O vídeo como ferramenta poética no Brasil
Antes de mais nada
Existe uma disputa de maternidade na arte contemporânea. Cada qual acha que a sua prática é a mãe de todas as outras. Desde que Walter Pater disse em 1888 que “toda a arte aspira continuamente à condição de música”, os demais artistas se insurgiram. Pois é claro que a ficção é a mãe, que a poesia é a mãe, que a escultura, que a pintura rupestre… O argumento, porém, é sempre o mesmo: a prática x ou y inventa o mundo, eis a prova da maternidade.
Embora não seja raro que os artistas se metam nos cercadinhos alheios, misturando gêneros, formatos e técnicas, a história da arte testemunhou poucos momentos luminosos de união total, de amaternidade, nos quais ninguém é mãe de ninguém. A arte considerada como uma só coisa: a fundação de mundos no mundo. A última tentativa coordenada de resgate dessa concepção se deu no Brasil, com o verbi voco visual dos poetas concretos, que, inspirados em Joyce, cozinharam a saborosa feijoada lá deles.
Perigando dar munição aos poetas na disputa de maternidade, chamemos esse estado fundamental da arte de “poesia”, porque é o nome que, no original grego, traduz melhor o que quero dizer: “poiesis” é o fazer, o fundar. As hierarquias e picuinhas nós inventamos depois. E olha no que deu. A especialização funciona muito bem para quebrar átomos e curar o sarampo. A arte é outra coisa.
O nosso é tempo de desastres climáticos e fins de mundo. Ele exige uma resposta à altura. A arte no fim do mundo é o domínio público. Tudo o que foi nosso nos interessa e todas as práticas se comunicam – embora seus praticantes possam ser mais ou menos hábeis em seus aspectos técnicos – para fundar mundos num mundo que já vai dando bye-bye. É uma de nossas esperanças.
O vídeo, engenhoca recente do homo sapiens, também.
Raízes no Brasil
Escolhi três trabalhos que considero fundamentais para compreender o vídeo brasileiro, isto é, aqueles que, nos primeiros momentos da popularização do formato no país, se colocaram em diálogo radical com as práticas existentes (a escrita, a pintura, o teatro, a TV etc.), obedecendo ao velho ditame da poiesis: são obras que fundam mundos no mundo. A partir dessas três obras, podemos compreender a curta história do vídeo como ferramenta poética no Brasil.
Marca registrada, de Letícia Parente, é de 1975. Nele, a artista costura a frase “Made in Brasil” na sola do pé, com agulha e linha preta. Ali está a palavra em sua materialidade dolorosa, o corpo feminino atirado na república, a historicidade do gesto contraposta aos gestos históricos. A esquisita brutalidade do ato – apaziguada, ma non troppo, pela insensibilidade relativa da região do pé em que a frase foi bordada – propõe uma tensão que nunca se resolve, seja em tempos de generais, seja em tempos de interinos. O bordado de Letícia Parente é o gesto de escrita fundador do vídeo brasileiro.
Lua Oriental, de José Roberto Aguilar (1978), a princípio parece mobilizar questões mais diáfanas. Com a objetiva apontada para a lua noturna, um corpo celeste imóvel a olho nu, Aguilar move a câmera em espasmos que, pouco a pouco, vão revelando sua natureza caligráfica. A câmera se torna, portanto, pincel para a tinta longínqua da Lua, inserindo a milenar tradição da caligrafia oriental no formato que viria a se tornar onipresente no século 21. Se dissemos que Marca registrada era o gesto de escrita fundador do vídeo brasileiro, podemos, aqui, afirmar que Lua Oriental é a sua pincelada fundamental, que infunde espírito numa prática recém-nascida.
A situação, de Geraldo Anhaia Mello, também é de 1978. Durante nove minutos, vemos Anhaia Mello sentado a uma mesa, ao estilo dos apresentadores de telejornal, bebendo cachaça e erguendo brindes “à situação política, econômica, cultural, brasileira” – as únicas palavras ditas pelo autor em toda a fita.Mas não é somente o autor que fica bêbado ao longo do vídeo. Seu discurso, repetido à exaustão, também perde os sentidos. A situação é o coma alcoólico do verbo, o gesto de oralização (e incorporação) fundamental do vídeo brasileiro.
Um florilégio de caminhos
Esses três pilares, embora bastante diferentes entre si, são um ponto a partir do qual poderíamos pensar todo o restante da produção de poesia em vídeo, considerando seus gestos fundamentais e a dança verbi voco visual que os anima. Herdeiros dos pioneiros setentistas, os videastas contemporâneos alargam as fronteiras do formato e, graças à popularidade sem igual do vídeo, atingem um público que jamais havia se aproximado da poesia, por considerá-la enclausurada em livros empoeirados, museus europeus, teatros municipais ou versinhos de Facebook.
Identificar alguns caminhos do vídeo contemporâneo não é tarefa simples, tanto pelo caráter radicalmente heterogêneo do meio quanto pela quantidade assustadora de artistas que nele trabalham. A “lista exaustiva”, fetiche dos críticos da velha cepa, torna-se uma espécie de imolação. Aqui é florilégio, também como faziam os antigos: uma reunião de trechos que se propõe a ser rascunho metonímico. Desde a ressurreição da voz da poesia operada pelo projeto Empreste sua voz a um poeta morto, da revista Modo de Usar & co., até a documentação obsessiva dos diários de Icaro Lira, cada obra aqui se abre para muitas outras.
Laura Erber, História antiga
Dimitri BR, Mercado negro
Ricardo Aleixo, demorava, desmoronava, tornava a demorar
Marcello Sahea, coração (corazón)
Ícaro Lira, filmes-diário
Matilde Campilho, Conversa de fim de tarde depois de três anos no exílio
Marília Garcia, antes do encontro
Kika Nicolela, Poema do êxtase
Urso Morto, As 7 mortes de Pedro, o menino que coleciona crânios de vaca
Luise Weiss e Felipe Barros, Fogo-fátuo
Victor Heringer nasceu em 1988, no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. Seu romance mais recente, O amor dos homens avulsos, foi lançado pela Companhia das Letras em agosto de 2016. Escreveu também um romance chamado Glória, publicado pela 7Letras em 2012 e está em sua segunda edição. O Glória ganhou uma estátua de Jabuti. Em 2015, publicou uma plaquete de fotos chamada O escritor Victor Heringer, pela editora 7 Letras. Em 2011, publicou o automatógrafo, um livro de poemas. Publicou ainda Lígia, que lançou em 2014 pelo selo Formas Breves, da e-galáxia. Escreve uma coluna quinzenal na Revista Pessoa chamada “Milímetros”. Fez alguns vídeos, que estão no seu canal do YouTube. Fez trabalhos poéticos e sonoros com Dimitri BR, com quem se apresentou na 30ª Bienal de São Paulo.