Marcuse, o filósofo refratário

Marcuse, o filósofo refratário
O filósofo e sociólogo alemão Herbert Marcuse, cuja recepção no Brasil se deu de forma tímida a partir de 1960 (Reprodução)

 

Refratários são os sujeitos que ninguém consegue sujeitar. Mal vistos à direita, mal vistos à esquerda, vomitados pelo centro, estrangeiros nas margens, onde você quer colocá-los?
Philippe Sollers

Herbert Marcuse é um pensador tão instigante quanto complexo, tanto pelas suas ideias, quanto pelas apropriações que foram feitas delas a partir de um imaginário que tentou delinear para ele uma imagem de “pensador e militante revolucionário”. Foi trazido assim à cena do debate intelectual e divulgado, inclusive no Brasil, como maître à penser dos enragés de 1968.  Porém, sua complexidade e densidade de reflexão permitiram que sobrevivesse, não como um “filósofo da moda” mas como um grande pensador, permanentemente envolvido pelas novas inquietudes da razão e da emoção que a modernidade tardia colocava em cena. Ao lado de Adorno, Horkheimer e Benjamin, estabelecerá um alicerce teórico fundamental do que conhecemos como Escola de Frankfurt.

E é nesse “movimento de ideias” conhecido hoje também como Teoria Crítica, surgido na Alemanha na década de 1920 e consolidado nos anos de 1930, que Marcuse deve ser estudado e compreendido. Não que isso implique nele, nem nos demais membros deste grupo, uma adesão acrítica a uma forma de pensar preestabelecida, à qual todos deviam prestar obediência. Muito mais é uma aproximação intelectual a um conjunto de inquietações compartilhadas às quais se acreditava poder dar conta, a partir de um referencial teórico, em permanente construção, ao qual todos eles já haviam assumido previamente como seu. É no diálogo entre seus membros que a “Escola” irá desdobrando suas reflexões e se construindo. É nesse diálogo intelectual também que precisamos situar o pensamento de Herbert Marcuse, como um marco referencial a que ele recorria sempre e ao qual se sentiu ligado por toda a sua vida.

Recepção no Brasil

No Brasil, a recepção das ideias de Marcuse se deu de forma tímida e incipiente a partir dos anos de 1960 sem que, naquele momento, entre os nossos intelectuais, se tivesse clareza da dimensão, amplitude e profundidade do seu pensamento. O mesmo poderia ser dito dos demais membros da Escola de Frankfurt.

Seus teóricos, mesmo nesse período, são ainda praticamente desconhecidos, mesmo entre filósofos brasileiros. Destaque-se aí nesse momento, a Revista da Civilização Brasileira, editada de março de 1965 a dezembro de 1968. Possivelmente era a de maior circulação nacional entre intelectuais na época e já registrava a publicação de alguns artigos de membros da Escola de Frankfurt, como Adorno e Benjamin, além de Marcuse. A maior parte dos trabalhos desses teóricos ainda se encontrava em alemão e as expressões “Escola de Frankfurt” ou “Teoria Crítica” eram, se muito, uma referência ainda pouco valorizada no discurso de raríssimos intelectuais e filósofos brasileiros.

O trabalho de José Guilherme Merquior, Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, publicado pela editora Tempo Brasileiro em 1969, é uma das raras exceções daquela época. Constitui, sem dúvida, o primeiro estudo brasileiro envolvendo o “bloco principal” (pelo menos, naquele momento) dos pensadores da Escola de Frankfurt, não havendo registro de nenhum outro de semelhante envergadura, naquela época. Na apresentação desse trabalho, o próprio Merquior aponta que as obras dos autores por ele estudados são em sua maioria desconhecidas no Brasil.

Marcuse chegava também trazido pelos ventos passageiros, mas extremamente relevantes, de uma abertura intelectual no Brasil que, contrariamente ao que se pensa, caracterizou boa parte da década de 1960, mesmo após a instauração do regime militar em 1964. Houve inclusive, principalmente de 1964 a 1968, a aceleração de um processo de abertura em direção às mais importantes correntes da cultura universal. Isso gerou, entre outras coisas, um número significativo de novas traduções de autores e teóricos consagrados. A percepção de um gradual fechamento do regime e da possibilidade de instauração de uma ditadura militar, em moldes fascistas – o que efetivamente acabou acontecendo –, eletrizava boa parte da intelectualidade brasileira. Era preciso abastecer o mercado das discussões políticas e ideológicas com novos autores, novas ideias, novas formas de luta que pudessem fazer frente àquela ameaça que pairava no ar. Tendo como um de seus objetivos principais justa-mente a quebra do monopólio dos manuais soviéticos que aqui circulavam dos quais se extraía uma interpretação já rigidamente fixada pelo PCB e em busca da construção de uma esquerda a altura de seu tempo, muitos intelectuais se engajaram numa luta em favor da inserção/tradução de novos, e por aqui pouco conhecidos, teóricos marxistas como Lukács, Gramsci, Adam Schaff e Marcuse.

