O caos como política

O caos como política
(Arte Revista CULT)

 

O governo Bolsonaro, para comemorar 100 dias na presidência, assinou decreto que visa a extinção de colegiados da administração pública direta, indireta e fundacional. Na prática, o ato visa diminuir de 700 para menos de 50 o número de conselhos previstos pela Política Nacional de Participação Social (PNPS) e pelo Sistema Nacional de Participação Social (SNPS). Para não deixar dúvidas, o ato diz que se incluem na definição de conselhos os “comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e qualquer outra denominação dada a colegiados”.

O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, “concedeu” prazo de 60 dias para os órgãos justificarem a sua existência. Para ele, os conselhos “resultavam em gastos com pessoas que não tinham nenhuma razão para estar aqui, além de consumir recursos públicos e aparelhar o Estado brasileiro”.

Entre os ameaçados estão organismos fundamentais para a sociedade brasileira como o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade), o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de LGBT (CNCD/LGBT), o Conselho Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (Conaeti), o dos Direitos do Idoso (CNDI), o de Transparência Pública e Combate à Corrupção (CTPCC), o Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp), o de Relações do Trabalho, o de Agroecologia e Produção Orgânica (CNAPO), a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI), a da Biodiversidade (Conabio), o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI).

O ato em si, tecnicamente falando, é uma grande bagunça. No seu quinto artigo estabelece a data de 28 de junho de 2019 para a extinção de todos os colegiados, mas excepciona aqueles criados ou alterados por ato publicado a partir de 1º de janeiro deste ano. Deveria a administração ter feito uma pesquisa sobre quantos sãos os Conselhos criados por decreto em operação e analisar um a um a sua pertinência. Para não ter que se dar esse trabalho, se extinguem todos, exceto aqueles criados pela atual gestão e até a data estabelecida, se não houver grandes reclamos, assim está feito.

Do ponto de vista político, a medida revela o desapreço da gestão pela participação da população nas decisões do poder público o que, por consequência, trará menor transparência e dificultará a fiscalização dos seus atos. No início do governo, se tentou praticamente inutilizar a Lei de Acesso à Informação, outro instrumento importante de fiscalização e acesso de qualquer pessoa a assuntos relativos à administração pública.

A política como valor ético para a sociedade e a para a democracia tem sofrido incessante bombardeio nos últimos anos. Ouso dizer que o agudo processo de sua criminalização tem colocado – e esse é objetivo – a política como valor negativo. Esta ação, por evidente, visa aprofundar o alheamento da população das principais decisões nas três esferas do poder público, bem como desestimular a participação política, criando com isso a apatia como regra.

O que motiva o ato, para além da preguiça dos atuais gestores, aversão à técnica legislativa e aos preceitos do direito administrativo é a instalação do caos como política. Em texto primoroso, Marcelo Semer cravou neste espaço uma contundente denúncia do pensamento dos novos ocupantes do poder executivo que colocam a morte como eixo da sua política. A esse texto me somo com esse desdobramento da forma caótica de gerir o Estado. Se nos assuntos relativos a direitos individuais, aos direitos humanos e à segurança pública a morte se apresenta como objetivo a ser alcançado pelo atual governante, o caos e a incerteza nos assuntos da administração são o seu complemento.

Denunciamos aqui nesta coluna o fato do projeto intitulado “anticrime” do atual ministro da Justiça ter sido apresentado sem justificativa, débil de estudos de impacto no sistema de justiça, indicativos de pressupostos e base teóricas. Depois se soube, por meio de matéria do jornal Folha de S.Paulo que o projeto levou 23 dias para ser elaborado e teve como base arquivo pessoal do ministro. O desprezo pela forma e ausência de busca por uma racionalidade dos atos da administração revelados pelo decreto referido e pelo projeto do ministro Moro, pode ser apontado como um novo método de tratar a coisa pública. Ou melhor, uma ausência dele.

Da mesma forma, essa ausência de método e racionalidade nos atos da administração se evidencia na quantidade monstruosa de liberação de agrotóxicos pelo Ministério da Agricultura, no ofício com o slogan do novo governo do ex-ministro da Educação para as escolas cantarem o hino, na suposta transferência da embaixada brasileira para Jerusalém ou na patética intervenção do ministro Araújo na crise com a Venezuela.

O caos como política representa sim, não há como negar, inexperiência e indigência intelectual dos principais quadros do atual governo, mas ao mesmo tempo, essa negação do método e ausência de uma racionalidade nos atos da administração tem um objetivo certo que é o de implodir as estruturas estatais, tais como conhecemos desde a Constituição da República de 1988, negando-se o acesso a população a mecanismos de participação e controle. A aversão a tudo que tiver social no meio não é gratuita.

O Art. 2º do decreto que extingue os colegiados, ao mesmo tempo que parece um meme de tão tosco, torna possível extrair a sua aversão a qualquer tipo de ação coletiva da política. Foi preciso mencionar as palavras “comitês, comissões, grupos, juntas, equipes, mesas, fóruns, salas e qualquer outra denominação dada a colegiados” para mandar uma mensagem inequívoca de que o que vemos é uma passagem de uma forma de democracia limitada na gestão pública para o viés autoritário.  Esses sobressaltos, falta de planejamento, incertezas e essa forma caótica de gerir o Executivo pode revelar uma ausência de um projeto claro de país, mas não de poder.

PATRICK MARIANO é advogado criminalista, mestre em direito pela UnB e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP


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