O bolsonarismo puro vai às ruas
(Arte Revista CULT/Divulgação)
Aprende-se muito, politicamente, com a observação de manifestações públicas. As demonstrações políticas do domingo, por exemplo, apontam para um fenômeno político muito interessante, que vou chamar de depuração do bolsonarismo. O que significa, como eu o entendo, que o movimento bolsonarista está ficando mais nítido ideologicamente e mais homogêneo na sua composição. Isso aconteceu principalmente porque todo movimento tem suas franjas, de modo que que, neste caso, as margens com menores convicções bolsonaristas, embora ainda apoiem a administração Bolsonaro, resolveram manter uma distância razoável da adesão incondicional ao governo. E marcaram posição não indo à manifestação. Além disso, é razoável imaginar que, com o passar do tempo e com a diminuição da força aglutinadora do antipetismo, o bolsonarismo vai ganhar uma identidade mais nítida, e mostrar o que realmente constitui o seu cerne: é muito mais uma força conservadora do que um projeto de direita.
Os protestantes deste domingo pertencem ao núcleo do bolsonarismo, sem dúvida alguma. Nas marchas contra a corrupção, de 2015, e nas manifestações pelo impeachment de 2015 e 2016, ainda se podia polemizar sobre a natureza dos manifestantes, que se enunciavam majoritariamente como não tendo vínculo partidário nem orientação ideológica e estando ali apenas em defesa do Brasil e contra a degradação da vida pública alegadamente promovida por Dilma e pelo PT. A esquerda desconfiava que eles eram de direita, mas direita há muitas, como se sabe e, agora, se vê. Além disso, inicialmente ainda não havia se firmado a consciência de que o antipetismo era o mais importante movimento político dos últimos vinte anos, e que este movimento empurrava os seus protagonistas e figurantes para a direita e a extrema-direita no espectro ideológico e para o conservadorismo e ultraconservadorismo no espectro moral. Mas é claro que, além da identidade antipetista, outras identidades sobrepostas a estas, algumas recém-saídas do armário, como os intervencionistas militares, já estavam presentes nas demonstrações. E ao sentimento antipetista se somava um pujante sentimento antipolítica, que já tinha debutado em manifestações exatamente em junho de 2013. Havia ainda, em suma, uma considerável diversidade, pelo menos em autoconsciência, dos que convergiam naquelas manifestações.
No domingo passado, talvez tenhamos tido as manifestações políticas da direita com configuração mais nítidas e com identidade mais homogênea, pelo menos desde que os conservadores de direita começaram, em 2015, a mobilizar massas em grandes demonstrações no Brasil, quando já fazia 50 anos a série de manifestações públicas denominadas Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que aconteceram entre 19 de março e 8 de junho de 1964. Sim, é isso mesmo, a direita ficou 50 anos fora das ruas, até que foi despertada do seu torpor pelos protestos “contra tudo o que está aí” de 2013 e 2014, que demarcaram o fim da longa hegemonia da esquerda nas urnas e nas ruas.
Pois bem, o perfil e a autocompreensão dos participantes destas manifestações do novo ciclo da direita na rua foi se depurando e firmando nos últimos cinco anos. Primeiro, elas foram basicamente protestos. Orientadas, portanto, pela negação e pela crítica do status quo – contra o PT, contra Dilma, contra a corrupção – ou para a demolição do estado vigente das coisas, nas manifestações pelo impeachment. No domingo, porém, a massa não estava protestando contra o status quo, mas se manifestando a favor do seu presidente e das políticas públicas que podem garantir a sobrevivência política e eleitoral dele.
Os protestantes domingueiros que foram às ruas lidaram com condições peculiares que testaram a sua adesão ao bolsonarismo. A demonstração havia sido claramente convocada como uma reação ante a surpreendente força da manifestação em defesa das universidades e da educação, ocorrida em 15 de maio. Lembremo-nos que as últimas grandes manifestações públicas protagonizadas pela esquerda, vocês devem se lembrar, foram o Ele Não, de 29 de setembro, e aquela contra a candidatura Bolsonaro, em 20 de outubro de 2018. A militância digital bolsonarista havia conseguido neutralizar o impacto eleitoral do Ele Não sem precisar sequer ir às ruas em uma contramanifestação, apenas pela edição dos protestos nos grupos de WhatsApp. Já o protesto de 20 de outubro teve resposta imediata em uma contramanifestação ainda maior, chamada “PT Nunca Mais”, no dia seguinte, 21 de outubro, que foi a maior demonstração pública do poder de fogo do antipetismo, às vésperas do segundo turno da eleição presidencial. Mas era uma manifestação por aglutinação em face do que não se queria, a vitória eleitoral do PT, sem necessariamente haver afinação ideológicas entre as partes que se juntaram.
