‘Como conversar com um fascista’, três anos depois

‘Como conversar com um fascista’, três anos depois
Cassandra, de Anthony Frederick Augustus Sandys (Reprodução)

 

Desde a publicação da primeira edição de Como conversar com um fascista, em 2015, não canso de justificar a eleição do termo pelo qual fui constantemente criticada. Apesar dos muitos leitores que viram no livro um apoio para seguir lutando pela democracia, aos quais agradeço pela leitura, não faltou quem achasse que a expressão era um exagero. Aos que perceberam o elemento irônico do título, eu só tenho a agradecer.

Naquela época cheguei a brincar com algumas pessoas sobre o meu “complexo de Cassandra”, aquela personagem das narrativas míticas amaldiçoada por fazer previsões nas quais ninguém acreditava. No livro eu não anunciava o fascismo como se ele fosse uma novidade, eu apenas o constatava como um traço na subjetividade contemporânea e que, se continuasse sem freios, poderia nos atropelar. Com o olhar atento que deve caracterizar a atividade filosófica, reflexiva e crítica, eu apontei diversos momentos e eventos discursivos ou ações nos quais havia sinais de configuração subjetiva da personalidade em tudo idêntica ao que, em outros tempos, foi chamado de fascismo. Não insisti no termo neofascismo, porque, de fato, não havia nele, nada de realmente novo.

Não me ative à análise do fascismo de Estado, aos líderes políticos, embora mencione alguns. Em livro posterior, chamado Ridículo político, falo muito mais dos personagens da política que se capitalizaram por meio do discurso de ódio, sobretudo o discurso disfarçado de zombaria, de graça, tais como os de Jair Bolsonaro, aquele que fala sem que as pessoas acreditem nas barbaridades que diz e, mesmo assim, votam nele. Em Como conversar com um fascista, me refiro ao fascismo enquanto formação subjetiva da personalidade, enquanto característica do ser humano ordinário, no mesmo sentido em que Theodor Adorno referiu-se à “Personalidade autoritária” que estava na base do tipo humano do “fascista em potencial”.

“Fascista” é termo adequado para definir o representante de um discurso vazio de reflexão, mas cheio de preconceito e ódio, que assume diversas características estereotipadas. Alguém que, por exemplo, segue um líder destrutivo a pregar ódio, que se identifica com esse líder, alguém que não tem capacidade de amar, de ter compaixão pelo outro, além de ser incapaz de raciocínios complexos. Fascismo é, nesse livro, um padrão de pensamento caracterizado pela repetição de clichês e pelo esvaziamento da reflexão. O fascista é o sujeito ativo do mal banal, um ativista do mal cotidiano, aquele que distorce as falas alheias, que vive de fazer fake news, de fomentar o racismo e o machismo e se orgulha disso. Ele é um manipulador, alguém que se vê como uma coisa e pensa que os outros também são coisas e não pessoas humanas. Ele é um masoquista e sádico ao mesmo tempo. Seu comportamento também é estereotipado, ele é conservador por falta de raciocínio e cínico ao mesmo tempo. A incapacidade de amar, de relacionar-se com um outro de igual para igual mostra a lacuna da dimensão oblativa. O outro é apagado mentalmente. Depois pode ser apagado na realidade já que, segundo a perspectiva fascista, ele não deveria existir. Mata-se uma pessoa e depois rasga-se a placa de rua que leva o seu nome como aconteceu com a vereadora Marielle Franco que representava tanto para tanta gente. O ódio ao outro se torna a base da subjetividade em um meio mental e emocional de frieza extrema. Esse ódio se expressa na prática discursiva e é estimulado e manipulada por ela.

No entanto, não é o fascista como cidadão ordinário que manipula o ódio. O sujeito autônomo, o indivíduo com sua visão de mundo particular, deixa de existir ao ser usado como parte da massa. Os meios de comunicação tem um papel fundamental nesse processo. No Brasil atual, perderam-se os limites das produções discursivas e, lançados em uma histeria coletiva, os cidadãos se entregam ao ódio a partir de mecanismos que escapam ao seu controle. O que a televisão sempre fez é o que as redes sociais fazem hoje, só que em uma escala infinitamente maior.

Infelizmente, o fascismo está entre nós mais uma vez, só que agora de forma declarada e explícita. Em diversos países e cidades do mundo, ele ressurge na expressão coletiva de autoritarismo exacerbado. A forma desavergonhada do discurso de ódio – com ameaças de violência e morte – e suas práticas, continua sua trajetória, e sem mediações segue a eleger políticos sem capacidade alguma para legislar ou governar. O clima de barbárie que, desde alguns momentos catastróficos, pensávamos ter sido superada e que nunca mais iria se repetir, parece incontornável e o medo toma conta.

