O apóstolo do individualismo

O apóstolo  do individualismo

Em entrevistas e palestras, Faulkner defendeu uma fidelidade ao indivíduo que está na raiz do caráter multifacetado de suas personagens e em sua recusa a fazer da literatura um instrumento político
Um demônio fez William Faulkner virar escritor. Um de­mô­nio interior, que lhe inspirava a necessidade de escrever, arrebatava-o e o mantinha até o final ligado no conto ou no romance que estivesse produzindo. Segundo o próprio Faulkner: “Esse demônio é inato. É possível que você tenha de cultivá-lo, acalentá-lo, alimen­tá-lo, regá-lo e fazê-lo crescer, mas não creio que se possa adquirir esse demônio.” Não que excluísse a possibilidade de alguém vir a se tornar um escritor sem o demônio estar por trás da opção, mas, a seu ver, “é mais fácil e você terá mais sorte se possuir esse demônio desde o início”.

Isso, claro, valia para os escritores de ficção. Para aqueles escritores que trabalham com os sentimentos, e não com as idéias. Essa diferenciação, feita por ele inúmeras vezes em suas entrevistas, não implicava hierarquias. O demônio, a seu ver, seria prejudicial a um escritor que procurasse desenvolver idéias, pois o tornaria negligente, pouco cuidadoso. Para esse tipo de escritor, mais que um demônio, ele acreditava serem necessárias a erudição, a disciplina e a prática.

Mas Faulkner era um escritor do outro tipo, um escritor dos sentimentos. Dizia não ter tido instrução e dizia não confiar nas idéias. Se perguntado quanto a seu projeto de retratar a civilização sulista americana, ele simplesmente negava os termos em que a pergunta lhe era colocada: “Somente tentei descrever os seres, isso é a única coisa que importa para mim. Nada mais do que o coração humano, e não as idéias.” Ou, quando questionado se o instrumento mais importante do homem era o espírito ou o coração, respondia: “Não tenho muita confiança no espírito. É aqui [apontando para o coração] que se acha a verdade. Cedo ou tarde o espírito nos abandona, mas o coração não.”

Esse interesse pelo coração humano tem raízes antigas em sua vida. Algumas, meramente fac­tuais. Entre essas ele aponta, por exemplo, as viagens que fazia com um tio político nas épocas de eleição, quando, por força da campanha, ouvia todo o tipo de pessoa falando sobre suas vidas, suas dificuldades, suas profissões etc. Outras, no entanto, dizem respeito a sua percepção do mundo. Faulkner era um ver­dadeiro após­tolo do individualismo. E as diferenças entre os homens, para ele, se evidenciam sobretudo no campo dos sentimentos. As idéias parecem-lhe tender à aglutinação, à uniformização, ao desaparecimento das diferenças na medida em que, por exemplo, se tornam hegemôni­cas numa sociedade.

Faulkner era, também, um oti­mista. Acreditava no progresso espiritual e material da humanidade. Acreditava que caminhávamos para uma “bondade final”. Tinha, claro, dúvidas se nossa espécie iria ter tempo suficiente pa­ra atingi-la (talvez as ame­aças nucleares da época da Guerra Fria lhe incutissem a ressalva); mas acreditava que o homem não tinha opção: era progredir ou morrer. Tal progresso, porém, não se dava de forma organizada. Era na luta contra seu próprio coração, contra o coração de seus semelhantes e seu ambiente que o progresso dos indivíduos se efetuaria. Sua concepção de progresso, portanto, tinha algo de caótico. Nada ficava de fora desse suposto movimento contínuo de aprimoramento espiritual, nem mesmo os fanáticos político-ide­o­ló­gicos manipuladores das mas­sas. “Tudo isso faz parte do germe que levará à imortalidade do homem”, dizia Faulkner. “Essa gente, esses malucos, também são necessários.”

O homem encontraria sua salvação sozinho, em seu interior, numa concepção individual de religião e de Deus. Por isso Faul­kner descartava qualquer espécie de associação, qualquer sentimento de pertença a um determinado grupo, classe, igreja ou organização. Eram todos instâncias anuladoras da individualidade. Ele atuava como escritor segundo suas crenças, ou seja, focalizando as pessoas, nada mais, e desacreditando qualquer literatura que se pretendesse um instrumento político. Para ele, “quando alguém começa a tratar da injustiça da sociedade, ele deixa de ser, em primeiro lugar, um romancista e se torna um pole­mista ou um propagandista. O autor de romances de imaginação não é nada disso. Ele se utiliza da injustiça da sociedade, da desumanidade das pessoas como de qualquer outra ferramenta, com o intuito de con­tar sua história, que consiste em descrever seres humanos, e não a injustiça ou a desumanidade das pessoas, mas as próprias pessoas com suas aspirações, seus esforços e as situações bizarras, cômicas ou trágicas com que se deparam”. Qualquer mensagem em um romance, afora a apreciação das individualidades em movimento, era para ele uma simples ferramenta de trabalho, como a retórica ou a pontuação, e não a essência da obra.

