Notícias de nossa Macondo particular
O escritor Gabriel García Marquez, autor de 'Cem anos de solidão' (Foto: Divulgação)
Como fazer as pessoas acreditarem que fantasias imaginárias são realidade? Como espremer uma mentira tantas vezes até que seu suco tenha um gostinho de verdade? Como travestir de ciência e jornalismo o que não passa de imaginação?
Gabriel García Márquez será lembrando como autor do clássico contemporâneo Cem anos de solidão, livro que o tornou o mais popular expoente do realismo mágico e do boom latino-americano, além de lhe ter garantido o Prêmio Nobel de Literatura. 50 anos após seu lançamento, Cien Años de Soledad talvez seja conhecido pelos millenials como a nova série em língua espanhola que o Netflix irá produzir. Não importa. A saga da família Buendía – que reconta a história da Colômbia e, alegoricamente, a de todo o continente latino-americano – segue relevante. Não tão famosa quanto sua obra de ficção é a carreira jornalística de García Marquez, que lhe garantiu o pão enquanto lançava seus primeiros livros, ainda sem chamar a atenção do grande público. O jornalismo foi fundamental para que o autor colombiano encontrasse sua voz e sua retórica. As técnicas aprendidas com a reportagem permitiram a Márquez narrar os acontecimentos mais absurdos e fantásticos de forma crível, como ele explicou em uma entrevista incluída no livro One hundred years of solitude (Bloom’s Modern Critical Interpretations), organizado pelo crítico norte-americano Harold Bloom:
“(…) Se você disser que há elefantes voando no céu, as pessoas não vão acreditar em você. Mas se você disser que há 425 elefantes no céu, as pessoas provavelmente acreditarão. Cem anos de solidão é cheio desse tipo de coisa. Lembro-me particularmente da história sobre o personagem que é cercado por borboletas amarelas. Quando eu era muito pequeno, havia um eletricista que veio até nossa casa.(…) Minha avó costumava dizer que, toda vez que esse homem aparecia, ele deixava a casa cheia de borboletas. Mas quando eu estava escrevendo isso, descobri que se não dissesse que as borboletas eram amarelas, as pessoas não acreditariam. Foi assim que eu fiz para torná-lo crível. O problema para todo escritor é a credibilidade. Qualquer um pode escrever qualquer coisa desde que isto seja crível.”
Infelizmente, as técnicas exploradas por García Marquéz para dar vida a Macondo foram aprendidas com esmero por uma grande parte de populistas da nova direita que se apoderou do discurso objetivo e científico do jornalismo para divulgar mentiras travestidas de notícias. No Brasil, nossa Macondo particular, Jean Wyllys, deputado eleito pelo PSOL (e que também participou da Primavera Literária Brasileira) foi vítima de uma grande campanha de fake news promovida pela extrema-direita brasileira.
Uma dessas notícias falsas dizia que “O MPF identificou repasse bancário de R$ 50 mil de Jean Wyllys ao advogado do esfaqueador de Bolsonaro [Adélio Bispo]”. Adélio, o homem que esfaqueou o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral, nunca recebeu 50 mil reais de Jean Wyllys, mas essa notícia se fez real para algumas pessoas porque inclui valores e de órgãos públicos (como o MPF) e outros dados que costumam dar veracidade ao jornalismo. São os dados que garantem cores de verdade às notícias.
É interessante observar que essas técnicas são usadas, também, pelos principais escritores alinhados com Bolsonaro, como o best-seller, e pensador de extrema-direita Olavo de Carvalho que em seu livro O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e em seus vídeos no Youtube se utiliza de dados e da linguagem jornalística para defender teses absurdas como a ideia de que o presidente Obama não é americano, a teoria de que o mundo é governado por uma elite global formada por banqueiros comunistas e a amalucada ideia de que a Pepsi usa fetos humanos abortados para adoçar seus refrigerantes.
