Múltiplos modernismos

Múltiplos modernismos
O poeta Manuel Bandeira (Arte: Revista Cult)

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Em Problemas de linguística geral, Emile Benveniste diferencia ritmo (forma) de rythmós (fluido), distinção operativa, em 1977, no primeiro curso de Roland Barthes no Collège de France, Comment vivre ensemble? Sur l’idiorrythmie [Como viver junto? Sobre a idiorritmia]. Nele, Barthes diferencia método de cultura, argumentando que o método é, mesmo etimologicamente, um caminho a seguir, ao passo que a cultura é uma força, aliás, uma contra-força, que tenta domesticar uma força originária, ou seja, uma ideia. Essa força é, a seu ver, um fantasma, um retorno de arcaicos desejos ou imagens primordiais que nos cercam e só muito de vez em quando cristalizam, talvez em uma única palavra, a idiorritmia.

Por outro lado, em um apêndice a O que é a filosofia?, Giorgio Agamben defende a ideia de que a filosofia só pode se dar hoje em dia como reforma da música, da poesia. Se chamamos “música” à experiência da Musa, isto é, da origem e do ter lugar da palavra, a música exprime e comanda a relação que os homens mantêm com o evento da palavra. Esse evento – isto é, o arquievento que constitui o homem como falasser – não pode ser dito no interior da linguagem: pode somente ser evocado e rememorado musaicamente ou musicalmente.

Daí que, para os gregos, o nexo entre música e política fosse tão evidente, a ponto de Platão e Aristóteles tratarem as questões musicais somente em suas obras consagradas à política. Então, se a música está constitutivamente ligada à experiência dos limites da linguagem e se, pelo contrário, a experiência dos limites da linguagem – e, com ela, a política – é musicalmente condicionada, então uma análise da situação da música no nosso tempo deve partir da constatação de que é precisamente essa experiência dos limites musaicos que nela acaba por faltar. Diante desta constatação cheia de angústia, a linguagem contemporânea é uma tagarelice que nunca se choca com o próprio limite e parece ter perdido toda consciência do seu íntimo nexo com o que não se pode dizer, isto é, com o tempo em que o homem ainda não era falante.

A uma linguagem sem margens nem fronteiras, corresponde uma música não mais musaicamente acordada; e a uma música que voltou as costas à própria origem corresponde uma política inconsistente e sem lugar. Onde tudo parece poder ser dito impune, plena e indiferentemente, perde-se o canto e, com ele, as tonalidades emotivas que musaicamente o articulam. Agamben conclui, assim, que a nossa sociedade, perpassada pela música ambiente, já execrada por Adorno, é, na verdade, a primeira comunidade humana não musaicamente (ou amusaicamente) acordada.

Uma das características mais paradoxais das comemorações centenárias do modernismo consiste em ativar, novamente, a disputa regional. Todos reivindicam um modernismo local, mais prematuro, radical ou emergente do que o da Semana. Efeito do desmantelamento do Estado pós-impeachment, resgatam-se as duas grandes questões levantadas em 1922, a identidade e a nação, porém, ainda vistas como entidades sem fissura, uma simples repetição do mesmo, no infinito quantitativo, quando deveríamos, entretanto, ver a nação e a identidade como construtos de todas as partes variadamente estruturadas de um sistema.

Portanto, de nada adianta, a meu ver, reivindicar a precedência ou pungência deste ou daquele escritor, no Rio de Janeiro, em Porto Alegre ou alhures. Cabe mais é pensar a vida (porque é bom não esquecer que o que é moderno não é o artista, mas a vida: o pintor da vida moderna). A pergunta, portanto, seria: que outra sociedade, que outra sociabilidade conseguiu ser pensada e praticada paralelamente ao modernismo da Semana?

Por volta de 1930, Manuel Bandeira funda a República do Curvelo com o auxílio de um escritor boliviano, Gustavo Adolfo Navarro (1898-1979), inicialmente um anarquista à la Tolstói, mais conhecido, a seguir, em sua fase trotsquista, pelo pseudônimo Tristán Maroff. Relembremos que o Partido Comunista Brasileiro também tinha sido criado em 1922, logo colocado na clandestinidade, e recuperado, pela primeira vez em 1927, com o Bloco Operário. No mesmo ano de 1927, Maroff criara, junto com Roberto Hinojosa, quem aliás também passou pelo Brasil, colaborando em órgãos como Folha acadêmica, o primeiro partido socialista boliviano, o Partido Socialista Maximalista, ação que rendeu-lhe prisão e exílio. Refugiou-se a seguir em vários países: Cuba, México, Estados Unidos, Argentina, Uruguai e no Brasil.