Entre a análise e a “grande recusa”

A boa receptividade das obras de Marcuse, por amplos setores da intelectualidade e entre os jovens brasileiros, com ênfase especial para Eros e civilização e Ideologia da sociedade industrial, pode também ser creditada a dois outros fatores. Primeiro porque, de todos os membros da Escola de Frankfurt, era o único realmente conhecido e valorizado. Já frequentava regularmente os meios de comunicação, sendo neles freqüentemente apontado como maître à penser dos “movimentos de rebelião”, particularmente entre os jovens, que ocorriam em vários países da Europa. O segundo fator que ajudou a boa receptividade de Marcuse foi o fato de que, naquele momento, já havia um crescente desagrado em relação às posições “teóricas e práticas” que emanavam do PCB, que se apresentava como uma espécie de guardião institucional do marxismo e seu “único” porta-voz. O seu caráter ritualizado e burocratizado desagradava a amplos setores da intelectualidade, incluindo boa parte dos seus militantes, que esperavam do partido uma ação mais combativa e direta. Com o endurecimento do regime militar, questionava-se abertamente a timidez dos quadros do PCB em face dessa realidade concreta. Nesse contexto, a ideia de uma “grande recusa” parecia mais adequada ao clima de impaciência revolucionária que se avolumava, do que as teorizações protelatórias de uma ação revolucionária que nunca se efetivava.

Misturada ecleticamente com Mao, Marx, Debray e Althusser, amplos setores da intelectualidade, particularmente os de esquerda, ignoraram num primeiro momento as incoerências teóricas que poderiam trazer rejeições incontornáveis entre esses teóricos. Adotaram-nos “em bloco”, como aqueles que seriam capazes de fornecer subsídios teóricos para uma ação eficaz, quer contra a ditadura, identificada ao capitalismo, quer contra o “partidão”, portador para eles de uma esclerose senil do marxismo.

O momento seguinte da recepção e apropriação das ideias de Marcuse ocorre logo a seguir à “ação”, gerada por uma impaciência que acreditou poder vencer a ditadura pela luta armada.

O impacto com a duríssima realidade de um sistema social e político, extremamente cruel com qualquer tipo de oposição, principalmente armada, estabeleceu para “as esquerdas” novos limites de pensamento e ação. Uma parte dela voltou-se em direção a outros teóricos como Althusser e Gramsci, que pareciam oferecer perspectivas de análise que permitiriam uma sustentação da resistência a longo prazo, através de outros mecanismos de luta com a ditadura, cuja retaliação, inexorável, era inteiramente desfavorável às esquerdas.

Uma outra parte se voltou  “realmente” em direção à “grande recusa”, tomada por eles porém num sentido tão literal e próprio quanto absolutamente excludente. Recusavam a ditadura, o capitalismo, a tecnologia, todo o legado cultural anterior, a ciência e, principalmente, recusavam a “razão ocidental”. Esta, que no século 18 fora vista como absolutamente necessária e suficiente para dar conta do mundo, ao ser percebida nos anos de 1960 como necessária mas não suficiente, podia, finalmente, ser totalmente descartada. Como não era suficiente, deixara de ser também necessária. Se “o sonho da razão só produzira monstros” até então, era a vez de entronizar a “desrazão” e construir um outro “admirável mundo novo”. Surgiram assim os movimentos de contracultura, assumindo no Brasil dos anos de 1970 a sua versão tropicalista, permeada de um romantismo utópico anticapitalista, antitecnológico. Tudo conspirando a favor de um hedonismo que apontava o corpo e suas sensações como objetivo máximo de “libertação”. O indivíduo passava a ser visto como a última instância indivisível e fundadora de sentido. Marcuse, sem ser consultado, é então embarcado na stultífera nave da contracultura.

