O CUIDADO DA POESIA: Motor poético em movimento

O CUIDADO DA POESIA: Motor poético em movimento

Começo por dizer que embora escreva poemas desde antes dos 9 anos, e cedo os tenha publicado aqui e ali em revistas e livros, sinto – e é fato –que não me reconhecem como poeta, a não ser em sentido muitíssimo expandido; isso que por vezes me traz certo ligeiro estranhamento, por outras vezes e em grande parte das vezes, dá-me uma liberdade sem tamanho: ser e não ser poeta, para o fora. Disse-me certa vez um amigo que cada recado que eu deixava na secretária eletrônica dele, quando esse aparelho se tornara indispensável, ele copiava um a um e mostrava a pessoas próximas como poemas de um amigo seu; eu ria, gostava da ação: jamais quis ver ou ter os poemas saídos da boca; não, não da boca. Sobre isso duas palavras a dizer: nunca usei a boca quando em trabalho público, nunca a usei como boca, ou seja, como máquina-de-fala; usava-a – antes mais do que agora –, sim, como máquina-de-escrita: e recebia confirmações diretas dos que me ouviam de que textos gráficos foram proferidos. Tenho por tese que há poemas e poetas em que a fala, a oralidade, a boca são utensílios primordiais para seus poemas e que há poemas e poetas em que a boca (oralidade, fala etc.) fica fechada quando da feitura de poemas ou quando da presença ampla em auditórios; encontro-me nesse segundo grupo, penso que estar de boca travada no instante em que o motor poético se põe em movimento significa que algo deve vir a socorro, e que o socorro planta-se na passagem sem quase qualquer filtro entre pensamento (coisa química deslocando-se sem cessar em ordens suas e somente suas) e letra; dando-se tal, escreva-se o que escrever, fazem-se – pelo menos conforme avaliação “pessoal” – poemas.

Alberto Pucheu, no livro precioso Roberto Corrêa dos Santos: o poema enquanto “ensaio-teórico-crítico-experimental”, de 2012, escreveu acerca da contemporaneidade dos processos presentes em meus… poemas em campo ampliado valendo-se da obra total, concentrando-se não apenas naqueles livros cuja obviedade (versos, etc) com que um poema se exibe como poema. Fico a desejar que alguém vá até o conjunto dessa sobra (pois é a parte realmente menor) de feição diretamente poemática e a mim venha a oferecer, com a semelhante intensidade crítico-sábia-amorosa de Pucheu, a possível matéria plástico-mineral que lá, em poemas-com-cara-de-poemas, queria eu que houvesse, que me esforcei para que houvesse; no entanto, além de Pucheu, nada; poucos amigos viram ali coisas reconhecíveis: oh, vai bem: mais felicidade para quê se sou defensor da “difusão secreta” (título de um ensaio meu antigo e publicado em livro coletivo), de uma difusão minúscula e que se constitui de conversas mentais de artista com artistas: apenas conversas com formas – as formas mentais de poetas artistas-que-leem cruzam-se às formas mentais de poetas-artista-que-escrevem; isso a um ponto em que quem escreve nesse ato-de-ler se torna interrogação. Sou, portanto, um poeta não chamado para nada como poeta; chamado para tudo, menos para o que tem por finalidade a poesia. Há, no entanto, uma grande liberdade em tal, repito, por tratar-se daquela amorosa cozinha doméstica: come-se, finda-se, passa-se “ao café antes que esfrie” (título de um filme de Eric Rhomer). Ponho à frente breve “análise” de um só “poema”exposto com as obviedades de poemas; chama-se

Tópica

(não. não necessitará o homem adoecer para acessar tão cruel verdade sobre o homem. não. não necessitará
por não haver
verdade ou homem.
ou)

Nascera esse poema de um estado mental, de uma pergunta mental e de uma sensação corpórea; de início, não reconheci de onde vinha esse indagar; sabia apenas que sua estrutura matara a pergunta, ou melhor, a eclipsara; a pergunta que elíptica fora enunciada, lembrei-me feito o poema, vinha de Freud diante dos casos clínicos e mais fortemente diante da tragédia ática; na pergunta de Freud, uma pressuposta hipótese de que sim: sim, para ele, precisava o homem adoecer; o poema desdiz, por partir de outra possibilidade clínica, Clínica de Artista (aquela a que me dedico, a que pesquisa os motivos do bem-estar, a que lança as fichas todas no somente haver pulsão de vida: o que parece pulsão de morte situa-se como necessidade, necessidade de repouso, exigida pelo mais-vida-mais); acima disso, as reflexões atinentes às ideias de verdade, homem etc. aportam no poema. Indago se essas explicações mínimas demasiadamente mínimas dizem algo significativo quanto ao poema; digo que sim e que não, pois o pensamento, se tornado escrita, deve saber repor na letra, nesse grafismo existencial,  mais do que o pensamento, o tom do pensamento; logo, deve entregar-se à escuta rítmica do pensamento: menos no que lá se diz, e muito muito muito  muito  mais, e especialmente, no tambor que usa; no cérebro, o parêntese sonoro é tantas vezes a regra.

DOIS POEMAS

I

[boa noite ele disse. boa noite. o paraninfo disse boa noite. e repetiu. boa noite. o paraninfo deveria prosseguir. esperavam. o paraninfo suou pelo corpo inteiro. pediu licença em silêncio para retirar o paletó. e disse. disse mais uma vez. boa noite. cumprimento a todos. e para reavivar neste instante nossa por vezes esquecida sobre-humanidade (conseguira dar um passo na voz além dos inícios). do cerne do silêncio ouviram a respiração do paraninfo escapar pelas caixas de som. continuou suando suando suando. tentou pronunciar algo. algo que o fizesse prosseguir apesar de bem diante do microfone cruel. não reconhecia mais suas palavras nem seu timbre. nem o papel no bolso que preferiu manter secreto. repetiu a frase em sussurro: boa noite. boa noite. boa noite repetiu antes de afastar-se heróico]

II

[o cavaleiro em pleno ato do stravinskyoedipusrex reconheceu em si e declarou ao público haver na cena a carne da monstruosa imaterialidade do pensamento puro. e no entanto considerasse a plateia serem o fulgor das frases sem corpo ou história bem como o vestuário e tudo mais que lhes pareceu desmedido. serem simplesmente isso: veemência]


Roberto Corrêa dos Santos
é poeta, semiólogo e professor de Estética e de Teoria da Arte do Instituto de Artes da UERJ. Realiza pesquisas sobre arte e teoria da arte, sobre performance e escrita contemporâneas.  Entre os vários livros publicados, o mais recente chama-se Cérebro-Ocidente / Cérebro-Brasil, de 2015.

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