O anatomista da palavra
Autor de uma obra freqüentemente comparada à do romancista francês Marcel Proust, Pedro Nava construiu, com sua prosa poética, ícones verbais que materializam o rumor da língua e a auscultação do corpo.
Pedro Nava tem ouvido de poeta e olho de pintor. Foi poeta bissexto, embora não seja de seus poemas que vou tratar neste artigo. Pretendo comentar o caráter poético de sua prosa memorialística, ou seja, como as características da linguagem poética salpicam sua escrita nos livros de memórias. Parto da citação de um trecho de carta de Nava enviada a mim e datada de 21 de fevereiro de 1983:
“… considero-me poeta de segunda ordem, ou mesmo terceira. Meu vôo é o das galinhas que, quando muito, pulam de um terreiro para outro, batendo umas asas de renúncia e impotência. Para ser completamente franco, tenho ternura por dois poemas meus que têm sido ultrapubli cados: ‘Mestre Aurélio entre as rosas’ e ‘O defunto’, que saiu em edição de luxo da Macunaíma, Bahia, em 1967. Este poema foi corrigido pelo Bandeira, mas eu suprimi as correções porque não gostei delas. A versão que adotei é a da segunda edição da Antologia. Ruim mas minha. Esses dois poemas têm apenas valor documentário a meu respeito e o mesmo acontece com outro chamado ‘Alcazar’ (é o nome de um bar que existe até hoje em Copacabana e a que eu era assíduo com o Vinícius de Morais há 40 anos). Esse ‘Alcazar’ é o único poema que gosto francamente, de todos que escrevi. Ele me recorda época de tumulto e desespero de que ele ficou servindo de marco dentro de minha vida.”
Vale lembrar ainda uma frase de Francisco Iglésias sobre Nava: “O moço inquieto publicou alguns poemas que prefigurariam uma carreira de poeta, não de prosador.” É curioso ler a carta de Mário de Andrade, de 16 de outubro de 1925, a Carlos Drummond de Andrade, corroborando a citada frase de Iglésias: “quanto à poesia dele (Nava) não sei ainda, porém me parece que será o mais batuta de vocês todos. Como poeta”. E logo a quem Mário falava!
A vocação figurativa (figurar é converter os dados sensoriais em imagens) da escrita de Pedro Nava estende-se aos números. Na recente publicação dos cadernos 1 e 2, espécie de diário do memorialista, lê-se:
“o jeito rotundo do oito
o sete tem de peixe
o um é magro como a necessidade
6 – bunda grande em mulher magra
9 – peito grande em mulher magra
o nariz grego do quatro
o ar lamentoso do cinco
o aspecto cisneal e deslizante do dois”.
O princípio operacional estético deste olho sensível é a analogia. É através das correspondências analógicas que as coisas são ditas de um modo que potencializa esse dizer. Em determinada passagem do Chão de ferro, o diamantinense Cisalpino pergunta a uma prostituta há quanto tempo ela estava na zona. Resposta: “– Na zondegas mesmo, tem dois anos”. O comentário do narrador: “Zondegas é palavra rebolante e movediça, onde há zona mesmo, ondas altas e nádegas, nádegas em vagas”. É essa consciência da materialidade do signo que Pedro Nava demonstra em inúmeros trechos das memórias.
Embora Nava tenha afirmado em Baú de ossos: “Não roubei (de Proust) o que escrevi muito atrás sobre analogias do solo desigual da casa de minha avó paterna – oscilante sobre as dunas de Fortaleza – e o da basílica de São Marcos – ondulante às marolas da laguna de Veneza”, dentre os autores que servem de referência ao maior memorialista em língua portuguesa está Marcel Proust, uma moldura da qual não consegue nem parece querer fugir. Um exemplo do Balão cativo:
“Quando folheio a iconografia proustiana, sempre o reconheço (a personagem De Capol) nos retratos de Swan-Charles Haas, sobretudo o deste, moço, braços cruzados, pupilas sonhando.”
Leo Schlafman observa que Proust tinha um olhar medicinal sobre o mundo, a vida, as paixões. Tudo é patologia, são sintomas, e toda descrição é diagnóstico, principalmente no amor.
Nava também depõe: “A influência médica é, em mim, total. Eu não julgo, diagnostico. Eu não aconselho, nem opino; prescrevo e receito. Eu não ouço, nem escuto; ausculto. Eu não olho nem vejo; ins pecciono. Eu não seguro nem passo a mão; toco, apalpo, perscruto. Tendo todos os sentidos voltados para o modo de ser médico, minha literatura sofreu, inevitavelmente, a marca que a profissão deixou em mim”. Nava sabia auscultar os órgãos do corpo e o rumor da língua.