De ideólogo da ­contracultura a “mercadoria de grande aceitação”

Creio que alguns fatores se combinaram para a transformação de Marcuse em fonte de inspiração para vários movimentos de contracultura no Brasil: o primeiro é que as pessoas que compunham os grupos de contracultura se detinham basicamente em somente duas das obras de Marcuse, que eram as mais divulgadas no Brasil, Eros e civilização e Ideologia da sociedade industrial. Ao descontextualizar essas obras do conjunto de reflexões de Marcuse, facilitava-se uma apreensão/interpretação “radicalizada” e “idiossincrática” de muitos de seus conceitos, cuja carga de “ambiguidade” poderia se dissolver – ou pelo menos ser matizada – no confronto com as suas demais obras. Essa ambiguidade de muitos dos seus conceitos, que acredito ser mais aparente do que real, associada à força poética de suas propostas utópicas – Orfeu e Narciso contra Prometeu, a necessidade de uma “nova sensibilidade”, a luta contra a repressão, entre outras – deve ter exercido o seu papel nesse processo, de sedução e cooptação de Marcuse como ideólogo de uma contracultura. Não creio, todavia, que realmente, a maioria dos jovens e intelectuais daquela época tivesse “realmente” lido Marcuse, no sentido de uma leitura atenta e reflexiva, capaz de levá-los a compreender a arquitetura das suas reflexões teóricas. Aliás, o próprio Marcuse, naquela época, parece que compartilhava dessa hipótese. Em uma entrevista realizada na França, em 1968, publicada na revista Manchete nº. 863, do mesmo ano, ele afirmou: “Acredito que existem muito poucos estudantes que me leram na verdade…” e atribuía à imprensa e à publicidade criada em torno de seu nome, o fato de ter se transformado numa “mercadoria de grande aceitação”.

A isso agrego uma outra hipótese complementar. Na construção do estereótipo que foi esboçado pelos jovens e muitos intelectuais daquela época, numa simplificação de Marcuse e suas ideias, jogou um papel decisivo um fenômeno a que os ingleses denominam jumping to conclusions. Merquior sugere esse termo em seu livro Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, ao criticar a leviandade de boa parte dos intelectuais ou dos que se acreditam como tal, diante de novas teorias. Para ele, é comum ocorrer nesse tipo de intelectual, uma “alegre corridinha do espírito humano rumo às conclusões precipitadas, saltitando para a proclamação a-crítica de redutoras ‘ideias gerais’, sem se dar ao incômodo de verificar nem qualificar coisa alguma”.

Acredito assim, que boa parte da intelectualidade da época, principalmente os jovens, “portava” Marcuse mais do que o lia. Faziam dele, principalmente, um uso emblemático, carregando suas obras, mais do que as dissecando em seus fundamentos. Através delas, eram conferidos signos distintivos de saber, rebeldia e vanguardismo. Conferiam a seus portadores “poder e atualidade”, expressos no caráter ostensivo da sua exibição. Os livros de Marcuse talvez oferecessem a muitos de seus portadores, na época, o símbolo de uma fantasia de “engajamento e contestação”, acalentada pelos intelectuais e jovens daquele tempo.

Marcuse era, portanto, particularmente naquele momento histórico dos anos 1960, moeda corrente no “mercado dos bens simbólicos”. Sua inserção entre nós não se deu aí através de um real domado nos limites da razão, que se legitima ao estabelecer julgamentos à luz dos fatos. Defendo, pelo contrário, que a apropriação de suas ideias, bem como o processo de constituição das diversas imagens que compuseram os múltiplos “Marcuses”, foram elaboradas sem que o real tivesse exercido hegemonicamente o seu poder. Marcuse foi constituído, principalmente, num hipotético espaço intervalar entre o real – representado aqui pela efetiva publicação de suas obras e o imaginário social, que dele se apropriou reinterpretando-o, permitindo assim o seu uso emblemático.

Marcuse hoje

A última fase da recepção das ideias de Marcuse no Brasil, que basicamente se estende até os nossos dias, vai ocorrer de forma completamente diferente das duas primeiras já descritas.

O período Médici havia sangrado de morte o imaginário dos jovens e da intelectualidade nos anos de 1960 e 1970. Teoria e prática haviam passado por um longo e doloroso confronto. Fora necessário descobrir mecanismos para fazer a revolução, articulando reflexão teórica crítica e a prática. As “aventuras do espírito” tinham sido substituídas rapidamente pelas “aventuras da ação” e para atravessar o limite entre o mundo real, amplamente rejeitado, e o mundo imaginário em direção às utopias, só os teóricos da ação passavam a despertar interesse. A prática revolucionária tinha pressa.

