Não saber de si
O ceticismo aplicado ao problema do autoconhecimento
Waldomiro José da Silva Filho
A idéia de autoconhecimento tornou-se muito popular nos nossos dias, principalmente com a emergência de um mercado editorial voltado para a auto-ajuda. Essa idéia de auto-ajuda, apesar de simular um suposto princípio socrático de autoconhecimento, na verdade é um campo difuso que integra infinitas e desiguais referências oriundas das mais das diversas fontes – da psicologia das organizações à religião, da programação neurolingüística à magia e às terapias alternativas. Normalmente esse discurso trata de questões de inserção no mercado de trabalho, competição empresarial e relações amorosas, e sempre oferecem receitas, exercícios, conselhos e vivências para que as pessoas tenham sucesso nos negócios e na vida sexual. Mesmo que muitos autores de best-sellers de auto-ajuda façam menção a filósofos, seus discursos quase nunca têm qualquer relação com o problema filosófico do autoconhecimento. E aqui não estou fazendo qualquer consideração crítica aos livros de auto-ajuda – apenas pontuo uma diferença.
No mais das vezes, quando os filósofos tratam desse assunto, o que está em questão são dois problemas: de um lado, o problema moral da deliberação concernente ao modo como, por meio da reflexão sobre a ação, valores, liberdade e vontade, podemos agir à luz da razão. O “conheça-te a ti mesmo” solicita que nos examinemos e ajamos sobre a influência das “melhores razões”, com autonomia e responsabilidade. Por outro lado, há o problema epistemológico acerca da possibilidade de termos um conhecimento dos nossos próprios estados mentais, como crenças, desejos, intenções: fala-se de “autoconhecimento” no sentido em que se pode dizer que uma pessoa conhece a verdade de um enunciado que ela pronuncia, em referência ao conteúdo dos seus estados mentais.
Há uma diferença crucial que precisa ser feita: frases como “A parede é branca” ou “O futebol brasileiro é o melhor do mundo” dependem, para a sua verdade, que, de fato, a parede de que trato seja branca e não verde (se é verde, é falso que “é branca”), o mesmo se aplicando ao futebol, pois se a Argentina tem um futebol mais bonito e eficiente do que o brasileiro, será falso que “o futebol brasileiro é o melhor do mundo”. Mas existem frases que se referem não a objetos e acontecimentos, mas às nossas próprias crenças, desejos, pensamentos e vontades, como por exemplo: “Eu julgo (ou acredito ou duvido) que existe vida após a morte”, “Eu penso que a água sacia a sede”, “Eu desejo que meu time seja campeão”. Nesses casos, o objeto dessas frases são ‘o pensamento de que…”, “a crença de que…”, “o desejo de que…”. É possível que não exista vida após a morte ou que meu time não seja campeão, mas isso não torna falso “que eu penso que”, “desejo que”, “acredito que”, “duvido que”.
Para uma ampla tradição filosófica, os problemas conceituais ligados à reflexão sobre autoconhecimento guardam uma relevante diferença em relação às outras formas de conhecimento, como o conhecimento do mundo externo e o conhecimento de outras mentes, visto que, por definição, para conhecermos o conteúdo das nossas próprias crenças, desejos e vontades não precisamos recorrer aos sentidos, às provas empíricas e à observação. Para saber algo sobre a cor da parede ou sobre a situação do futebol, faço observações, leio o jornal, consulto a opinião de outras pessoas; mas eu precisaria fazer essas mesmas performances para saber o que desejo ou acredito? Por isso, muitos filósofos dizem que: a) o autoconhecimento é uma cognição especialmente segura, transparente e direta que o sujeito tem dos seus próprios estados mentais; b) o sujeito dispõe de um método privilegiado e infalível, a introspecção, para ter acesso aos conteúdos dos seus estados mentais e; c) os proferimentos que o sujeito faz acerca das próprias crenças, desejo etc. gozam de uma autoridade especial – é claro que alguém pode se enganar em relação à cor de uma parede ou o nome de uma capital do Nordeste, mas não seria razoável que se enganasse acerca do que acredita, deseja, pensa.
