O trabalho do espírito

O trabalho do espírito
O trabalho é tão central na vida das pessoas, que nos tornamos em um vasta medida aquilo que fazemos (Arte: Andreia Freire/Revista CULT)

 

O perigo do questionamento contra o fundamentalismo da má fé

Certamente, viver é um trabalho que envolve uma relação com a matéria, com o corpo, com a concretude da vida. Mas é igualmente um trabalho do espírito. Nesses tempos pesados e difíceis, em que todo tipo de mistificação é usada pelos poderes em vigência, precisamos atualizar a íntima conexão que há entre esses trabalhos que constituem os fundamentos sobre os quais inventamos as nossas vidas. O sequestro da espiritualidade pelas religiões do mercado leva junto o espírito, sem o qual não é possível viver. Nem mesmo para um ateu. Qualquer trabalho exige esforço, toma tempo, envolve perdas.

O trabalho da matéria nos consome e, em algum medida, nos realiza, nem que seja apenas no básico sentido da realização da subsistência: agir para garantir meios para alguém se alimentar, se abrigar, descansar e assim se manter vivo. O trabalho é inevitável. Muitas vezes vivemos apenas por viver, sem maiores expectativas sobre o que possa significar viver, e, nessa condição, seguimos trabalhando, muitas vezes porque não há como fazer diferente. O trabalho é tão central na vida das pessoas, que nos tornamos em um vasta medida aquilo que fazemos. No extremo, o trabalho obrigatório, do qual a maioria da população não escapa, pode nos levar a um círculo vicioso. É o trabalho alienado, aquele que não nos dá nada em troca e nos consome por completo. Um dia esse trabalho cessa e, em condições normais, um corpo simplesmente morre. O trabalho do espírito é aquele que nos faz construir a ideia de que é melhor morrermos velhos, depois de muito viver, depois de se ter vivido uma vida que fez sentido. É o trabalho do espírito que nos faz perguntar pelo sentido da vida.

Essa é uma pergunta que em certas épocas perdeu sua importância, mas em momentos sombrios nos quais a humanidade ameaça a própria humanidade, ela acaba reaparecendo.

O trabalho do espírito nos ajuda nesse processo de seguir vivendo, mas nunca nos deixa satisfeitos em pensar que basta se estar fisicamente vivo. E isso porque o trabalho espiritual é um trabalho do pensamento que nos leva além da mera respiração ou de qualquer outra função fisiológica. Quando alguém se dedica à sua religião – monoteísta ou politeísta, ao budismo, ao ioga ou outra prática voltada ao encontro consigo mesmo –, realiza, certamente, um trabalho espiritual.  Mas o trabalho do espírito pode também não ter religião nenhuma. E isso porque todo trabalho espiritual é um trabalho da linguagem, com a linguagem. Em certas práticas espirituais o trabalho da linguagem é a repetição de palavras, de orações, de mantras. Mas às vezes é como se o corpo pudesse ficar quieto e se dedicar a simplesmente existir na forma de espírito, na suspensão da linguagem que nos é dada pelo mundo, em nome de uma linguagem própria. O trabalho espiritual da meditação, o trabalho que, em termos mais poéticos, chamamos de silêncio. A literatura implica o mesmo tipo de trabalho. É um trabalho do espírito sem Deus, mesmo que possa haver um Deus na crença do escritor ou do leitor.

O que estou chamando de trabalho espiritual é o trabalho do pensamento que, por sua vez, é produzido por um trabalho físico. Pensar requer esforço físico, espaço e tempo. Não somos seres capazes de raciocínios afastados das circunstâncias. A concentração e a atenção exigidas por esse trabalho são físicas, fazem parte da nossa percepção, que é totalmente corporal, e são tão sutis que, para muita gente, nem parecem corporais. Aí é que a televisão e outros meios de comunicação produzem suas operações. Não é à toa que as igrejas que hoje saqueiam a nossa subjetividade invistam em meios de comunicação e não em escolas ou outras instituições que possam levar ao risco do questionamento.

O questionamento é um profundo trabalho do espírito. Extremamente perigoso em momentos históricos e sociais tensos.

A destruição do espírito

Simone de Beauvoir disse em algum momento que viver é uma sequência de atos.  Podemos atualizar essa ideia dizendo que viver é uma sequência de atos do espírito.

O que estou chamando de atos do espírito? O trabalho da interioridade. Ao longo da história as pessoas usaram os textos, a leitura, a literatura e a arte em geral para realizar esse trabalho. Esse trabalho de manter-se vivo por dentro. De sobreviver ao que quer nos matar por dentro. Ao que nos lança na inexistência e nos transforma em robôs.

O trabalho do espírito é o trabalho da linguagem. Ele é um trabalho da representação, da nossa capacidade de dizer as coisas e de nosso desejo de dizer como podemos dizê-las. Às vezes produz-se uma obra prima do espírito, às vezes é uma obra mais simples. Mas o trabalho do espírito sempre se parece com um obra de arte e sempre é importante. Há diferença cultural e estética entre Os Lusíadas e a poesia que escrevo para guardar na gaveta, mas não há diferença espiritual na atitude básica que leva a construir esses atos. Há grandes esforços empreendidos por artistas, mas a centelha espiritual que faz o cidadão comum apreciar a arte feita por um artista, está também nele.

Nessa linha não há nenhuma prova de que o corpo e o espírito estejam separados. A linguagem os unifica, pois não apenas falamos e nos expressamos através do nosso corpo, esse mesmo corpo já é linguagem. E mesmo o falar verbal, que parece tão espiritual, é um falar a partir do corpo. Linguagem, nesse caso, não é apenas o que usamos para nos comunicar, nos entender, nos expressar – ou também violentar como vemos nas redes sociais hoje. Linguagem é uma categoria de análise. Pensando e compreendendo o uso da linguagem, entendemos o mundo feito de linguagem.

O ressentimento e os afetos negativos que vemos hoje expostos e manipulados nos espaços públicos concretos e virtuais demonstram a precariedade de nossa experiência espiritual. Enquanto pastores e políticos (e pastores políticos e políticos pastores) e cidadãos munidos de suas palavras mal pensadas continuarem a destruir a linguagem, contribuirão para a destruição do espírito.

Nesse sentido, não posso deixar de dizer que não há nada mais diabólico do que uma igreja que violenta o espírito. Pois o espírito é nosso caminho para a transcendência.

Não há nada mais perverso do que usar a má fé em nome da fé, como se tem feito no Brasil.

E é isso que precisamos superar antes que nosso país se torne uma pátria de fundamentalistas disfarçados de malucos e a religião como um direito continue ocultando a escravização pela má fé.


> Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

(5) Comentários

  1. Parabéns, excelente texto! Em tempos sombrios de ódio e intolerância – criados pelo homem e seus interesses – andamos sem referência, inclusive religiosa! O espírito e o corpo persistem em (re)construção, sem crenças e interpretações interpostas dos pseudoiluminados da fé.

  2. Dito de outro modo, mas muito semelhante ao relato bíblico, os três últimos parágrafos são um alerta contra os
    ” falsos profetas”!!!

  3. Na religião cristã o que mais está crescendo é o fundamentalismo. Hoje, eles para defenderem seus interesses escusos estão até aceitando armas etc; Saibamos que Cristo nunca ensinou defesa com armas. Como Ghande, Ele sempre defendeu a paz.

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