atitude beligerante perpétua, para transformar todos os críticos em comunistas, para ganhar discussões sem ter razão, à base de ofensas, palavrões e acusações.

Segundo, mesmo quando o olavismo conseguiu se institucionalizar, com olavistas ocupando, por exemplo, postos-chaves nos Ministérios da Educação ou das Relações Exteriores, isso durou pouco, pois não resistiu ao conflito com outras forças políticas que competem no interior do bolsonarismo, como os militares e os partidos fisiológicos de direita. Logo, logo, o “núcleo ideológico” do governo, o olavismo institucional, foi abandonado.

Por isso mesmo é que Olavão morreu brigado com Bolsonaro. Ele não só já não era mais necessário ao governo, como havia se transformado em um estorvo para os Bolsonaros, com seu ego imenso para o qual eles tudo lhe deviam e não pagavam como era de se esperar, com a sua enorme capacidade de fogo cerrado contra quem há pouco era amigo, com a sua habilidade para procurar brigas e fazer inimigos.

Terceiro, Olavo era de certo modo muito mais radical que Jair. Por seu desejo expresso, isso aqui já era para ser uma ditadura militar faz tempo, com esquerda fuzilada, prisão e tortura de opositor. Ele achava os militares uns frouxos e Bolsonaro um incapaz, além de pouco inteligente, ambos por não terem radicalizado a conquista do poder pela direita conservadora. É que Olavo, diferentemente de Bolsonaro e dos militares, vivia perenemente no mundo da vontade e da representação. Tinha, portanto, a liberdade de vociferar o que quer que lhe passasse pela cabeça. Cabeça esta que morreu sem jamais ter sido visitada por qualquer ideia democrática, republicana ou liberal.

Por fim, Olavo desprezava a inteligência de Bolsonaro e dos bolsonaristas. Achava-os incapazes e estúpidos e repetia isso toda a vez que não se sentia reconhecido ou recompensado. Quanto a isso… bem, sobre isso não há dúvida, tenho que concordar, enfim, com os seus discípulos: Olavo tem razão.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP). Twitter: @willgomes


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