O amor, o dinheiro e a morte  são os três temas fundamentais para qualquer história, que se repetem eternamente, dizia Faul­kner. E a maneira como os personagens reagem e vivem os dilemas por eles colocados, essa é infinitamente variável, é a casa de força de toda obra de ficção. O escritor precisa ser atento às pessoas, sem julgá-las, simplesmente aprendendo por que elas fazem o que fazem:

“Para mim, todo comportamento humano é imprevisível e, considerando a fragilidade do homem e o universo em processo de desmoronamento no qual se agita, tudo é irracional. Ele não pode ser muito razoável, porque o universo não é muito ra­zoável, ao que me parece. Creio que escritor algum gostaria de instituir-se como juiz. Se começasse a julgar os seres que descreve, quaisquer que sejam os deuses que lhe permitem fazer alguma coisa, fazer o que gosta, poderiam tomar-lhe de volta o seu dom. (…) O escritor se interessa por todas as condições humanas, sem absolutamente julgá-las. É o movimento, é a vida, pois a única alternativa é o nada, a morte. E então, para o escritor, tudo o que o homem faz está certo, pois é o movimento. Se não fizesse isso, não faria nada no lugar.”

A observação seria, portanto, uma das fontes básicas de todo escritor de ficção. Mas para Faul­kner há ainda outras duas: a imaginação e a experiência. Segundo ele, é natural que todo escritor, ao começar, escreva sua própria autobiografia, “porque ele descobriu o mundo e descobriu que o mundo tem importância suficiente, é suficientemente emocionante, suficientemente trágico para que ele o ponha no papel, (…) e porque nesse momento tudo o que ele conhece é o que aconteceu consigo mesmo, pois ainda não desenvolveu suas faculdades de percepção para penetrar na alma dos indivíduos”. Mas à medida que o escritor se desenvolve, seu poder de observação aumenta, sua compreensão dos personagens se apro­funda, sua experiência se amplia, e ele pode, então, dar mais asas à imaginação, pois ela terá lastro. Por fim, numa terceira etapa, as três fontes do escritor se fundiriam de modo que ele não mais conseguisse identificar o que tirou de uma ou de outra.

Nesse momento de maturidade, o escritor vê e ouve tudo o que põe no papel. Ele ouve o dialeto usado por seu personagem e não pensa num discurso para depois traduzi-lo no dialeto pretendido. Nesse momento, ele aprende com seus personagens, pois os con­cebeu de modo sincero, atendo-se às verdades fundamentais da conduta humana.

À luz dessa filosofia de trabalho, não é difícil entender por que os personagens de Faulkner são multifacetados. Alguns chegam a inverter seus sinais; positivos em um livro, em outro livro revelam toda sua perversidade. Ou vice-versa. Tal estratégia de composição literária não visa anular a individualidade do personagem em prol dos desígnios do autor, muito pelo contrário. É em si a afirmação dessa individualidade.

Assim como o personagem faulkneriano tem várias facetas, tem também, dentro de si, vários tempos. “O futuro de um homem faz parte desse homem”, dizia Faulkner. O passado e o presente, claro, já estão no pacote. Uma explicação para a fusão temporal que Faulkner promove em suas narrativas está na crença mística de que não existe era. “O tempo é; e, se não houver nada que se pareça com era, então não haverá nada que se pareça com será; o tempo não é um estado fixo.”

Se o presente não é seqüência do passado, nem o futuro do presente, a estrutura da narrativa dos livros é portanto subjetiva, e não cronológica. “É como a arrumação de uma vitrine”, dizia Faulkner. “É preciso uma certa dose de dis­ cernimento e de gosto para dispor os objetos nos lugares onde produzirão o melhor efeito.”

Disso ele entendia.

Rodrigo Lacerda
escritor, autor de Tripé, O mistério do leão rampante (ambos pela Ateliê Editorial) e A dinâmica das larvas (Nova Fronteira). Traduziu, com Newton Goldman, o romance Palmeiras selvagens, de Faulkner, que acaba de ser lançado pela Cosac & Naify (na qual é um dos editores). As citações aqui reproduzidas foram tiradas do livro Faulkner à l´Université (Gallimard, Paris, 1964). Entre 1957 e 1958, Faulkner esteve na Universidade de Virgínia como escritor residente, onde concedeu entrevistas e ministrou palestras, posteriormente reunidas no volume acima citado

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