A manifestação pela Educação (o 15M) não poderia ser contrabalançada sem esforço, vez que teve forte e imediato impacto no sistema político, mobilizando deputados e senadores, mas também porque envolveu setores não diretamente na linha de fogo da retórica governamental e das medidas e provocações de Weintraub, como estudantes secundaristas, universidades particulares e universidades públicas não federais, porque teve ampla e honesta cobertura dos meios de comunicação de massa. Os Alfas das matilhas digitais foram, então, acionados pelo alto comando do bolsonarismo, via mídias sociais, para irem às ruas exibir força e mostrar os dentes aos mais recentes grandes inimigos da nova hegemonia: o Congresso e o STF. Falou-se, então, em “ditadura do Judiciário”, em STF como “vergonha nacional” e mesmo em “derrubar o ST” e “fechar o Congresso”. Contudo, como à parte pragmática do governo e dos seus apoiadores parecia contraproducente que o presidente e os seus garotos estivessem à frente de multidões solicitando o fechamento de dois dos Poderes da República, ainda mais neste momento em que as duas instituições podem avariar duramente as iniciativas legislativas do governo, pareceu-lhe necessário forçar um recuo e redirecionamento do protesto. Resolveu-se, assim, que o sentido das manifestações estava mudado, e que agora seria só para apoiar os três principais projetos do governo: a MP 870 (reforma ministerial), a reforma da Previdência e a Lei Moro. Foi o curioso caso de uma manifestação que teve o seu sentido fortemente modificado depois de ter sido convocada.
Além disso, as partes do bolsonarismo mais interessadas nas reformas ultraliberais de Guedes do que nas reformas ultraconservadoras dos ministros da guerra cultural (refiro-me a Weintraub, Araújo, Damares Alves, Heleno, Mandetta, Terra e Salles), afastaram-se pública e ruidosamente do protesto. Porque consideraram que não havia como evitar que os manifestantes atacassem o STF e o Congresso, aumentando ainda mais a animosidade das duas instituições contra o governo, mas também porque consideravam que o governo faria melhor se governasse, fizesse política institucional e trabalhasse politicamente pelas tais “reformas que o Brasil precisa” em vez de ficar perenemente mobilizando a massa bolsonarista, atiçando-a contra os seus alvos de momento. Assim, uma parte importante da liderança da nova direita, com o MBL e Janaína Paschoal, por exemplo, se distanciou do núcleo bolsonarista radical. Outros, como Joice Hasselmann, a líder do governo, não pouparam crítica aos atos. E mesmo o Partido Novo, que tem se contentado em ser uma força auxiliar do governo Bolsonaro, não apoiou o movimento.
Restou para ir à rua em mais uma manifestação domingueira em verde e amarelo, apenas o que se pode chamar de “bolsonarismo puro-sangue”. Que é o bolsonarismo de intensa adesão ideológica, descartados os aliados por conveniência ou convergência de interesse político (no caso, o Novo e o DEM, por exemplo), ou por convergência de interesses nas políticas públicas com impacto econômico (os defensores da “agenda Globo News”, como o MBL) ou quem tem alguma visão ainda pragmática da política (como Janaína Paschoal e, imagino, Mourão). Note-se que a consistência ideológica do “bolsonarismo puro”, contudo, não se estabelece a partir do tradicional espectro ideológico cujos polos são a direita e a esquerda, e que se define em função da perspectiva adotada sobre o impacto das políticas públicas na economia e na igualdade social. No caso do bolsonaristas, trata-se principalmente do espectro ideológico cujos polos vão dos conservadores aos liberais, onde o que está em jogo são valores morais, estilos de vida, princípios e visões de mundo.
A minha hipótese é que o bolsonarismo puro, esse das ruas no domingo, é mais ultraconservador do que de direita. Isso quer dizer, que lhe interessa mais a pauta da guerra cultural e a agenda reacionária do que a pauta ultraliberal e a agenda da crise econômica, que é muito mais antipolítica do que a favor de reformas estruturais. E que é muito autoritário na relação com instituições do Estado que possam representar qualquer obstáculo ao governo e absolutamente não pragmático na condução dos negócios públicos, que lhes parecem repugnantes. Por outro lado, está muito mais interessado no ajuste moral do mundo do que no ajuste das contas públicas, e considera que vigiar e punir lhe vai bem melhor que planilhas e cálculos de contabilidade pública. Enfim, o bolsonarismo puro-sangue é muito tão Sérgio Moro e tão pouco Paulo Guedes.
Ora, direis, mas o presidente disse, os mestres da Globo News concordaram e a linha Paulo Guedes no governo fez questão de anotar que os patriotas foram as ruas pela primeira vez na história para defender a reforma da Previdência, que era impopular em todos os governos, mas agora é a política pública predileta da massa. Como assim, você está afirmando que os bolsonaristas não são esclarecidos liberais, mas obscurantistas conservadores? Tudo depende do que significa reforma da Previdência para eles. A minha tese é de que nem sequer a entendem. Foram para a rua defender Bolsonaro e a sua sobrevivência política – e se isso significa reforma da Previdência ou vender empresa pública, tanto faz, que assim seja. Além disso, o governo não se demonstra interessado em vender uma reforma liberalizante da Previdência aos bolsonaristas, mas uma reforma moralizante da Previdência. Ou seja, a compreensão que esta multidão tem da reforma se resume à ideia de que ela é necessária para punir políticos e castigar os marajás do Serviço Público. Para o bolsonarismo depurado e que se deu ao trabalho de ir à rua no domingo, apoiar a reforma da Previdência se resume a ser “contra um deputado se aposentar com 30 mil reais por mês” e “contra os privilégios” do Judiciário e da elite do funcionalismo público. É só no território moral que o bolsonarismo se sente em casa.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)