Sobre o mundo externo à minha mente posso – e tenho boas razões para – duvidar ou, ao menos, não tenho como distinguir quais das minhas crenças são conhecimento e quais não são, já que a fonte de informações sobre os estados do mundo – os sentidos – é precária.
Entrementes, esse mesmo “perigo” não ocorre quanto aos meus pensamentos em relação aos meus próprios estados mentais: no ato de pronunciar a frase “eu penso”, na primeira pessoa e no presente momento, não posso estar enganado: isso é claro e distinto, numa palavra, é conhecimento. Afinal, nada parece mais certo e transparente. Se me perguntam se gosto de acarajé ou se desejo visitar amigos em Ilhéus, é natural que esperemos que eu saiba se gosto ou não desse quitute baiano ou se desejo ou não reencontrar velhos amigos. A imagem de uma autoconsciência, de um saber sobre si, é uma das mais fortes imagens do pensamento filosófico moderno.
Conseqüências do externalismo
Essa idéia de autoconhecimento, porém, exige uma imagem geral do mundo que deve admitir um dualismo entre, de um lado, a mente (como instância interior, privada, separada das outras coisas e obedecendo a leis diferentes das leis da física, pois não é um objeto físico) e, do outro lado, o mundo (como instância exterior que, na melhor das hipóteses, pode ser representada pela mente).
Nosso problema é que, na sua maioria, os filósofos contemporâneos, numa direção diferente, tendem a compartilhar uma visão naturalista e não-dualista do mundo. Isto significa dizer que os problemas centrais da filosofia, como o conhecimento, a moral, a linguagem, devem ser investigados a partir do modelo conceitual das ciências da natureza. Como afirmou Willard Quine: “… conhecimento, mente e significado são parte do mesmo mundo com o que eles têm a ver e que eles têm de ser estudados com o mesmo espírito empírico que anima a ciência natural.” Nessa perspectiva, as perguntas sobre o que é a mente e qual o lugar que a mente ocupa no mundo, envolvem duas coisas: primeiro, o mundo de que se fala é necessariamente o mundo físico; segundo, ou a mente deve ser entendida no quadro referencial da natureza ou o conceito de mental não passaria de um erro categorial, um mito, uma ilusão ou ainda, simplesmente, um mistério.
Uma das tendências do naturalismo é algo que os filósofos chamam de externalismo ou anti-individualismo. Eles afirmam algo muito simples, mas com conseqüências desastrosas para nossa imagem tradicional de autoconhecimento: o significado das nossas palavras e frases e o conteúdo de nossos estados mentais estão relacionados com o mundo externo. Simples: o que é pensado, o que é objeto da experiência e o que é objeto da fala dependem, ao menos em parte, do mundo exterior à mente do sujeito ou, ainda, são causados pelo mundo exterior. Ou seja, os estados mentais não poderiam existir, tal como o descrevemos comumente, caso o sujeito não exista num mundo exterior; as crenças, intenções, pensamentos, não poderiam ser corretamente caracterizados e individualizados sem os objetos e sem o mundo no qual a pessoa está situada temporal e espacialmente.
Isso não é uma afirmação de que não temos estados subjetivos ou intrínsecos, mas apenas de que os pensamentos e crenças de um sujeito não podem ser individuados no seu conteúdo inteiramente sem o concurso de acontecimentos, objetos e eventos que se dão “fora da mente”, como a composição química dos objetos (água é H2O) e as práticas lingüísticas de uma comunidade (o significado de uma palavra é fixado por práticas sócio-lingüísticas). Por isso, mudanças no mundo externo e diferenças sociais afetam necessariamente o conteúdo dos pensamentos e atitudes do sujeito. O filósofo Tyler Burge diz que “nenhum fenômeno mental intencional do homem é insular. Todo homem é uma parte do continente social.”
Vitangelo e o conhecimento introspectivo
Aqui está nossa grande dificuldade filosófica: se essa idéia está correta, a tese central da filosofia clássica – segundo a qual os conteúdos de um estado mental do indivíduo são inteiramente determinados pelas propriedades do indivíduo considerado isolado do mundo social e físico – deve estar errada. Se para esses filósofos o que um sujeito pensa depende do seu entorno e, em particular, de fatos como o da composição química das substâncias e da prática lingüística de uma comunidade, então isso deve sugerir que essas idéias implicam um resultado contra-intuitivo segundo o qual o sujeito pode conhecer o conteúdo do seu próprio pensamento apenas investigando a composição química das substâncias ou a prática lingüística da comunidade. Também podemos ser induzidos a pensar que aquilo que tradicionalmente é chamado de “conhecimento introspectivo”, a “autoridade da primeira pessoa”, simplesmente não é o caso – ao falarmos de nós mesmos estaríamos aplicando as palavras “saber” e “conhecer” indevidamente.
