O miolo em preto e branco

O miolo em preto e branco
Luiz Mauricio Azevedo e Fernanda Bastos, criadores da editora Figura de Linguagem (Foto: Arquivo pessoal)

 

O movimento anti-fascista, que tomou conta das ruas brasileiras nas últimas semanas, tem dado uma correta resposta ao fortalecimento de células neonazistas, neofascistas e ultranacionalistas em nosso território. Abrigados na estapafúrdia ideia de supremacia branca, ultimamente essas seitas têm angariado seus simpatizantes no cotidiano paranoico de nossa extrema-direita. Nessa luta, é preciso sofisticar nossas vivências, instrumentalizando novas formas de combater o mandonismo à brasileira. Foi nesse espírito que, em junho de 2018, na cidade de Porto Alegre, criamos a editora Figura de Linguagem. Idealizada com o objetivo de promover a produção literária e o desenvolvimento crítico da cultura negra, nossa editora tem hoje um catálogo com 26 títulos, que vai da afro-americana June Jordan à afro brasileira Maria Firmina dos Reis. Para evidenciar a urgência de nossa proposta, criamos um polêmico sistema de cotas para autores autodeclarados brancos. Nele, a cada cinco autores negros publicados, viabilizamos a edição de um escritor branco. Nosso primeiro cotista branco foi nada mais nada menos que William Shakespeare. Hamlet saiu em 2019, com uma tradução inédita, feita pelo jornalista Bruno Germer. Este ano saem Dimensões éticas do pensamento marxista, de Cornel West e Sem vergonha, de Futhi Ntshingila.

Não é difícil perceber que somos uma editora que nunca negou sua vocação para o enfrentamento. Combatemos, minuto a minuto, o mito da democracia racial e rejeitamos qualquer tentativa de instrumentalização da causa negra como agente coadjuvante na cena política brasileira. No mundo editorial, todas as experiências se baseiam em uma dupla imposição: capital e prestígio. Não temos nenhum dos dois. Pertencemos a uma classe sem dinheiro. E viemos de uma etnia sem poder social. Sentimos, dia após dia, os efeitos perversos da mentalidade do brasileiro médio em relação às iniciativas culturais independentes, especialmente as negras. Pagamos essa existência com a precarização das nossas rotinas particulares, e com o inevitável desgaste emocional causado por todos os instantes de combate ao status quo. É claro que tem sido difícil, mas não há outro caminho. Aqueles que não aguentam o calor que tratem de sair da cozinha. Quanto a nós, não iremos a lugar algum. Se é no fogo que teremos que forjar nossa identidade, é no fogo que ela será forjada.

Hoje, manifestamos, mais uma vez, nosso repúdio à violência contra a população negra, estrategicamente mascarada de manutenção da ordem, seja em Minneapolis, seja no Rio de Janeiro, seja em Miami, seja na Quinta-Avenida ou na Paulista. Resistiremos porque essa é uma habilidade transmitida por nossos ancestrais. E continuaremos a produzir nossas narrativas de denúncia e redenção, com orgulho e altivez.

No momento em que a luta antifascista começa a ganhar a visibilidade que merece por aqui, lembramos com honra que sempre fomos intolerantes à lactose. E seguiremos assim até que o racismo desapareça e que os indivíduos negros possam ter do mundo um tratamento compatível com a dimensão de tudo aquilo que ajudaram a construir.

Fernanda Bastos é mestre em Comunicação Social, pela UFRGS e CEO da editora Figura de Linguagem 

Luiz Mauricio Azevedo é doutor em Teoria e História Literária, pela UNICAMP; e editor-executivo da editora Figura de Linguagem 


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