No Rio de Janeiro, além de tradutor de literatura comunista para o português, Maroff foi incentivador de uma rede de solidariedade continental radical, a tal República do Curvelo, cujo nome remete à antiga rua do Curvelo, hoje Dias de Barros, em Santa Teresa. Além de Bandeira e Maroff, presidente e vice, dela faziam parte intelectuais, notadamente nordestinos e comunistas, que moravam no Rio de Janeiro, tais como o dirigente comunista alagoano Octávio Brandão e sua esposa, a poeta e militante Laura Brandão; a psiquiatra, também alagoana, Nise da Silveira; o poeta paulista Ribeiro Couto, o gaúcho Raul Bopp e o alagoano Jorge de Lima; a escritora e jornalista Raquel de Queiroz; o escritor argentino Enrique González Tuñón, e sua mulher, a jornalista Maria Luísa Camelli, futura cronista da guerra na Espanha; o médico Adelmo Mendonça; a anarquista e feminista María Lacerda de Moura; o médico Mário Magalhães de Silveira, esposo de Nise; o também médico Francisco Mangabeira e, em suas passagens pelo Rio, o psiquiatra e ativista Osório César, marido de Tarsila do Amaral.

Depois da República do Curvelo, Maroff funda na Bolívia o Partido Obrero Revolucionário, em 1935. Estreito colaborador do teórico peruano José Carlos Mariátegui, sobre o qual escreve na revista portenha Contra, de Raul González Tuñón, Maroff é autor de El ingenuo continente americano (1923), La justicia del Inca (1926), La tragedia del Altiplano (1930), Wall Street y Hambre (1931), México de frente y de perfil (1934), La novela de un hombre (1967) e Radiografía de Bolivia (1971). Seu amigo, o poeta argentino Raúl González Tuñón, deixou-nos um testemunho sobre a República do Curvelo, originalmente publicado em Tren de circunvalación (Madrid, 1933), mas posteriormente expurgado de sua bibliografia por desavenças ideológicas com Maroff. González Tuñón, é bom não esquecer, participou dos congressos republicanos pela cultura, como o de Valência (1937), onde discutiu a articulação entre estética e política com escritores do porte de Bertold Brecht, André Malraux, Tristan Tzara e W. H. Auden.

O poema em questão nos ilumina sobre uma outra construção geminada, El Kremlin, de que alguns dos membros do Curvelo participaram na Argentina. Essa outra República, além de González Tuñón e sua mulher, a escritora e feminista Amparo Mom, acolheu muitos outros poetas e intelectuais, a começar pelo dono de casa, Rodolfo Aráoz Alfaro, um advogado e militante, inicialmente socialista, depois comunista. Suas memórias, El recuerdo y las cárceles (1967), foram prefaciadas por Pablo Neruda. Sua mulher era Maria Carmen Portela, gravurista e escultora argentina, mais tarde residente no Uruguai. Um dos mais ativos convivas era Cayetano Córdova Iturburu, poeta e crítico de arte, apelidado Policho, e sua mulher, Carmen de la Serna, irmã de Celia de la Serna e, portanto, tia do Che Guevara. Policho e Neruda acompanharam Tuñón no congresso sobre a cultura de 1937. Frequentavam ademais a casa de Totoral Deodoro Roca, reitor da Universidade de Córdoba na época da Reforma Universitária (1918), que mudaria, no continente, a estrutura política das universidades; Oliverio de Allende, crítico e ensaísta de arte, em Córdoba, e autor de um livro sobre o pintor Pettoruti; o poeta espanhol Rafael Alberti e sua mulher, a escritora Maria Teresa León, ambos exilados na Argentina, com o apoio, por sinal, de Aráoz Alfaro; o artista plástico belga Víctor Delhez; os dirigentes comunistas Rodolfo Ghioldi (que os memoriosos recordarão como personagem das Memórias do cárcere de Graciliano Ramos), Faustino e Sarita Jorge; o senador socialista Mario Bravo; o artista plástico salvadorenho Toño Sañazar e sua mulher Carmela; o poeta León Felipe; Joan Miró; David Alfaro Siqueiros e last but not least, Pablo Neruda. Aliás, seus poemas “Oda a la mariposa”, “Oda a las tormentas de Córdoba”, “Oda al nacimiento de un ciervo”, “Oda al algarrobo muerto”, “Oda al albañil tranquilo” e “Oda a un cine de pueblo” foram inspirados por suas frequentes e demoradas visitas à casa de Aráoz Alfaro.

