“O filme é melhor que o livro?”

“O filme é melhor que o livro?”

Uma das principais características da produção literária no país de Hollywood continua sendo sua profunda relação com o cinema

Mauro Rosso

A literatura norte-americana do século 20, além de seus próprios meios, modos e formas de expressão e circulação, teve e tem no cinema uma de suas veredas de veiculação mais frequentes, mais atuantes e mais polêmicas. Sim, muita polêmica pelos próprios elementos acerca da interação e dicotomia entre as duas linguagens artísticas. Interação e dicotomia que sempre existiram em seu relacionamento, muitas vezes complexo, mas intenso. Muitas foram as parcerias estabelecidas entre cineastas, ficcionistas, dramaturgos e poetas, que, além de terem suas obras adaptadas, foram roteiristas e trabalharam ‘a troco de nada’ para Hollywood.

Agora mesmo testemunha-se, circulando pelas telas de boa parte do país, um dos exemplos mais taxativos dessa relação entre literatura e cinema. Relação essa propícia a julgamentos sob a égide contumaz de ‘filme melhor que o livro’, ou ‘livro melhor que o filme’. Com efeito, O curioso caso de Benjamin Button, adaptado a partir de conto integrante da coletânea Seis contos da era do jazz, de F. Scott Fitzgerald, constitui-se em excelente exemplo para permitir uma reflexão sobre a histórica relação literatura-cinema, com suas interseções, confluências e divergências.

Poucas formas artísticas estabelecem entre si tantas conexões, ainda que sujeitas a embates, acusações de “infidelidade autoral”, infindáveis discussões sobre liberdade de criação, etc. Narrativa literária e narrativa fílmica distinguem-se e, na maioria dos casos, se contrastam. São sempre difíceis as transposições de uma para a outra, pois as características intrínsecas do texto literário – originalidades, subjetividades, entrelinhas, elaboramentos – não encontram a mesma expressão na narrativa cinematográfica.

Não se pode negar que, nem tanto em suas origens, mas desde sua fase de consolidação, o cinema tenha procurado na aproximação com a literatura uma forma de legitimar-se. Primeiramente, pelas frequentes adaptações de obras literárias para a tela, o que se tornou prática corrente; depois, pela contratação de escritores como roteiristas. Se os roteiros trazem a marca da criação literária, essa é outra questão, que talvez possa ser analisada a partir da postura de alguns desses escritores-roteiristas. William Faulkner, por exemplo, dizendo-se um “yes, man”, não fazia segredo sobre a natureza de sua atividade em Hollywood: Faço apenas o que me dizem para fazer. É um emprego, e pronto”.

Faulkner, Hemingway e Auster: roteiristas

O elenco de escritores é significativo, quer em quantidade quer, sobretudo, em qualidade. O cinema começou por buscar nos mais antigos as fontes para suas produções. Assim foi, por exemplo, com Henry James, um dos grandes escritores norte-americanos do século 19. O autor teve adaptado, entre outros, os romances A volta do parafuso (Turn of the screw) e As asas da pomba (The wings of the dove), que resultaram nos filmes Os inocentes e As asas do amor, respectivamente. O mesmo ocorreu com Edith Warthon, cujo romance A idade da inocência (The Age of Innocence) foi filmado por Martin Scorsese, em 1993. Criador de histórias policiais, Raymond Chandler, que em 1939 publicara The Big Sleep, teve sua obra adaptada para o cinema cinco anos depois. O roteiro – um dos “mais complexos de todos os tempos”, como confessou o diretor Howard Hawks – foi escrito por ele próprio e Faulkner, ambos já iniciados em suas atividades “a serviço de Hollywood”.

Faulkner tornou-se um roteirista profissional por necessidade de sobrevivência. Adaptou, além de histórias próprias escritas especialmente para o cinema, obras de outros autores, como Ernest Hemingway, cujo romance Ter ou não ter inspirou Uma aventura na Martinica. Sua própria obra serviu de referência para produções como Levada à força, baseada em Santuário; O mundo não perdoa, baseada em O intruso; A fúria do destino, baseada em O som e a fúria. No caso de John Steinbeck, suas obras As vinhas da ira, A leste do Éden e Ratos e homens também ganharam versões para a grande tela.

Ernest Hemingway foi exemplo de um escritor voltado para o ‘cinema’. Seja pela temática, estilo, linguagem e enfoque de seus textos ficcionais, suas histórias pareciam nascer como filmes. Várias delas, como não poderia deixar de ser, foram transpostas para o cinema. Exemplos são os romances O sol também se levanta (The Sun Also Rises), Adeus às armas (A Farewell to Arms) e O velho e o mar (The Old Man and the Sea).

