O paradigma oculto da filosofia moderna

O paradigma oculto da filosofia moderna

Desempenhando um papel decisivo, mas ainda pouco examinado, o ceticismo orientou boa parte da revisão metodológica que inaugura a modernidade

Luiz Antonio Alves Eva 

O ceticismo é um tema discutido por quase todos os principais filósofos modernos — seja como um pesadelo epistemológico que, ameaçando nossa capacidade de conhecer a verdade e alcançar a felicidade, deve ser exorcizado pela boa filosofia (como no caso de Berkeley); seja, ao contrário, como filosofia que, parcial ou integralmente, merece ser acolhida (como para Hume ou Montaigne). De fato, foram e ainda são radicais as divergências filosóficas em torno do tema, e bastante prejudicadas por aquele que diríamos ser o primeiro grande problema com que se depara quem se interessa por ele — a saber, a vagueza do que se chama de “ceticismo”. Quem é exatamente o “cético”? Ele pode ser tanto o sujeito caricato que duvida de tudo (desde a antiguidade houve, como Galeno, quem dizia que o cético está condenado à morte porque, como duvida que o sol nasceu, não se levanta) quanto o portador de uma filosofia elaborada e posta em prática, desde os antigos, constituindo doutrinas (ainda que num sentido peculiar, não-sistemático), cuja coerência pode, decerto, ser examinada e questionada noutros níveis de profundidade. De um ponto de vista histórico, todavia, o problema tem um interesse especial, porque a tematização filosófica moderna do ceticismo tem, bem ou mal, com todos os seus mal-entendidos, sua raiz na redescoberta renascentista das escolas filosóficas céticas antigas — o assim chamado ceticismo da Nova Academia de Platão, segundo a versão latina que encontramos em textos de Cícero, ou o pirronismo dos que se denominaram skeptikoi, “aqueles que investigam”, tal como explica Sexto Empírico, uma vez que o exame crítico que esses filósofos empreenderam das demais filosofias, que procuraram, cada qual, oferecer a verdade, ainda não pôde encontrar um fim, pois a verdade deve ser uma só para todos e existem discrepâncias indecidíveis entre elas, bem como recorrentes defeitos argumentativos em cada uma. 

Muitos filósofos modernos que ofereceram sua filosofia como antídoto aos problemas “céticos”, como Berkeley, e mesmo outros que pensavam estar propondo um ceticismo “mitigado” (por oposição à virulência do ceticismo propriamente dito), como Hume, aparecem hoje mais próximos do ceticismo antigo, ao menos sob certos aspectos, do que eles mesmos parecem ter podido reconhecer. 

A mesma dificuldade marca análises interessantes como a de Ernest Gellner, segundo quem o ceticismo constituiria mesmo uma espécie de “paradigma oculto” da filosofia moderna. Ele sustenta que o poder e a autonomia adquiridos pelo conhecimento entre os modernos acabaram por produzir uma espécie de suspensão do juízo metodológica sobre o “mundo real”, que entre os antigos fora aceito como um dado. Um bom exemplo seria a “revolução copernicana” de Kant, que pretendeu resolver os impasses da metafísica propondo que, em vez de indagar como o nosso conhecimento se regula pelas coisas, deveríamos nos indagar sobre como nossas condições a priori de conhecimento nos permitem conhecer o que conhecemos. Não deixa de ser curioso que os impasses da metafísica que Kant pretende contornar também são similares aos descritos pelos céticos 

Mas seria também o caso já das Meditações de Descartes, onde encontramos a primeira formulação do assim chamado Problema do Mundo Exterior (o problema de saber como podemos inferir, do conjunto das nossas representações subjetivas, às quais temos acesso imediato, a existência de um Mundo exterior objetivamente existente que elas representariam). Embora as dúvidas filosóficas que ele propõe na sua Primeira Meditação — considerando a possibilidade de estarmos agora sonhando ou sendo enganados por um Gênio Maligno em nossas certezas mais básicas — sejam seguramente moldadas no ceticismo debatido nos círculos intelectuais que freqüentou, isso não faz de Descartes um cético. Essa filosofia encontrou uma acolhida bem mais favorável em seus correspondentes, Mersenne e Gassendi. Mas a dúvida metódica de Descartes, ao contrário, parece antes corresponder a uma “vacina” filosófica capaz de imunizar as verdades metafísicas que, a elas resistindo, provam sua solidez para além daquelas oferecidas pelos seus predecessores. Ao passo que superariam definitivamente a dúvida dos céticos — mesmo que, talvez, ao preço de produzir involuntariamente o que veio a se chamar posteriormente um “ceticismo moderno”, mais radical e virulento do que o proposto pelos antigos. 