No que diz respeito à linguagem dos dois autores, vale notar a semelhança de procedimento estético nestes dois exemplos. O primeiro, a seqüência proustiana em que a senhora de Guermantes aparecia ao narrador com a auréola do prestígio, porque “banhada, como em um poente, na luz alaranjada que emana desta sílaba antes”. Os nomes Florença e Veneza têm na Recherche poder de sugestão infinito. Nava, o anatomista da palavra, tem procedimento análogo ao revolver as vísceras do nome “Belo Horizonte”:
“Belo Horizonte, que lindo nome! Fiquei a repeti-lo e a enroscar-me na sua sonoridade. Era longo, sinuoso, tinha de pássaro e sua cauda repetia rimas belas e amenas. Fonte. Monte. Ponte. Era refrescante. Continha fáceis ascensões e aladas evasões.”
Ambos os autores apresentam uma poética da cor e uma poética da luz. Ambos mergulham no tempo, mas são também mestres do espaço, inclusive do espaço primordial que é o corpo. Se Nava, no Círio perfeito, fala na “memória das mucosas do nariz”, Proust, em O tempo redescoberto, lembra que “as pernas, os braços estão cheios de lembranças embotadas”. Mas não é este artigo o lugar de se aprofundar as aproximações e diferenças entre os dois gigantes do memorialismo ocidental.
Voltemos à linguagem de Nava, focalizando agora seu traço caricatural, o qual funcionava para o narrador como um antídoto contra a amargura. Diz o memorialista em Baú dos ossos:
“Depois de caricaturar meus rancorizados, eles perdem completamente o travo e posso pensar neles até com piedade. Liberto-me do ódio. Porque este, em mim, como o amor (logicamente, como o amor), acompanha o defunto também.”
Recorto apenas um exemplo do Círio perfeito:
“Só o que este (o Panúrgio) tinha de capivara e porquinho-da-índia, aparecia no outro (Evilandro Cornelino) como a anatomia dum gorila. (…) Homem de má catadura. Lembrava de relance o Brutus de Miguel Ângelo”.
A idéia do ícone verbal, para muitos o cerne do conceito de poesia, vai realizar-se centenas de vezes nos seis volumes publicados das memórias. Uma reflexão sobre a linguagem poética, desenvolvida no Chão de ferro, termina com este belo e sensível comentário sobre a palavra central em um verso de Alphonsus de Guimaraens:
“… mas é sobretudo em CINA MOMO, nas ogivas de seus NN e MM, nas suas duas últimas sílabas orquestrais de palavra gótica e catedralesca que floresce a poesia.”
A palavra cinamomo torna-se um ícone verbal, um significante que não apenas evoca imagens, mas é ele próprio imagem. Há uma gesticulação visual na escrita de Nava, próxima do conceito de isomorfismo (identificação fundo-forma). Eis um exemplo em que Nava exercita claramente recursos da poesia concreta:
RONAIRSA
RONAISA
RONASA
N
ROSA
(Galo-das-trevas)
A metamorfose mulher-rosa dá-se no miolo do próprio nome, através de uma operação ver bivocovisual de obstetrícia poética. A prosa de Pedro Nava apresenta fantasmas de ritmos inesperados, estilhaços de versos harmonizados, voluminizados, que exercem função claramente poética.
Há uma passagem do Chão de ferro que revela a fonte do aprendizado de uma visão plástica das palavras feito pelo memorialista no Ginásio Anglo-Mineiro. O mestre de Nava foi o diretor Joseph T. W. Sadler:
“Ele (Sadler) pegava-as (as palavras) em estado de brutas, como saíam do dicionário, e só de pronunciá-las, calcando uma sílaba, tornando esta mais alta, aquela mais ondeada – como que as lapidava para a jóia do período precioso. Ele dizia cada uma como se fosse anatomista mostrando seus segredos mais íntimos, cada parte de seu organismo, sua força de fibra e músculo, sua estrutura e esqueleto, o mistério palpitante de seu bojo visceral. Escalpelava-as. Virava-as pelo avesso.”
Nava, mais tarde, estudante de medicina, relacionou o conhecimento de anatomia, das aulas do professor Lodi, com as aulas informais sobre arte no escritório de Aníbal Machado. Códigos médicos e linguagem artística se completam. A obra de Nava ultrapassa sua história pessoal, é mais que o retrato de uma época. É, antes de tudo, a cintilação de uma pátria de signos.
Antônio Sérgio Bueno
professor aposentado de literatura brasileira da UFMG, autor de Vísceras da memória (Editora da UFMG), entre outros.