Vamos, portanto, deixar falar o poeta, Raul González Tuñón, na versão de Davi Pessoa. O poema está dedicado a Tristán Maroff, o vice-presidente da República do Curvelo. A ele o poeta confessa:

Lembro-me que tu eras magro alto, profundamente bom, uma bondade não inteiramente calma,

Uma bondade com ângulos e arestas, uma bondade, às vezes, terrivelmente áspera, outras, agressiva. E corriam os meses do inverno quente brasileiro na doce província do Morro, lá no Curvelo.

Valente e velho soldado, sem fuzil, sem tambor, sem cantil, sem bigode, eras nosso sargento,

conduzia-nos pela “selva de Silvestre” absorvendo em teu cachimbo marítimo, ou de “velho soldado”, a emanação de uma natureza prodigiosa.

Tu eras nosso sargento; sabias tudo e de tudo, contava-nos sobre as coisas passadas e futuras, via-nos crescer em sua sombra cordial, discutias com nós recrutas da última jornada,

falava-nos de Lenin e Heine, entre “cachaças” com biter e entre vinhos verdes de Portugal.

Tu foste o instrutor da velha guarda que entregamos: Nise, Maria, Rachel, Enrique, Adelmo e eu,

e poetas, e médicos e pintores revolucionários da doce “República”, no Morro. Ó Curvelo!

Velho Soldado, expulso de todos os países, perseguido por todos os climas, sempre sobrevivente,

da pobreza heroica e da incompreensão, da injustiça, da prisão, da fome e da geada,

entre o inferno do mundo volto até ti, chamo-te lá da Espanha, chamo-te de uma montanha de cinzas,

meu jovem coração incorporado sobre milhares de mortos, incorporado sobre o feito favorável de Asturias, entre o inferno do mundo, vai em tua direção, lança até ti uma ponte de versos ardentes e nostalgias,

em direção à tua alma generosa caminha, em teu peito de antigas muralhas bate com tuas mãos de amizade e lembrança;

Entrega-te uma espingarda carregada, um tonel de vinho da terra, um retrato de que Amparo e eu nos lembramos; lembramo-nos de Totoral e das “gazelas”; de Rodolfo e sua casa, de María Carmen e sua imensa beleza, de Policho e sua ânsia argumentativa, de Carmen e suas canções alemãs, dons bons amigos de Córdoba;

Deodoro, Allende, Oliverio, Carloncho, e não importa se nunca mais voltemos a nos ver, mesmo se não pensamos já da mesma forma diante do drama do mundo, não me importa, só me importa lembrar de ti, lembrar de ti no marco de tantas aventuras, de tantas andanças vitais e de tantas refeições cordiais,

e de tanta tristeza e de tanta alegria repentina e de tanto espanto inesperado ao dobrar a esquina e paisagens;

e de teu coração, oh, forte carvalho espesso! em cuja sombra ouvi cantar o melro e uivar o lobo cinzento do Altiplano.

(Trad. Davi Pessoa)

A República do Curvelo (assim como El Kremlin) são entidades musaicas. Contrariamente ao modernismo do ritmo, isto é, da forma e da ordem, a escrita de Tuñón resgata o ritmo dissoluto, o fluido rythmós de uma cultura, uma força, que opera como um fantasma ou espectro, tão arcaico quanto contemporâneo. É a força do moderno. Sirva-nos de exemplo para não cairmos na tagarelice, pouco importa se favorável ou contrária, mais isto do que aquilo, gerada pelo centenário da Semana. Bandeira, Jorge de Lima, Raul Bopp e seus sequazes tentaram apreender o canto e, com ele, as tonalidades emotivas que a ele se articulam. Afinal, a verdade do modernismo é o real político; e a história, aqui entendida como reserva de nomes próprios (Policho, Neruda, Tuñón, Nise da Silveira, Osório César), é um simples lugar simbólico. A operação de pensar uma outra ideia do comum é a projeção imaginária do real político, na ficção simbólica da História, revelando um outro modernismo, realmente existente.

Raúl Antelo foi professor da UFSC. É autor de Maria com Marcel. Duchamp nos trópicos; Archifilologías latinoamericanas; A ruinologia; Visão e potência-do-não; A máquina afilológica; En muerte: miniaturas urbanas; Azulejos. Lo transvisual y la arqueología de lo moderno, entre outros. Editor de Mário de Andrade, Jorge Amado e João do Rio, preparou, em colaboração, Lirismo+Crítica+Arte=Poesia. Um século de Pauliceia Desvairada (no prelo).


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