Marcuse vai então para certo ostracismo no Brasil, que dura praticamente toda a década de 1970. Ao retornar, no fim dessa mesma década, viu  seu papel reduzido a um dos membros “menos relevantes” da Es-cola de Frankfurt. A inserção da Escola como um todo já estava aceleradamente em curso e os nomes de Adorno, Horkheimer e Benjamin despontavam como seus maiores expoentes, aos quais se juntou  logo a seguir Habermas.  À Marcuse, a história desse movimento de ideias conhecido como Teoria Crítica reservou um papel de coadjuvante; aquele que, tendo se inspirado nas ideias centrais desse “movimento”, correu em trilho próprio, “radicalizando” algumas dessas concepções teóricas.

Marcuse, porém, agora já despojado da aura produzida pela mídia, podia ser também melhor lido e avaliado. Havia já, entretanto, muitas e variadas opções teóricas à disposição dos intelectuais, inclusive mesmo dentro da própria teoria crítica.

Pode-se também ressaltar que essa última fase de assimilação da Escola e de Marcuse, não mais essencialmente via New Left dos Estados Unidos – onde Marcuse representou figura de proa com predomínio absoluto na primeira fase e boa parte da segunda – foi sucedida por sua vertente “européia”, num retorno às suas raízes originais.

Essa também é a época a partir da qual se destaca, cada vez mais, um intelectual brasileiro que pode, sem nenhum favor, ser apontado como o responsável pelo processo de disseminação da Escola de Frankfurt no Brasil: Sérgio Paulo Rouanet. Através de seus textos, alguns já publicados aqui no fim da década de 1960 e outros mais que vem produzindo regularmente, desde os anos de 1970, se percebe a marca registrada frankfurtiana. A partir de Rouanet expurgou-se, definitivamente, qualquer apropriação irracionalista, fora dos propósitos originais, quer de Marcuse, quer da Escola, como um movimento de ideias. Na obra de Rouanet há, da mesma forma, um sempre renovado esforço de sustentar um debate vivo em torno da Teoria Crítica, quer em relação a seus pressupostos teóricos, quer quanto ao seu potencial como desveladora de nossa contemporaneidade.

Resta por fim nos perguntarmos se, nos tempos atuais, onde se tenta drenar toda energia utópica, principalmente dos jovens – tempos em que o neoliberalismo os convida agressivamente a compartilhar de sua miséria espiritual, reduzindo a sua existência a um bom emprego, a um bom salário, para o consumo ilimitado de objetos e pessoas – se Marcuse ainda tem algo a dizer, particularmente às novas gerações.

Creio que sim e o digo de forma enfática. Não compartilho da ideia atual de que a juventude seja, ou já tenha sido, um bloco monolítico. Sempre houve, como há hoje em dia, muitos tipos de jovens. Para muitos deles – e talvez isso seja realmente hoje uma tendência central, que aspira à hegemonia – não somente o pensamento de Marcuse, mas qualquer reflexão crítica é anacrônica e dispensável, pois isso não ressoa bem na lógica da razão instrumental, na lógica do cálculo onde estão imersos. Porém, para muitos outros jovens, em busca de uma lógica do sentido, capazes de perceber com espírito crítico que na lógica simplista, eficiente e dicotômica entre o mais e o menos do capitalismo, há a possibilidade de se pensar a lógica do suficiente, como nos lembrou certa vez André Gorz. Para que isso ocorra, é necessário pensar para além da unidimensionalidade da razão instrumental, em direção a uma “nova sensibilidade”, acreditando que o rastro de um sonho não é menos real do que o rastro de um passo. Nesse momento, certamente, Marcuse poderá surgir como excelente interlocutor.

Por outro lado, se em tempos sombrios as teorias valem menos do que os homens, nos advertiu Hannah Arendt, ainda assim Marcuse restará, como pensador íntegro e coerente com sua reflexão até o fim. Ficará em nós como grande filósofo que sabia que suas ideias não faziam parte de um hipotético, de inspiração borgeana, “museu das ideias petrificadas para serem admiradas”, mas construía suas reflexões para serem lidas criticamente e ultrapassadas, para se reter delas o essencial e avançar.


Jorge Coelho Soares é professor de psicologia da UERJ, autor de Marcuse: Uma trajetória (Ed. UEL) e Marcuse no Brasil: Entrevistas com filósofos (CEFIL)


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