O truque da corrupção

O truque da corrupção
(Arte Revista CULT)

 

Em 1954 havia o “mar de lama”, a corrupção do governo Getúlio (que, oh coincidência! Envolvia também o filho do presidente). Jânio Quadros fez sua meteórica carreira tendo como símbolo a vassourinha, com a qual ia varrer a corrupção. O golpe de 1964 teve como um dos motes o combate a “corruptos e subversivos”. Collor se elegeu como caçador de marajás, os altos funcionários que ganhavam altos salários. As mordomias e regalias dos altos funcionários ocuparam o imaginário político por muito tempo, décadas atrás.

Foi sempre um discurso bem sucedido. Quase sempre utilizado pela direita retoricamente. Ela nunca deixou ela mesma de mergulhar na corrupção, mas que discurso podia ter a direita brasileira, com seu programa antipopular? Como, por exemplo, combater o aumento do salário-mínimo, na crise de 1953 que levou Jango, então Ministro do Trabalho, à demissão por ter dado um reajuste de 100 por cento no salário-mínimo? Que discurso podia ter quem ficava de joelhos diante do capital internacional, sempre pronto e entregar as riquezas nacionais? Que discurso podia ter quem nunca quis a Petrobrás e que nunca desistiu de destruí-la ou de dar de bandeja o petróleo?

Esse programa antipopular, é verdade, nunca foi exatamente oculto, mas quando se tratava de conquistar a hegemonia no aparelho do Estado, seja pelo voto, seja por golpes, ele era objeto de uma prestidigitação. Ao modo de um mágico no palco, desviava-se a atenção de plateia da mão em que estava esse programa para fazer com que ela olhasse apenas para a mão em que estava o bom e velho discurso contra a corrupção, cujo combate era a panaceia contra os males do Brasil.

Um discurso fácil e na medida para provocar a indignação e ganhar capital político. Afinal de contas, era o nosso dinheiro, o dinheiro de toda sociedade, do trabalho de todos, que deslizava para o bolso dos corruptos a viverem nababescamente, ao mesmo tempo em que as dificuldades econômicas assolavam a maioria da sociedade.

Com esse discurso fácil, mágico, desapareciam os reais problemas do Brasil. A miséria, a exclusão da maior parte da sociedade do mercado e de uma subsistência digna, a herança maldita da escravidão, o abandono social da massa negra de descendentes de escravos, a resistência feroz a uma reforma agrária que poderia incorporar a massa do campo produtivamente à sociedade. Nesses 130 anos, a massa negra sequer alcançou a condição de proletária, restando os morros e as periferias das grandes cidades para habitar miseravelmente, vivendo de trabalho precário, de serviços domésticos, de limpar privadas da classe média ou mergulhando na criminalidade.

A Lava Jato foi mais uma temporada dessa série. Desde 2013 parte majoritária (como demonstraram os resultados das eleições) da sociedade viveu em transe com mais um “mar de lama”, em transe com mais uma versão da “vassourinha”, em transe com a associação, tal como em 1964, de “corrupção” com “subversão”, em transe com os privilégios de altos funcionários, em transe com mais uma versão das “mordomias”. Essa parte majoritária foi composta tanto pela estulta, preconceituosa e elitista classe média das camisas amarelas e das panelas, quanto pela desinformação e manipulação massacrantes promovidos pela mídia e formadores de opinião moldando o imaginário da outra parte da sociedade, cujos interesses de classe eram opostos ao programa que se projetava e que foi manipulada para ser rapinada.

Como das outras vezes a prestidigitação funcionou. Completamente alheia ao real, parte da sociedade vibra com e apóia a prisão (que dúvida pode restar neste momento que se trata de prisão política?) do líder da centro-esquerda, que, na presidência, não obstante a ausência de qualquer pendor revolucionário, não seria um aliado da rapinagem de renda e patrimônio selvagem ora promovida.

Um vídeo de Tarso Genro circulando nas redes sociais reproduz uma frase do jornalista Juremir Machado: “o trabalhador que ontem foi dormir faltando cinco anos para se aposentar recebendo 1.800 reais, acordou hoje faltando dez anos para se aposentar recebendo 1.200 reais. Um grande agronegociante que foi dormir ontem devendo cinco milhões para o FUNRURAL, acordou hoje anistiado”.

A lista abjeta de iniquidades sociais poderia prosseguir extensamente. As viúvas que vão receber 60% do salário mínimo. Do salário minimo. Ou seja, da quantia que a Constituição afirma ser o indispensável, o mínimo para a subsistência, considerando alimentação, vestuário, transporte, lazer, etc., e que está muito longe de proporcionar isso com 100%.

A notícia do jornal sutilmente estabelece o “contraponto”. Isso significará uma economia de 180 bilhões em dez anos. Quem dirá à massa hipnotizada pelo “combate à corrupção” que no orçamento de 2019 a quantia destinada ao pagamento da dívida pública, alimentando rentistas e especuladores, é 1,4 trilhão? Isto não é corrupção, claro.

Poderíamos prosseguir com a reforma trabalhista, precarizando as relações de trabalho, ampliando a acumulação em cima de uma massa miserável, inviabilizando o acesso à Justiça do Trabalho, chegando em alguns momentos ao limite do trabalho análogo a escravo ao excluir da jornada de trabalho o tempo para refeições, que antes era de duas horas e agora pode ser reduzida a 30 minutos, ou facilitando as condições para que grávidas trabalhem em ambientes insalubres. Mas isto não é corrupção.

O destino das próximas gerações, nas condições hoje dadas, será de uma massa sem garantias mínimas nas relações de trabalho, precarizada e espoliada, privada da aposentadoria ou, quando não, com uma renda que a reduzirá à mais abjeta miséria. Restará escolher, como no Chile, entre o suicídio ou a morte em vida na velhice. Mas isto não é corrupção.

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Existe um componente ideológico que rebaixa a consciência da massa e permite criar as condições culturais, políticas e sociais para que este capitalismo selvagem avance. A esse componente ideológico que para a massa é uma espécie de senso comum corresponde uma forte presença de certa concepção teórica corrente na intelectualidade brasileira.

Trata-se do patrimonialismo. A ideia de que o Brasil está contaminado desde sempre pela apropriação do público pelo privado, que seria localizada apenas em algumas esferas da sociedade e no Estado.

Nesse conceito, é injusto, imoral, apenas tomar recursos do Estado por uma propina ou por um salário alto. Um servidor público que recebe altos salários está se apropriando de recursos públicos indevidamente. Um executivo privado que ganha milhões, usa jatinhos para passar férias em sua ilha em Angra dos Reis e está isento de imposto de renda por lucros e dividendos, usufrui do resultado de seu trabalho e não se apropria de recursos públicos.

O patrimonialismo, tanto no senso comum quanto na sua versão teórica, oculta a natureza real da estrutura capitalista. Tudo que se produz em uma sociedade, por ser o fruto do trabalho de toda a população produtiva, é público. O senso comum não percebe que tanto o salário do alto funcionário público, ou o dinheiro da propina, quanto o do executivo que comprou uma ilha em Angra dos Reis, é seu dinheiro. No primeiro caso o dinheiro escorre na forma de tributos. No segundo caso, no preço dos produtos ou serviços que são pagos, que tem que embutir o custo da nababesca vida da classe dominante.

A grande e real corrupção é o capitalismo.

MARCIO SOTELO FELIPPE é advogado e foi procurador-geral do Estado de São Paulo. É mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP


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