Da Europa às Américas, de Norte à Sul, cresce o ódio ao diferente e às pessoas marcadas como socialmente indesejáveis, e desaparece o respeito ao singular que caracterizou a perspectiva democrática, sempre frágil e nunca suficientemente consolidada em lugar algum do planeta. Menos ainda em nosso país. A ideia do direito e da justiça cede lugar à barbárie. Uma atmosfera sombria escreve adeus à civilização em letras de sangue pelos muros invisíveis das grandes cidades. Na Itália e na Alemanha, grupos fascistas se rearticulam amparados em suas próprias origens. Na França, a cultura de esquerda, historicamente crítica ao fascismo, perde espaço para uma extrema-direita estupidificante. Nos Estados Unidos, um muro concreto se ergue na fronteira para evitar a passagem do estrangeiro, no Brasil e na América Latina o discurso de ódio é manipulado nos meios de comunicação de massa e golpes de Estado se tornam prática comum de uma extrema direita capaz de devorar o adversário político desrespeitando limites constitucionais básicos. O fascismo nos trópicos surge renovando o espírito capitalista da colonização que vem de longe.

Encarceramento em massa, trabalho escravo, matanças por todo lado. Se há jovens negros assassinados diariamente no Brasil, há os palestinos na faixa de Gaza e as mulheres estupradas e mortas em números aterradores pelo mundo afora. O núcleo de toda violência contra a diferença é o ódio que, no extremo de sua expressão, se apressa em aniquilar o outro. Uma crescente cultura do assédio sexual e moral se estabelece no mundo das corporações como se as pessoas devessem todas se submeter a uma nova regra, a de que haverá atrocidades para todos os que não se submeterem. Tudo isso redesenha o “senso fascista” de nossa época sem que se saiba como contrapor práticas capazes de frear esse sentido infeliz da história humana. Em contextos diversos, presos políticos surgem em nome de uma Razão de Estado que naturaliza no mundo da vida o estado de exceção transformado em regra.

A política institucional ou cotidiana volta a ser mais questão de violência e menos de poder. As afetividades negativas além do ódio: a inveja, o ressentimento, a avareza, estão em cena mais uma vez potencializadas para os fins do controle ideológico e psicológico das populações novamente submetidas e escravizadas, desamparadas e abandonadas. A luta de classes cede lugar à guerra de todos contra todos. Os limites subjetivos que implicavam a vergonha por certos pensamentos preconceituosos desaparece. O respeito ao outro deixa de ser uma questão, ninguém mais sequer toca nesse tema.

O fascismo como ideologia – e como prática – é sempre um fenômeno histórico, ou seja, se modifica conforme as condições de possibilidade a partir das quais surge. Embora haja um nexo histórico evidente, a diferença entre os fascismos de outrora e o atual está nas suas condições de difusão: as novas tecnologias e a internet modificam o que chamamos de fascismo. Se o fascismo do século 20 foi anterior à televisão, o novo não apenas conta com ela e mais ainda, com a velocidade da difusão e a proliferação das ideias na internet. Não há fascismo sem propaganda e as mais perfeitas e perversas condições estão dadas para o seu avanço nos tempos da razão publicitária.

Cabe, em nossa época, pensar a resistência, descobrir como seria possível desviar o rumo ao qual nos levam os meios de comunicação, as redes sociais e a vida digital, máquinas e aparelhos hábeis em produzir esvaziamento subjetivo e, assim, contribuir para a transformação do cidadão comum em fascista em potencial.

No cenário mundial, cabe perguntar pelo potencial do diálogo na reconstrução de um caminho democrático para a cultura cotidiana e a política institucional. O tempo é de alerta e de puxar o freio de mão da história mais uma vez.

Prefácio da 13º edição de Como conversar com um fascista (Record)


> Leia a coluna de Marcia Tiburi toda quarta no site da CULT

(3) Comentários

  1. A melhor maneira de lidar com um fascista é deixa-lo sufocar sozinho no próprio ódio. Se ele avançar e agredir, o Código Penal autoriza a legítima defesa.

  2. E aí? Td bem?
    Creio que vc leu o livro “PSICOLOGIA DE MASSAS NO FASCISMO” de Wilhelm Reich.

    Então? A razão da imperfeição do mundo, portanto dos homens e suas instituições não é desse mundo. Por mais perfeito que possamos pensar uma instituição ou um programa, sempre haverá interferências de variáveis que trabalham pela imperfeição das coisas.
    O fascismo é uma patologia e está entranhada em todos nós.

  3. “Cabe, em nossa época, pensar a resistência, descobrir como seria possível desviar o rumo ao qual nos levam os meios de comunicação, as redes sociais e a vida digital, máquinas e aparelhos hábeis em produzir esvaziamento subjetivo e, assim, contribuir para a transformação do cidadão comum em fascista em potencial.”

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