O bolsonarismo conflagrado

O bolsonarismo conflagrado

 

Senhoras e senhores, façam silêncio, por favor, que uma parte do bolsonarismo não está conseguindo negociar com a realidade. Continua em estado de profunda denegação psíquica desde o domingo à noite, recusando-se a se alimentar de fatos e evidências, ou de qualquer coisa sólida, real e tangível, ingerindo apenas delírios persecutórios, alucinações, teorias da conspiração e fake news produzidos pelo próprio grupo.

De Norte a Sul do país, mais ao Sul que ao Norte, repetem os mesmos sintomas: vestem camisas amarelas da seleção ou bandeiras nacionais, como se estivessem indo ao futebol, reúnem-se à beira de estradas ou em frente a quartéis, caminham de um lado para outro gritando coisas desconexas como se estivessem em transe e, enfim, postam vídeos fazendo coisas ridículas ou absurdas. Caso se deparem com grupos com esses sintomas, deem meia volta, se puderem.

Indagados por que se comportam desse modo, logo depois de rosnar ameaças ao jornalismo balbuciam coisas como “o povo não aceita que um criminoso governe o país”, “as eleições foram fraudadas”, “somos contra o comunismo”, “estamos aguardando as ordens do nosso presidente” e “as provas da fraude eleitoral estão chegando”.

Em hipótese alguma o interlocutor deve pronunciar os nomes Lula, PT, Alexandre de Moraes, TSE ou Janones quando em excursão etnográfica aos acampamentos auriverdes das viúvas do bolsonarismo. A não ser para algum anúncio, que alguns deles já foram documentados Brasil afora, da prisão, impeachment ou exílio desses seres odiados.

No bolsonarismo conflagrado, não há canais de comunicação com o mundo externo, o acesso ao que produz o jornalismo profissional é considerado ato merecedor de excomunhão. Há, contudo, intensa conexão com as redes de comunicação digital que articulam todo o bolsonarismo, numa cadeia que certamente chega até as cercanias da Presidência.

O bolsonarismo institucional e o bolsonarismo resignado estão manejando dois sistemas de comunicação ao mesmo tempo: uma comunicação pública e uma comunicação privada, ad intra. Na comunicação pública, reprovam o bolsonarismo conflagrado e até demonstram algum incômodo com os radicais fechando rodovias, jogando-se sobre carros, depredando propriedade e implorando na frente de quartéis que os militares deem um golpe em seu benefício. Mas sabem que as franjas radicais e mobilizadas do bolsonarismo estão principalmente esperando que o presidente emita uma ordem para ações mais radicais.

Na comunicação particular, em grupos do WhatsApp ou Telegram, o bolsonarismo que parece resignado, contudo, coordena a terminologia, a estratégia e a pauta das reivindicações: a palavra de ordem é “intervenção federal” em lugar de golpe, a reivindicação não é em nome de Bolsonaro, mas do “povo brasileiro”. E dão a entender que uma ordem, cifrada para não ser entendida pelos pagãos que não compartilham de suas crenças (o chamado “apitos de cachorro”), pode ser emitida a qualquer momento. Os conflagrados da seita bolsonarista, de fato, estão aguardando ordens.

Quando pesquisadores interceptam as comunicações particulares dos grupos, flagram acaloradas conversas sobre como interpretar as declarações públicas de Bolsonaro. As ideias de que “forçaram o presidente a dizer isso” ou “o vídeo de Bolsonaro é fake news montado pela esquerda e pelos globalistas” não são raras.

De qualquer foram sabemos o que fazem nas ruas os radicais do bolsonarismo. Estão ali motivados pelo medo alimentado por um volume gigantesco de histórias alucinadas: a de que o comunismo será implantado, igrejas serão fechadas, o MST morará nas nossas casas, crianças serão forçadas a virar homossexuais e os banheiros, vejam só, serão todos unissex. Estão ali para testemunhar a sua fé construída ao longo de anos pela mitologia sebastianista de que Bolsonaro é efetivamente o Messias prometido.

Estão ali sobretudo para mostrar-se insubmissos às instituições republicanas e ao jornalismo, como resultado de anos de radicalização política sem volta. Como os adolescentes europeus de origem árabe que fugiram de suas casas para se alistar na guerra do grupo terrorista Estado Islâmico, seu Orcival do 601, o delicioso personagem golpista criado pelo jornalista Octávio Guedes, abandonou sua vida sem graça para se juntar à Cruzada Bolsonarista do Últimos Dias e partir para retomar o Palácio do Planalto, a Nova Jerusalém, do mouro que o usurpou. Isso é radicalização ideológica, extremista e perigosa, mesmo que conduzida com meios patéticos e sem noção do ridículo. Não tenham dúvida disso: nada é mais perigoso politicamente do que um idiota ideologicamente motivado.

 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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