Parece absurdo, mas esse livro de Olavo de Carvalho foi publicado pela respeitada Editora Record e vendeu mais de 300 mil exemplares em um país onde a média de leitura é de apenas 2,4 livros por ano. Esses 2,4 livros por ano incluem a Bíblia Sagrada, leitura favorita dos brasileiros, segundo pesquisas. Ao mesmo tempo, 30% da população do Brasil nunca comprou um livro na vida. Esta obra de Olavo, calcado em fake news, estava na mesa do presidente Jair Bolsonaro durante seu primeiro discurso como presidente eleito do Brasil, oficializando Olavo como escritor oficial do governo com sua filosofia calcada num realismo mágico paranoico e mal-intencionado.
Nada disso é novo, no entanto. Políticos conservadores espalhando notícias falsas para justificar violência e medidas em benefício próprio estão no cerne da origem do nosso país. Acontece hoje com Marielle Franco e Jean Wyllys, acontecia quando o homem branco chegou à região onde nasci entre o final do século 19 e começo do século 20. Descobri isso durante a pesquisa histórica para o meu primeiro romance, Desamparo, que surgiu da minha vontade de escrever algo sobre minha terra natal.
Grande parte das informações do meu livro vem de jornais antigos. É interessante observar que antes das redes sociais e dos “blogs sujos”, cada grupo político tratava de fundar seu jornal local para poder difundir suas próprias verdades. Assim como faz o MBL, Olavo de Carvalho e outros grupos políticos por trás de sites como Folha Política, Mídia sem Máscara e Jornalivre.
Os coronéis de Desamparo, este meu romance, faziam também uso dos grandes jornais estaduais para divulgar suas versões da história. É o caso das cartas do Coronel Manoel, envolvido em grilagem de terras, fundador de diversas cidades do sertão paulista e interessado nos negócios que a chegada da estrada de ferro às terras de kaingangs e oti-xavantes geraria. (kaingangs e oti-xavantes eram os nações indígenas que habitavam a região antes da chegada do homem branco.) Através de cartas aos jornais da capital, Manoel criava a narrativa dos selvagens violentos empenhados em assassinar os colonos que queriam trazer o progresso ao interior. O assassinato do agrimensor Christiano Olsen que trabalhava para o Coronel Manoel medindo terras que seriam roubadas dos nativos foi usado intensivamente como cartada final contra os kaingangs. Assim escreveu Manoel:
“É, pura e simplesmente o que estão fazendo tais agrimensores e os habitantes da zona, pouco importa que os índios tal não agradem, é o livre exercício do direito de propriedade (…) São dois interesses que se repelem: o da civilização e o da conservação dos índios em seu estado nômade, dando pasto às suas tendências sanguinárias e reivindicatórias. ”
No entanto, o coronel Manoel e os políticos da época esqueciam de noticiar as chacinas de indígenas que seus bugreiros promoviam. Em Desamparo, essa guerra de versões é contada primeiro na versão “oficial” dos brancos, com foco na morte de um agrimensor e de seus capatazes que mediam as terras indígenas. Depois, revela-se que o ataque dos indígenas era vingança contra um crime brutal: um grupo de funcionários da estrada de ferro teria interrompido um casamento kaingang, matado os convidados e violentado brutalmente a noiva antes de assassiná-la.
A chacina e os estupros cometidos durante um casamento de kaingangs foi noticiada em uma carta aos jornais da época, mas ofuscada pelas fake news e campanhas publicitárias que alardeavam o comportamento violento e desumanizado dos nativos. Na guerra de versões dos conflitos agrários que marcaram a expansão para o oeste paulista, venceu a verdade dos coronéis, ou seja, as fake news.
Para encerrar este artigo, uma derradeira fake news. Uma que faz parte da gênese do meu romance, da origem da minha cidade natal e que representa muitos dos conflitos que se repetem agora durante o governo Bolsonaro e suas campanhas de notícias falsas nas redes.
Quando comecei a escrever meu livro, o personagem principal seria o fundador oficial da minha cidade, chamado, em Desamparo, de Coronel Manoel Antero dos Santos. Pesquisando sobre a história da fundação, descobri que muitos posseiros haviam chegado à região antes de Manoel e que muitos desses colonos eram mulheres. Um causo que se repetia muito nos livros que cobriam a origem da cidade dizia que no final do século 19, 11 colonos haviam sido assassinados brutalmente por kaingangs enfurecidos que lhes haviam decepado partes íntimas e mutilado seus corpos. A primeira leva de notícias que apurei era de que os índios haviam matado os brancos simplesmente por serem selvagens e sanguinários.