Paul Auster, dos contemporâneos, é um daqueles que mais clara e substancialmente incorporam a duplicidade sinérgica, por assim dizer, entre as duas expressões artísticas. Homem tanto da literatura quanto do cinema, o respeitado ficcionista roteirizou a versão fílmica de Cortina de fumaça (Smoke) e Sem fôlego (Blue in the Face), além de ele próprio dirigir Mistério de Lulu (Lulu on the Bridge) e o recente Kimera, adaptado de sua novela A vida interior de Martin Frost (The inner life of Martin Frost). Philip Roth, talvez o maior escritor norte-americano da atualidade, teve apenas duas obras levadas à tela, Fatal (no filme de mesmo título) e A marca humana (The Human Stain), que resultou no filme Revelações.

Pontos de encontro

Para Randal Johnson, pesquisador e professor da University of California (UCLA), as relações entre cinema e literatura não se limitam às adaptações do texto escrito para a tela. Johnson aponta três outros importantes pontos de encontro: o uso estrutural ou incorporação de textos literários no discurso cinematográfico – esta a ocorrência maior, da qual o cineasta Stanley Kubrick foi um dos maiores artífices; filmes feitos sobre escritores – Clint Eastwood, por exemplo, acaba de confirmar seu projeto de uma biografia fílmica de Mark Twain; por fim, o processo de alusões literárias nos diálogos e citações implícitas ou explícitas, visuais, orais ou escritas diretamente na tela.

Por outro lado, Johnson critica enfaticamente a valorização do texto literário sobre o discurso cinematográfico, sustentando ser muito comum entre os espectadores uma exigência de fidelidade do filme ao livro. A insistência na fidelidade da adaptação cinematográfica à obra literária originária pode resultar em julgamentos superficiais que frequentemente valorizam a obra literária em detrimento da adaptação, sem uma reflexão mais profunda. Os filmes são julgados criticamente porque, de um modo ou de outro, não são “fieis” à obra modelo. O conceito de ‘fidelidade’ assume conotação crucial, tornando-se o chamado “X” da questão na reflexão sobre o relacionamento entre cinema e literatura.

Pode perfeitamente ocorrer de a mais fiel das adaptações gerar o pior dos filmes, de o material literário escrito não funcionar na tela, por mais forte que seja a história no original e melhor o roteirista. Os componentes de um grande romance podem ser impróprios para a realização de um filme baseado nele – o que vem corroborar a sentença do cineasta Stanley Kubrick :“livro é livro, filme é filme”. Kubrick, um respeitado estudioso das relações entre as duas linguagens, fez praticamente todos seus filmes adaptados de matéria-prima literária, uma predileção que o levou a formar produtivas parcerias com diversos autores, na sua maioria, norte-americanos. Terry Southern, por exemplo, foi parceiro de Kubrick em Dr. Fantástico, inspirado no romance Alerta Vermelho, de Peter George. O conto “O sentinela”, de Arthur Clarke, deu origem a 2001 – uma odisseia no espaço – cujo argumento foi criado especialmente para o cinema por Kubrick e Clarke e depois, num movimento de contra-mão, foi transportado para livro.

O roteirista é indispensável para o sucesso de adaptações cinematográficas de obras literárias. Gore Vidal, um dos expoentes da literatura norte-americana contemporânea, não vacila em apontar o roteirista como “o verdadeiro gênio insubstituível por trás de um filme”, defendendo no ensaio “Who makes the movies?” (“Quem faz os filmes?”), que “os diretores de cinema são meros técnicos, facilmente substituíveis e que não podem ser levados lá muito a sério como autores”. Gore escreveu 24 roteiros de filmes e séries para cinema e TV, entre eles “Ben Hur” – do romance de Lew Wallace.

A galeria desses imprescindíveis mediadores entre escritores e cineastas abriga ainda nomes como Ben Hecht, responsável pelo roteiro de E o vento levou (1939), adaptado da obra homônima de Margareth Mitchell; Dalton Trumbo, que dirigiu Johnny vai à guerra, de seu próprio romance, e roteirizou Exodus, de Leon Uris e, por fim, Eugene Solow, que adaptou para o cinema a primeira versão de Ratos e homens (1939), de John Steinbeck.

