Publicado há 50 anos, Cem anos de solidão fez de Macondo expressão simbólica da América Latina

Publicado há 50 anos, Cem anos de solidão fez de Macondo expressão simbólica da América Latina
Gabriel García Márquez em retrato de 2010 (Foto: Miguel Tovar/Ap Photo)

Principal obra de Gabriel García Márquez e uma das mais importantes da literatura latino-americana foi lançada no dia 30 de maio de 1967

 

Gabriel García Márquez tinha 40 anos quando foi publicado, no dia 30 de maio de 1967, Cem anos de solidão. Morava no México há seis anos, com a mulher, Mercedes Bacha García, e o filho. Não fazia muito sucesso como escritor e jornalista. Entregou à Mercedes toda a sua economia de cinco mil dólares para passar os quatorze meses seguintes elaborando a obra. O livro não vinha, o dinheiro não dava. Carro, joias e utensílios foram penhorados.

Quando concluiu a obra, não tinha dinheiro para enviar os originais para seu editor. Enviou apenas metade do romance. Depois da publicação, rapidamente se tornou Gabriel García Márquez, um dos grandes nomes da literatura latino-americana. O romance já vendeu Cem anos mais de 50 milhões de exemplares mundialmente e foi traduzido para 36 línguas.

Atrás dessa figura mítica, no entanto, na intimidade de sua ‘máfia de amigos’, o escritor Eric Nepomuceno guarda a imagem de um homem tímido, “um amigo afetuoso, com um humor caribenho luminoso, um andar de bailarino, um sorriso triste, uma fé inabalável na vida. Uma memória invulnerável, uma alegria de viver, uma inteligência singular”.

O escritor brasileiro, responsável pela tradução de nove títulos de Márquez para o português, também diz que, para compor uma versão brasileira do colombiano, foi muito importante recorrer às lembranças de suas frequentes conversas na mesa redonda da copa da casa de García Márquez. Quando fazia as traduções do espanhol, “o mais difícil era encontrar o tom, a melodia, a sonoridade da sua excelente carpintaria literária. E a saída foi, sempre, lembrar da voz dele”, relembra.

Antropófago de primeira, García Márquez mastigou, através da saga de sucessivas gerações do clã dos Buendía, a história da civilização ocidental em Cem anos de solidão. Recorrendo, para tanto, a textos bíblicos, descobertas do Renascimento, das grandes navegações, das lutas de independência do século 19 e das ditaduras, como relembra o professor de letras da UFSCar Wilson Alves-Bezerra.

Gabo uniu, a todo esse tecido cultural ocidental, uma visão aguda que expunha as veias latinas. Frente à normalidade do mágico, o espanto de uma suposta cultura autóctone que não conhece o gelo, o imã, a dentadura. Seja pelo fascínio fantástico, pelo momento histórico, pela militância política, Cem anos de solidão assentou o povoado ficcional de Macondo no imaginário ocidental.

É o que a professora de história da UFMG, Adriane Vidal, denomina de macondismo. Na suas palavras “interpretar a América Latina por meio da narrativa expressa no romance, o que transformou Macondo em expressão simbólica da América Latina, promovendo paralelos entre a pequena cidade ficcional e a história do subcontinente”.

Gabriel García Márquez com a primeira edição de ‘Cem anos de solidão’, em 1975 (Foto: Isabel Steva Hernandez/Divulgação)

Da América Latina para o mundo

Márquez atingiu essa grandeza pois “Cem anos de solidão foi a culminação de um processo de internacionalização do romance latino-americano”, na opinião de Alves-Bezerra, autor de Páginas latino-americanas: resenhas literárias (2016). Na esteira de outros autores latinos que já estavam ganhando projeção mundial na década de 1960, como Carlos Fuentes, Borges, Vargas Llosa, Cortázar, Cem anos de solidão surge como o “o primeiro best seller do nosso continente”, afirma o professor.

Foi um sucesso instantâneo. A primeira tiragem, de dez mil exemplares, esgotou-se em quinze dias. Veio a segunda edição, com a mesma tiragem e o mesmo destino. Márquez, que até então nunca vendera mais de dois mil exemplares de um livro, despontou rápido como um “acontecimento estético e político que contribuiu para mostrar a singularidade e a importância da produção literária latino-americana para o mundo”, de acordo com o professor de história da América Latina da USP Julio Pimentel Pinto.

O cenário político da década de 1960 é, na opinião da professora Adriane Vidal, outro motivo fundamental para sua celebração mundial. “A consagração desse livro se deve, em grande medida, ao papel da rede intelectual latino-americana de esquerda que vinha se formando desde 1960. Além de sua qualidade literária, o sucesso se explica por ter sido publicado em uma época de grande efervescência política e literária na América Latina”, afirma. O boom da literatura, os movimentos revolucionários, os exílios políticos e as denúncias sobre violações de diretos humanos em vários países que viviam sob ditaduras militares são alguns elementos do cenário descrito pela professora.