Imagine o quanto é embaraçosamente engraçada e absurda a situação do personagem Vitangelo Moscarda do romance Um, nenhum e cem mil, de Pirandello: numa certa manhã, sua mulher, Dida, faz um comentário despretensioso sobre seu nariz – que era levemente torto para a direita; Vitangelo, ao constatar que nunca percebera aquele seu singelo defeito facial, se dá conta de que talvez nunca soubera (e ainda não sabe) qualquer coisa sobre si. Ele brada: “Como suportar em mim este estranho? Este estranho que eu mesmo era para mim? Como não ver? Como não o conhecer? Como ficar sempre condenado a levá-lo comigo, em mim, à vista dos outros e no entanto invisível para mim?”
Isso não passaria de um simples jogo cômico numa peça literária fantasiosa caso não existissem esses argumentos filosóficos que se opõem às nossas mais profundas crenças sobre o conhecimento que temos de nós mesmos. Não estou me referindo à situação desconfortável, mas não incomum, de alguém que se encontra num estado psicológico patológico, por exemplo, dominado por forças inconscientes ou sofrendo de uma enfermidade cerebral que o impede de construir certos raciocínios. Tudo isso está muito bem documentado na farta literatura psicanalítica e das neurociências. Estou falando de uma outra situação humana: a filosofia. Uma das grandes tarefas da filosofia é perguntar se podemos ou não ter razões; se podemos ou não justificar racionalmente nossas idéias, crenças; se temos conhecimento. Então: somos capazes de apresentar boas teorias filosóficas que podem justificar, explicar, garantir – sem a bruma do erro e da ignorância – que conhecemos nossas próprias mentes?
É isso o que comumente se chama de “ceticismo acerca da autoconsciência”. Mas é importante uma advertência: num outro texto publicado aqui na CULT (nº-116), salientei que há uma diferença crucial entre o ceticismo moderno e contemporâneo e o ceticismo antigo. A literatura filosófica quase sempre compreende o ceticismo como uma atitude negativa diante das capacidades cognitivas e morais humanas, insistindo que devemos colocar tudo em dúvida. O cético, nesses traços caricatos, diria que ninguém conhece nada sobre coisa alguma.
Investigando a natureza dos problemas filosóficos
Mas no modo como compreendo as coisas – e que está presente nos céticos antigos e, entre nós, na obra do filósofo brasileiro Oswaldo Porchat – o ceticismo é, em primeiro lugar, uma investigação sobre a própria natureza da filosofia e sobre o sentido dos problemas e teorias filosóficas. O traço característico da filosofia praticada pelo cético não é postular um conjunto preciso de teses (sejam positivas ou negativas), mas o cultivo de uma atitude crítica diante da pretensão dogmática de ter descoberto a verdade. Além disso, o cético não pode evitar a estranheza diante da absoluta falta de acordo entre os filósofos, já que os filósofos não se põem de acordo sobre nada, nem mesmo sobre a natureza da filosofia.
De qualquer maneira, parece que o intenso debate filosófico sobre o autoconhecimento está orientado, sobretudo, em torno de um ponto central, a saber, que existem dois domínios bem determinados, o domínio do mental e o domínio do corporal, a partir dos quais devemos nos perguntar que tipo de relação eles mantêm entre si. Essa distinção, porém, é uma invenção estritamente filosófica que apareceu com o próprio nascimento da filosofia moderna e sua metafísica do sujeito que representa o mundo. Mesmo que a filosofia contemporânea tente superar a metafísica do sujeito, permanece inscrita num horizonte de perguntas do tipo: o que são – se é que são alguma coisa – objetos, eventos e estados mentais ou psicológicos? Qual o lugar que objetos, eventos e estados mentais ou psicológicos ocupam num mundo natural? A mente conhece o mundo e outras mentes? Conheço minha própria mente? Pode existir uma ciência de objetos, eventos e estados mentais ou psicológicos?
