O autoritarismo da vida cotidiana mais uma vez

O autoritarismo da vida cotidiana mais uma vez
(Foto: Divulgação)

 

Já comentei que ao publicar Como conversar com um fascista, em 2015, muitos questionaram a categoria de análise que eu utilizava como se ela fosse um exagero. Outros não perceberam que se trata de uma proposição; não exatamente de uma pergunta e muito menos de uma resposta. A ironia do título não significava jocosidade, mas em sentido filosófico, era a colocação em cena do tema do autoritarismo da vida cotidiana para que se pudesse pensar livremente sobre ele.

Pensar livremente, por sua vez, significa fazer uso da reflexão que busca a verdade e não a mera retórica que distorce o sentido das coisas como vem acontecendo no Brasil em um processo de retrocesso moral e ético confirmado na linguagem.

Na ocasião do lançamento do meu livro, todos conhecíamos o autoritarismo da vida cotidiana que é parte da sociedade brasileira. Caráter autoritário é algo que há em qualquer sociedade e a nossa não foge à regra, em que pese toda a mistificação sobre a amorosidade afetiva dos brasileiros. Esse é um assunto bem complicado que devemos analisar com mais cuidado em outro momento.

Nesse momento, gostaria de definir as sociedades democráticas como sendo aquelas que conseguem frear as tendências autoritárias e alcançar uma espécie de equilíbrio, já que não é possível eliminar essas tendências, até porque elas surgem de aspectos psicológicos ligados ao poder. Há que se ter cuidado com a psique do mundo, que vem sendo controlada por manipuladores profissionais há muito tempo. Mas quem pensa em política em geral desconsidera esse aspeto seríssimo.

Infelizmente, a questão psíquica do poder é uma das mais complicadas e menos estudadas. E se pensarmos que, de um lado, há a publicidade sem limites atuando sobre todas as esferas da vida e viciando pessoas em consumo e narcisismo, e de outro – mas intimamente ligado ao primeiro – há o poder econômico e político ocupado por paranoicos, temos uma equação complexa para resolver. É um fato que a maioria dos que estão no poder em momentos autoritários é composta de paranoicos, além da parcela considerável de oportunistas. A paranoia, por sua vez, não é apenas uma categoria psiquiátrica, mas uma categoria política sobre a qual precisamos pensar mais.

Por ora, devemos saber que não há democracia perfeita. Já os gregos que a inventaram sabiam disso. Uma democracia se constrói necessariamente nas tensões com seu oposto, o autoritarismo que permanece latente nas estruturas democráticas em graus diversos de pressão.

Já o fascismo é outra coisa. Há pelo menos duas formas claras de fascismo: o fascismo do indivíduo, que em geral permanece “em potencial”, e o fascismo de Estado. No primeiro caso, temos o sujeito do preconceito e do ódio ao outro próprio da personalidade autoritária. No segundo caso, temos a organização do ódio como combustível político e a personalidade autoritária elevada a modelo de ação política.

Nesse caso, não há mais democracia. Um tirano manda e os outros obedecem. O líder autoritário exige subserviência e os adoradores – ou seus puxa-sacos e lambe-botas – o transformam em mito.

O fascismo genérico é o que primeiro define um cidadão que está sempre psicologicamente pronto a ser capturado pelo fascismo de Estado. Ou seja, quando surge um líder autoritário para manipular as massas, o cidadão está lá, pronto para ser manipulado porque já foi “trabalhado” nos preconceitos e no ódio ao outro.

Podemos dizer que no fascismo há uma exacerbação do autoritarismo e a morte da democracia. E com a democracia, morrem as instituições. Morre a economia, a educação, a religião, a arte e não apenas a política. Como um veneno sobre a cultura. Mas é verdade também que a semente fica lá, soterrada.

A democracia também depende de fatores psicológicos contrários à paranoia. É nesse ponto que se fala de resistência, porque alguém tem que proteger a semente e regar a planta para que ela floresça e produza frutos e mais sementes.

Talvez a metáfora possa parecer gasta. Mas não é. Em questões políticas se trata sempre de cultura. E cultura política é uma assunto sério. Países com uma cultura política mais densa tendem a não cair no fascismo, que é uma espécie de delírio do poder, como escrevi no livro que está para chegar a público em alguns dias.

As tendências da fascistização do Brasil não foram criadas em 2018, evidentemente. Elas vinham de longe, dos processos de sutil lavagem cerebral perpetrados pelos donos dos meio de produção dos discursos, a saber, meios de comunicação de massa, televisão, igrejas, e hoje em dia as redes sociais. É evidente que não se pode colocar a responsabilidade pelos erros humanos nos meios, seria uma desculpa para a liberação dos compromissos éticos que devemos assumir. Mas também não podemos esquecer que os meios definem uma parte considerável do sentido das mensagens.

Escrevo agora pensando no professor que me lê e usa esse texto com seus estudantes. Estudantes cujas capacidades de pensar vem sendo extirpadas pelos meios de comunicação de massa e redes sociais. Sabemos que a “indústria cultural” extirpa a reflexão há muito tempo. Não foram apenas Adorno e Horkheimer, antes deles Kant clamava pelo uso da razão como nós temos que retomar agora.

Mas o que mais podemos fazer para mudar esse estado mental de delírio além de insistir na contramão? Além de continuar alertando os jovens que ler e estudar, pesquisar e analisar criticamente são fundamentais para uma vida democraticamente consistente?

Será que a democracia ainda é um valor?


Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

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