Rua de mão dupla

Ainda que haja diferenças entre a página e a tela, há laços estreitos em forma de ‘mão e contra-mão’: a página contém palavras que acionam os sentidos e se transformam em imagens na mente do leitor. A tela, por sua vez, abriga imagens em movimento que serão decodificadas pelo expectador por meio de palavras.

Entre a literatura e o cinema, há um parentesco originário, um diálogo que se acentuou sobremaneira após a intermediação dos processos tecnológicos. Optando pela modalidade narrativa, o cinema roubou da literatura parte significativa da tarefa de contar histórias, tornando-se, de início, um fiel substituto do folhetim romântico. A narratividade continua a ser o traço hegemônico da cinematografia, apesar de experimentações mais ousadas (como a Avant-garde francesa da década de 1920, o surrealismo cinematográfico, ou, mais recentemente, a Nouvelle vague, também francesa), que buscaram fugir dessa linha e ultrapassar as limitações formais , “não procurando ordenar o caos”, ao contrário, tornando-o princípio da criação.

O frequente discurso da fidelidade no processo de adaptação da página para a tela, sustenta o professor Randal Johnson, “carrega insinuações de um pudor vitoriano e se baseia na crença difundida de que a literatura é superior ao cinema, um preconceito devido ao fato da literatura ser anterior no tempo ao cinema, o que pode levar à ideia de que o livro é historicamente mais nobre e o filme, secundário, além do parasitismo que seria a crença na ideia de que o filme adaptado suga e destrói o que é essencial no livro”. A dicotomia, portanto, não existiria, “não sendo uma arte melhor nem pior que a outra”, conclui. Até porque muitas vezes é o filme que ilumina e enriquece a obra literária quando da adaptação. O pesquisador norte-americano Robert Stam, autor de A literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação (ed. UFMG, 2008), defende que Orson Welles foi aquele que melhor entendeu a estrutura narrativa de Dom Quixote ao transpor para a tela a monumental obra de Cervantes. Stam defende que nem o escritor Daniel Defoe pressentiu e externou a misoginia colonialista presente em Robinson Crusoe, como o fez Jack Gold no filme que dirigiu.

Por fim, talvez uma conclusão possa ser refletida na apreciação sobre o cinema formulada pelo escritor Saul Bellow:

“Não sei o que o futuro nos reserva. Talvez a literatura seja ultrapassada e surjam novas e melhores formas de arte em seu lugar. Se isso acontecer, para satisfação geral, e se o mesmo trabalho for realizado por meios diferentes, ninguém fará objeção. Porém, não me parece que os filmes tenham esse efeito sobre as pessoas”.

Alguns filmes baseados em obras literárias:

F. Scott Fitzgerald
O curioso caso de Benjamin Button
Título original: The curious case of Benjamin Button
Direção: David Fincher
2008

O grande Gatsby
Título original: The great Gatsby
Direção: Jack Clayton
1974

O último magnata
Título original: The last Tycoon
Direção: Elia Kazan
1976

Ernest Hemingway
O sol nasce para todos
Título original: The sun also rises
Direção: Henry King
1957

Por quem os sinos dobram
Título original: For whom the bells tolls
Direção: Sam Wood
1943

O velho e o mar
Título original: The old man and the sea
Direção: John Sturges
1958

William Faulkner
A fúria do destino
Título original: The sound and the fury
Direção: Martin Ritt
1959

O mundo não perdoa
Título original: Intruder in the dust
Direção: Clarence Brown
1949

Tennessee Williams
Um bonde chamado desejo
Título original: A streetcar named desire
Direção: Elia Kazan
1951

Gata em teto de zinco quente
Título original: Cat on a hot tin roof
Direção: Richard Brooks
1958

Esta mulher é proibida
Título original: This property is condemned
Direção: Sydney Pollack
1966

John Steinbeck
As vinhas da ira
Título original: Grapes of wrath
Direção: John Ford
1940

A leste do paraíso
Título original: East of Éden
Direção: Elia Kazan
1955

Paul Auster
Cortina de fumaça
Título original: Smoke
Direção: Wayne Wang
1995

Sem fôlego
Título original: Blue in the face
Direção: Paul Auster e Wayne Wang
1995

Philip Roth
Revelações
Título original: The human stain
Direção: Robert Benton
2003

Fatal
Título original: Elegy
Direção: Isabel Coixet
2008

(2) Comentários

  1. mano do céu adorei o texto, mas poderia ser um pouco menor!!! #elenao #lulalivre #elesim #bolsominion

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