Extensão do ceticismo antigo? 

É uma outra questão controvertida a de saber se esse “ceticismo moderno” (caso essa expressão não seja afinal imprópria) deve ser visto como um aprofundamento do ceticismo antigo, ou se ele resulta de uma incompreensão da sua coerência filosófica particular. Pois os céticos antigos já condenavam seus rivais estóicos e epicuristas de não terem bem compreendido o que diziam. Os céticos sustentavam, afinal, que o ceticismo era perfeitamente compatível com uma vida vivida de modo pleno, regrado, saudável, e com a adoção de crenças num sentido meramente “prático”, seguindo a expe­riência comum, à falta de atingirem o tipo de Conhecimento prometido pelos filósofos em perpétua contradição (eles, sim, doentiamente apegados, a seu ver, a uma suposta verdade que efetivamente não podem provar). 

Existe assim uma imbricação entre problemas conceituais e históricos em torno desse tema, que justificam especialmente, no caso da filosofia moderna, a necessidade de um exame sistemático da retomada e transmissão das fontes do ceticismo antigo, praticamente desconhecido entre os medievais e redescoberto durante o Renascimento, bem como do seu impacto filosófico. Este trabalho, todavia, é bem recente e se fez sobretudo a partir das obras seminais de Charles Schmitt, sobre a difusão das obras céticas de Cícero a partir do século 15, e de Richard Popkin, sobre a redescoberta tardia do pirronismo a partir da tradução das obras de Sexto Empírico para o latim, iniciada em 1562. Popkin sustenta que tal retomada teve um impacto decisivo na constituição do pensamento moderno, oferecendo um esquema intelectual­ oportuno em face das crises culturais do Renascimento. Tematizando a impossibilidade de decisão filosófica racional entre os diversos sistemas em conflito, o ceticismo ofereceu um ponto de vista intelectual próprio diante da multiplicidade de fontes antigas redescobertas pelos humanistas, corroborando a dúvida gerada em torno da autoridade aristotélica nos temas filosóficos. Se o questionamento desta autoridade se fazia tanto mais pelo impacto do modelo heliocêntrico copernicano e das descobertas geográficas e antropológicas decorrentes da expansão marítima, os textos céticos também discutem a impossibilidade de encontrarmos, ante a diversidade de costumes, um critério racional para decidir se algum deles representa melhor a verdade ou a natureza (com efeitos evidentes na discussão sobre o estatuto dos povos recém-descobertos por Montaigne). 

Mas Popkin focaliza prioritariamente o debate teológico entre católicos e protestantes sobre o critério para determinar o sentido da verdade revelada (seja a autoridade do Papa ou a razão individual iluminada pela fé). Tal problema do critério é explicitamente discutido por Sexto, que argumenta para mostrar a impossibilidade de resolvê-lo racionalmente e oferece, assim, um arsenal para defesas da fé de tendência fideísta (enfatizando o caráter essencial e sobrenatural da fé, em detrimento das justificações racionais) e apoiadas na tradição e nos costumes da Igreja (sendo este um dos critérios “práticos” que o cético oferece para agir na vida, razão pela qual o ceticismo foi inicialmente, mas não exclusivamente, melhor assimilado pelos católicos). Tal interesse, num segundo momento, acabou conduzindo à descoberta do potencial filosófico (epistemológico) dessa reflexão. 

