Nossos corpos nos pertencem

Nossos corpos nos pertencem

 

 

No sentido tradicional, “teoria” designa um conjunto de saberes que pretende compreender os acontecimentos, demostrando e definindo como as coisas são. Por ter como objetivo colocar-se fora desse registro tradicional, a Teoria queer apropriou-se de um termo – queer – capaz de singularizá-la. Designação pejorativa para gay, queer poderia ser traduzido por “bicha” ou “viado”, carregados do preconceito e da violência contra homossexuais. É parte de uma estratégia teórica valer-se da significação preconceituosa a fim de criticar teorias que pretenderam dizer como as coisas são, sem perceber que a descrição teórica do mundo não se dá de forma neutra, mas está comprometida com um projeto de poder normativo e regulador.

Este dossiê temático reúne três artigos e duas entrevistas com pensadores identificados com a Teoria queer, a fim de mostrar sua amplitude – o queer atravessa áreas de saberes como a sociologia, a filosofia, a história, a antropologia e a comunicação –, sua relevância política e sua importância contemporânea ao afirmar o corpo como objeto de regulações e campo em disputa. Suas origens estão nos movimentos libertários dos anos 1970, como conta o sociólogo Richard Miskolci em um artigo cujo conteúdo histórico se mistura a uma arguta análise crítica. Entre os aspectos que impulsionam o surgimento da Teoria queer estão autores que passam a pensar o exercício da sexualidade como política e uma produção acadêmica que percebe a necessidade de problematizar a heterossexualidade, ressignificada como heteronormatividade.

Ao mapear escolas e autores, Richard Miskolci aponta para uma pesquisadora brasileira, Guacira Louro Lopes,  pioneira nos estudos queer no país, na tradução de autoras como Judith Butler e Joan Scott, e detentora de uma especificidade que marca a sua entrada nesse campo de estudos: sua articulação com a área da educação. Em entrevista a Carla Rodrigues, ela explica o termo queer como “uma espécie de disposição existencial e política, um conjunto de saberes que se construíram e se constroem fora das sistematizações tradicionais”. Subversivo e provocador,  o queer pretende questionar o que costuma ser inquestionável e levou Guacira a repensar não apenas os currículos, programas e estratégias da educação, mas a educação no seu sentido mais amplo.

Se a emergência dos estudos queer se dá a partir do questionamento de uma ideia de natureza que fundamenta a sexualidade – ideia que emerge da crítica a pares opositivos como natureza/cultura, feminino/masculino, normal/patológico, sexo/gênero –, a socióloga argentina Letícia Sabsay, entrevistada por Andrea Lacombe e Emma Song, desenvolve esse e outros argumentos para discutir um dos aspectos mais radicais da Teoria queer: denunciar a restrição das liberdades em relação ao que fazemos com nossos corpos, como queremos e como podemos usá-los. Lutar contra a normalização torna-se uma pauta para além dos interesses específicos de homossexuais e amplia-se como uma questão política contemporânea.

Em seguida, o artigo de Berenice Bento discute dois pontos essenciais para o dossiê. Primeiro, a dificuldade de tradução do termo queer. Seu uso em inglês apontaria para uma subordinação aos teóricos norte-americanos, o que contradiz a ideia de um pensamento contra-hegemônico. Ainda assim, Berenice tem argumentos interessantes para a manutenção de queer. O segundo ponto notável de seu artigo é o debate sobre pessoas trans, aquelas cujos corpos interrogam a naturalização dos gêneros imposta a partir da existência de uma determinada genitália.

Encerra o dossiê o texto de Karla Bessa, ao recuperar nos estudos fílmicos imagens que interrogaram a sexualidade além dos modelos tradicionais do amor romântico, heterossexual, monogânico e conjugal. Nas telas e nos textos, o espírito transgressor da Teoria queer. Os gêneros, padrões, modelos e normas que atravessam a sexualidade fazem  dela um caminho único de interrogação do capitalismo pela sua face mais perversa, a do controle da singularidade dos corpos.

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