Pesquisando mais sobre o assunto, encontrei um depoimento de um membro de uma das famílias mais tradicionais da cidade, que no livro chamam-se Capa Negra. Esse Capa-Negra dizia que os kaingangs haviam matado os colonos em represália ao estupro de um indígena pelo fazendeiro Modesto Moreira. Essa era a segunda versão da verdade. Modesto Moreira era o único fazendeiro negro da região, numa época onde a escravidão africana ainda era lei. Ele se dava bem com os kaingangs e cerca de 25 nativos trabalhavam em sua propriedade. O estranho era que o massacre dos 11 aconteceu em uma fazenda que não era a de Modesto e na qual a maior parte dos mortos pertencia a uma família branca chamada Pinto Caldeira. A quem interessaria que o bode expiatório do massacre fosse o único negro livre da região?
Pesquisando ainda um pouco mais, encontrei em uma tese universitária, outra versão da história, muito mais coerente. Os colonos Pinto Caldeira haviam matado alguns kaingangs que colhiam milho em sua roça. O massacre dos Pinto Caldeira seria uma retaliação. Só que essa história, essa terceira versão da verdade, estava em uma nota de rodapé da história. O fato de uma família pioneira ter matado kaingangs a sangue-frio não interessava às notícias ou livros. Fiquei pensando naquele homem Modesto Moreira, o único negro livre da região, difamado como abusador e pivô do massacre dos kaingangs Fiquei pensando nos kaingangs pintados como selvagens assassinos, cujo extermínio seria um ato civilizatório. Fiquei pensando nas mulheres pioneiras que haviam sido apagadas da história para que se erguesse em seu lugar uma estátua do Coronel Manoel, o homem desbravador. E resolvi escrever meu livro sobre eles. Sobre a busca de vingança pelo pai traído e difamado que foi Modesto Moreira, amigo dos kaingangs, por sua filha Rita Telma, síntese da cabocla pioneira do oeste paulista. Baseado nos fatos apurados, procurei combater essas fake news históricas com uma versão tropical de Hamlet. Modesto Moreira já está morto há mais de século. Quantos ainda são difamados e têm suas mortes justificadas pelas mentiras e verdades oficiais transformadas em armas de campanha?
Para combater as fake news sobre as origens da terra onde nasci, como jornalista, fui pesquisar e apurar o que lá havia se passado. Como escritor, ficcionista, busquei preencher as lacunas – que eram muitas – e, ironicamente, a literatura e as ferramentas de García Márquez foram as armas necessárias para caçar alguma verdade e combater as mentiras instituídas, as fake news da época.
Encerro com o final de meu romance Desamparo, escrito sobre fatos ocorridos no século passado, mas com a cabeça voltada para o Brasil atual:
“É por isso que vim até aqui, (…), para lhes contar esta longa história triste e pedir-lhes, com fé no futuro do mundo (…), que vocês impeçam essa guerra que ameaça começar. (…) Que impeçam que o sangue continue a temperar os solos desbravados pelo homem. Que a morte deixe de ser nossa principal moeda de convencimento. E que a dor de enxergar demais, e de viver o que os outros sofrem, deixe de ser meu fardo. Apesar de tudo tenho um fio de esperança no futuro. Um fio no qual me agarro com meus grossos dedos enrugados e que me mantém aqui; lembrando de todos meus mortos. É impossível, que nos dias que virão, essas histórias sigam a se repetir em uma farsa trágica. Pelo menos é o que preciso acreditar para escapar do desespero. Meus olhos doem. Coração sangra. Ando exausta de morrer.”
A fala “Notícias de nossa Macondo particular” foi apresentada no festival Printémps Litéraire na Universidade de Sorbonne, em Paris, em março de 2019
FRED DI GIACOMO é escritor e jornalista, autor de Desamparo