Montaigne e o questionamento sistemático da razão 

Cruciais nessa transição são as obras do médico e filósofo português Francisco Sanchez (o Quod nihil scitur, de 1581, que empreende uma crítica cética de cunho acadêmico à concepção aristotélica de conhecimento) e do mais conhecido autor francês Michel de Montaigne, cujos Ensaios (1580), exibem, após uma fase de reflexão marcadamente estóica, um ceticismo conseqüente, capaz de empregar de modo ao mesmo tempo rigoroso e original a quase totalidade dos argumentos céticos provenientes de Sexto. Isso é bem claro em sua Apologia de Raimond Sebond, onde ele critica uma “vaidade” bem próxima da “presunção” dogmática: seja a vaidade do homem, que se acha superior aos animais pela posse exclusiva da razão; a vaidade do saber, que pretende alcançar uma verdade que não alcança; ou a vaidade de nossas faculdades cognitivas, em cuja crítica se desenvolve, com base em argumentos céticos antigos, um exame crítico da razão, do juízo e dos sentidos, o que nos lança ao debate epistemológico fundamental da modernidade. Porém, embora para Montaigne o ceticismo exponha radicalmente nossa precariedade cognitiva, não se trata (como em Descartes) de uma filosofia incompatível com a vida. “O cético — diz ele —não quis se fazer pedra nem tronco. Ele quis se fazer homem vivo, pensante e raciocinante, fruindo de todos os seus prazeres corporais e espirituais, em ordem e com retidão. Os privilégios fantásticos, imaginários e falsos que o homem se usurpou, de reger, ordenar e estabelecer a verdade, estes ele de boa fé abandonou e a eles renunciou…” (Ensaios

Embora hoje o lugar de Montaigne na história da filosofia possa aparecer como duvidoso, ao longo do séc. 17 ele foi sobretudo lido como cético, e seus Ensaios foram amplamente conhecidos, seja por Descartes, seja por outro influente autor (especialmente para a tradição do empirismo britânico), no qual a presença do ceticismo tem igualmente sido negligenciada, Francis Bacon. Não apenas esse tema freqüentemente retorna em suas reflexões, mas muitas de suas considerações sobre os “ídolos” que nos impediriam o acesso à verdade e que seu método da indução pretenderia paulatinamente remover são inspiradas em Montaigne. Menos ignorada é a leitura que faz Pascal de Montaigne como um “puro pirrônico” e a importância que ganha em suas Pensées essa filosofia, como uma das duas (ao lado do estoicismo de Epicteto) que seriam, a seu ver, merecedoras de consideração, uma por mostrar a miséria, outra por mostrar a grandeza do homem, ainda que as forças da primeira sejam, a seu ver, de longe superiores. Tal leitura de Montaigne contribuiu para que o ceticismo se espraiasse ainda numa versão cristianizada, cujos ecos ressoariam mais tardiamente em Kierkegaard. Outro veio de transmissão da reflexão cética, aparentemente menos afeito à religião, e bem mapeado por Popkin, é o que se dá pelos libertins érudits, como La Mothe le Vayer, que acabarão por ter impacto no debate dos iluministas franceses. 

Para além da modernidade 

Estes são apenas alguns aspectos de uma rica dimensão da filosofia moderna que permanece um canteiro de obras em aberto para os historiadores, de onde emergem, tanto novas interpretações dos filósofos, quanto, gradualmente, um novo panorama dessa própria história. Ao contrário do que por vezes se alega, levar em conta a presença do ceticismo como motor da reflexão filosófica moderna não conduz necessariamente a uma perspectiva redutora (pois não se trata de negar o modo particular como cada filósofo o reinterpreta); trata-se, ao contrário, de uma tarefa importante do historiador disposto a investigar com seriedade as pistas que momentaneamente se reabrem nos vãos dos preconceitos da época. 

Popkin parece ter razão ao apontar para a existência de verdadeiras tradições céticas ao longo da filosofia moderna que, de importância maior ou mais restrita, resultam de releituras e recriações desses mesmos argumentos céticos repostos em circulação, em contextos intelectuais e filosóficos diversos. Muito resta, assim, a ser explorado para que compreendamos como pôde esse tema interessar autores tão díspares como Hegel (autor de uma obra de juventude sobre a importância filosófica do ceticismo, destinada a criticar a insuficiência da interpretação proposta pelo “cético” Schulze), Nietzsche (que se refere de modo elogioso aos céticos tanto em obras de juventude quanto em outras mais tardias, como Humano demasiado humano) ou Wittgenstein (o qual, de modo geral alheio à semelhança entre suas reflexões e aquelas provenientes de outras fontes, não deixa por isso de se ocupar explicitamente do tema, sobretudo em seus escritos finais, como os que se reuniram pelo título “Sobre a certeza” — conquanto se tenha ali em vista um “ceticismo” de tipo cartesiano), dentre outros tantos que poderíamos mencionar. 

Luiz Antonio Alves Eva
é professor de Filosofia da UFPR

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