Eric Nepomuceno diz que “o número de pessoas que compraram esse livro formaria uma população suficiente para integrar um dos vinte países mais habitados do mundo”. Tal é sua importância vital, pois “mais do que entender as nossas comarcas, [Cem anos de solidão] nos ajuda a entender a vida”, complementa o escritor.

Nepomuceno acredita que o colombiano ficava sempre entre a política e o humano: “Não há uma mísera e solitária linha panfletária no que ele escreveu. Não há um cisco de militância política. E, no entanto, sua obra é toda política. Militante, claro. Mas, isso sim: militante da vida”.

Gabriel García Márquez no México, em outubro de 1965, enquanto escrevia ‘Cem anos de solidão’ (Foto: Guillermo Angulo/Harry Ransom Center/Reprodução)

Raça condenada a cem anos de solidão

O titubear entre o fabular e o político já se percebia no discurso de Gabriel García Márquez ao ganhar o Nobel em 1982. “Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este é o cerne da nossa solidão”, disse na ocasião.

Essa sofisticada estrutura literária, permeada por um projeto político, é uma das características da obra, diz o professor Julio Pimentel. “Em Cem anos certamente predomina a busca da redenção histórica e, em mais de um sentido, uma espécie de exorcismo ou superação do passado, a partir da interpretação da teia de dominações a que a América Latina esteve historicamente submetida”, comenta.

Para Alvez-Bezerra, da UFSCar, a obra se apropria de forma ambígua do olhar do outro: “O livro de García Márquez oferece a imagem de uma América selvagem e exótica, na medida de um imaginário estabelecido há séculos, pelos cronistas dos séculos 15 e 16. A América povoada por culturas excêntricas e natureza exuberante”.

Esta seria, na visão do pesquisador, a dubiedade do livro: “A beleza é apropriar-se ironicamente deste olhar do Outro; a miséria é que, apesar da ironia, seu substrato é o reforço do mesmo estereótipo”. Foram esses seus movimentos narrativos na tentativa de delinear um projeto utópico. Um mundo, como Márquez apontou no Nobel, “onde as raças condenadas a cem anos de solidão terão, finalmente e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra”.

Meio século de solidão centenária

A grandeza narrativa de Cem anos consiste no encantamento e magnificação que a oralidade atinge, diz Alvez-Bezerra. “Um dos grandes achados de García Márquez é lançar mão do contador de histórias na sua literatura”, afirma. Assim, usa mecanismos típicos da oralidade para remexer a realidade latino-americana, seu patriarcalismo, seus ditadores, sua natureza selvagem e suas culturas ancestrais.

É no entrecruzar de uma história comum à realidade latino-americana e das fábulas que lhe eram transmitidas oralmente que surge Cem anos de solidão. “A história da América Latina foi sistematicamente o eixo central de sua narrativa. Uma história que, em vários momentos, cruza com a sua própria história de vida, como as histórias que sua vó e seu pai lhe cantavam na infância”, como analisa a professora Vidal.

Essa minúcia no olhar, a “capacidade amazônica de armazenar informações de um curioso em tempo integral”, é uma das particularidades do colombiano que marcaram Eric Nepomuceno. Ele relembra, por exemplo, como García Márquez conseguiu escrever um artigo cheio de detalhes do enterro de um amigo, sem, no entanto, presenciá-lo, apenas ouvindo e indagando Nepomuceno, que cobrira o enterro como correspondente estrangeiro.

Após 50 anos de sua publicação, Cem anos de solidão continua sendo uma história que encanta os leitores por sua qualidade literária, sofisticação de estrutura, construção refinada dos personagens, diz Alvez-Bezerra. Além dos temas “mais amplos e universais de que o livro trata”, como o peso do passado, o sonho do futuro.

Márquez, que dizia se basear na realidade para compor seus livros, continua vivo “enquanto permanecer nosso lugar subalterno e o interesse no olhar estrangeiro que nos funda”, afirma o professor. Vivo e cíclico como sua história, em que está registrada, linha a linha, “o que ele achava do mundo e seus absurdos”, na opinião de Nepomuceno.

(2) Comentários

  1. Cem anos de solidão , o melhor livro que já li , a melhor sensação que poderia ter como leitor ; é algo fascinante, interação obra-leitor vivíssima , só quem já leu , irá senti-la !

  2. García Marquez é a mior gloria da literatura latino-amaricana em español. Sus ” 100 anos de Solidão” já é ´surpreendente para começar pelo título. Sua leitura é inesgotável, que é a marca de uma obra de gênio.

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