Outro filósofo brasileiro, Plínio Smith, escreveu que é sempre com referência a essa dicotomia, tal como os filósofos a entendem, que o debate ganha sentido, é sempre em torno da distinção filosófica entre mente e corpo que gira a discussão. O cético, tal como Porchat o compreende, não negará ou afirmará que temos autoconhecimento – ele não dirá se tal ou qual teoria filosófica melhor explica nossa condição humana e se conhecemos ou não a nós mesmos. Talvez não devamos sofisticar ainda esse debate, mas, quem sabe, simplesmente abandonar essas distinções.
É possível estarmos enganados em relação aos nossos pensamentos e crenças? Podemos conceber que este meu pensamento não é meu, que isso que digo não é o que quero dizer, que não sei se acredito nesta minha crença? Sim, é claro. E isso é freqüente – é desagradável, incômodo, perturbador, mas ocorre. Quando isso ocorre, quando o autoconhecimento falha, falha também nossa capacidade de racionalidade, de reflexão, de crítica. Dizemos: isso é irracional. Mas por que o drama? Sim, às vezes somos racionais, às vezes somos irracionais – e não somos menos humanos porque somos tão vulneráveis. É claro que a filosofia não precisa se preocupar com isso, afinal, como Freud dizia no artigo “O ego e o id”: “Para muitas pessoas que foram educadas na filosofia, a idéia de algo psíquico que não seja também consciente é tão inconcebível que lhes parece absurda e refutável simplesmente pela lógica.”
Não saber de si não é um defeito ou uma virtude, não está em jogo aqui um tipo de saber ou de ignorância… Não saber de si é apenas algo que nos ocorre e nos humaniza.
Waldomiro José da Silva Filho
é professor de Filosofia da UFBA
(1) Comentário
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Essa é a abordagem do ponto de vista ocidental. No oriente, mais especificamente na Vedanta, a questão do autoconhecimento é vista de outra maneira.
Em primeiro lugar, é preciso ver claramente a limitação de todo conhecimento. Ou seja, deve-se compreender a natureza, os limites e o alcance do conhecimento. Não há, jamais, conhecimento completo. Toda e qualquer teoria tem de deixar de lado o que, para o propósito daquela teoria, é considerado irrelevante. Posteriormente, uma nova teoria engloba o que para a anterior era assim considerado, e deixa de lado o que é agora, para a nova teoria, considerado irrelevante. Isso se repete ad infinitum.
Uma vez que se compreende isso claramente, dá-se um salto para uma posição corajosa – todo o conhecimento se refere a “aquilo que não é realmente”. As idéias, as teorias, as representações, as construções mentais, os conceitos, não abrangem, jamais, a totalidade do objeto sob estudo. A idéia que faço daquilo a que chamo de “árvore”, por maiores que sejam os meus conhecimentos de biologia, de botânica, de física e de química reunidos, não abrange, e nunca o fará, a totalidade daquele ente.
Quando o objeto de estudo sou eu, o mesmo acontece. O que é, em mim, que percebe as idéias, os sentimentos e o corpo? O intelecto, que é apenas um aspecto de mim, não pode abranger a totalidade do que eu sou. Eu, porém, já sou a totalidade de mim mesmo.
O que propõe a Vedanta? Que, vistas claramente como são, sempre incompletas, as idéias, incapazes de conter a totalidade do que sou, se aquietem como consequência dessa própria compreensão. Isso é o que a Vedanta chama de silêncio. Não estando mais distorcida pelo que não é, pelos conceitos, a verdade do que sou se torna evidente. Toda avaliação é sempre incompleta. Tomar a avaliação pelo que realmente é, é viver na ilusão. A palavra sânscrita “Maya” significa “medir”, “avaliar”. Não sou dois, um que é o sujeito do conhecimento e outro que é o seu objeto, um para conhecer o outro. Ver é Ser, como diz a Vedanta. Ver o que se é verdadeiramente é ser isso. E “isso” está além da conceituação, além da medida. É atemporal e imensurável.
Esse é o repouso, essa e a paz.