Molière e o ridículo da virtude
Elenco, diretor e produtora de O Misantropo posando no palco do Teatro Aliança Francesa (Foto: Laércio Luz)
“Em 1923, O misantropo foi dirigido e interpretado por [Jacques] Copeau. Fui seu diretor de cena. Foi encenado à frente de uma tapeçaria, com quatro poltronas e um banquinho no meio do palco. Alguns poucos chapéus, bengalas e espadas: sem adereços adicionais. Duas cartas, eu acho. Quando Copeau, que interpretava Alceste, subia ao palco antes do espetáculo, ele costumava me dizer que as poltronas, dispostas sobre um belo tapete para que eu não pudesse marcar as posições, estavam colocadas de forma incorreta. Mas posso lhes assegurar que sempre estavam exatamente ordenadas. Copeau entrava no estado de espírito de Alceste duas horas antes de subirem as cortinas – tal era a ‘realidade’ necessária para dar vida ao grande estilo da peça”.
Michel Saint-Denis, Teatro: a redescoberta do estilo e outros escritos.
O substantivo “misantropia”, conforme consta no Dicionário erudito da língua francesa, data do século 16 (sua primeira ocorrência no francês foi registrada mais precisamente em 1550, dando origem, dois anos depois, ao adjetivo “misantropo”) e é formado pelo elemento grego mîsos, que significa ódio ou aversão, anteposto ao elemento anthrôpos, também de origem grega, que significa homem. Curioso pensar que a palavra que comunica a noção de aversão aos homens e à sociedade – sinônima de melancolia e hipocondria, antônima à filantropia – tenha sido cunhada no período do humanismo renascentista, já dando passagem à Reforma Católica a bem da verdade, mas ainda plenamente representado pelas obras de Michelangelo, Rabelais e Montaigne, por exemplo. Humanismo este que professava sólida convicção na excelência e nas possibilidades da raça humana e que encontrou sua devida expressão na conversa que Hamlet entabula com Rosencrantz e Guildenstern (na tradução de Bárbara Heliodora): “Que obra de arte é o homem, como é nobre na razão, como é infinito em faculdades e, na forma e no movimento, como é expressivo e admirável, na ação é como um anjo, em inteligência, como um deus: a beleza do mundo, o paradigma dos animais”.
Cerca de pouco mais de um século depois, o classicismo francês, em sua enérgica admiração pela razão como filosofia de vida, fez uso da ideia de misantropia para empreender uma aguda crítica à natureza humana: trata-se de O misantropo, de Molière (1622-1673), peça apresentada pela primeira vez em 1666 no teatro do Palais-Royal, ocasião em que não logrou a mesma popularidade das “comédias humanas” anteriores do autor, cujo objetivo, segundo ele, era “representar em geral todos os defeitos dos homens, e em particular os dos homens de nosso tempo”. O comediógrafo, como lembra John Gassner em Mestres do teatro, “viveu antes do apogeu do movimento filosófico oitocentista que proclamou a doutrina da perfectibilidade do homem e olhava para seu futuro com otimismo” – o que levou Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a afirmar na célebre Carta a D’Alembert que “o verdadeiro misantropo é um monstro. Se ele pudesse existir, não provocaria riso, e sim horror”.
Pois bem, o que uma época como a nossa – anti-humanista, avessa a toda sorte de formas clássicas e pessimista não por atitude e sim pela pura constatação do estado de coisas que a define – pode aprender com a montagem de O misantropo que Marcio Aurélio está dirigindo no Teatro Aliança Francesa em São Paulo? A encenação do texto (inédito nos palcos brasileiros até então) aponta para algumas possibilidades de entendimento desta conversão do também misantrópico Jean-Baptiste Poquelin em nosso contemporâneo.
A primeira qualidade da encenação é a apropriação do texto por parte dos atores, que, sem caírem na armadilha da impostação da voz e da retórica vazia, desincumbem-se muito bem da atilada eloquência, marcada pelo ritmo vivaz, pulsante, presente nos diálogos, tão difícil de ser usufruída nos dias atuais, que pedem à palavra que seja tudo menos inteligente. A propósito do fato de O misantropo ter sido composto em versos alexandrinos, divididos no meio, com rima no final, o diretor e pedagogo francês Michel Saint-Denis (1897-1971) afirma: “Vocês podem imaginar que os atores não encontram facilidade em enfrentar esse estilo, muito embora, ao mesmo tempo, ele tenha flexibilidade. Desnecessário dizer que para descobrir tal flexibilidade e preservar a forma do verso requer-se considerável arte. Da mesma forma, a prosa, a grande prosa de Molière, é igualmente uma prosa calculada, numerada, de forma escrita que tende à prosódia”. Pois bem, a tradução e a adaptação da peça por parte de Washington Luiz Gonzales eliminam o rigor formal do texto original – hoje, muito provavelmente, entendido como enfadonho –, mas investe nesta flexibilidade de que fala Saint-Denis, contrária ao naturalismo e à psicologia subjetiva que lhe dá sustentação, favorável a uma prosódia que delineia uma expressão, aqui, levemente aristocrática.
Outro achado da montagem é o trabalho de discreta, mas elaborada estilização que os intérpretes imprimem a sua expressão corporal, procurando recriar o padrão de civilidade do classicismo francês, no qual o abrandamento das pulsões se dá pela via da racionalização, segundo Norbert Elias demonstra em O processo civilizador. “A reflexão contínua, a capacidade de previsão, o cálculo, o autocontrole, a regulação precisa e organizada das próprias emoções, o conhecimento do terreno, humano e não humano, onde agia o indivíduo, tornaram-se precondições cada vez mais indispensáveis para o sucesso social”, afirma o sociólogo alemão. Os gestos são estudados, distantes, cerebrais e, embora muitas vezes graciosos, denotam controle e autocontrole excessivos, conforme identificou o escritor que em Caractères tão bem radiografou a vida social do século 17 francês, La Bruyère: “O homem que conhece a corte é senhor de seus gestos, de seus olhos e expressão. É um homem profundo, impenetrável. Dissimula as más ações que comete, sorri para os inimigos, reprime o mau-humor, disfarça as paixões, rejeita o que quer o coração, age contra os sentimentos”.
O que chama a atenção no trabalho dos intérpretes é o equilíbrio que cada um deles atinge na oscilação entre a apresentação de um tipo e a encarnação de um personagem, combinando a ludicidade da commedia dell’arte à elaborada polidez da alta comédia. No âmbito dos homens, Washington Luiz Gonzales compõe seu Alceste com uma comicidade soturna, calcada em exaltações emocionais próximas do patético, registro este que no trabalho de composição de Paulo Marcello (Oronte) se converte no mais delicioso ridículo. Ambos são atores de admiráveis recursos técnicos e emocionais, e a primeira cena em que seus personagens se encontram constitui uma verdadeira aula do “espírito cômico” defendido por George Meredith (1828-1909), no qual o humor, gracioso e sorridente, provém antes de tudo do cérebro. Eduardo Reyes e Alexandre Bacci atuam no registro do ostinato, tornando o talento com que se desincumbem, respectivamente, dos coadjuvantes Filinto e Acácio, um discreto, mas visível padrão. Na esfera das mulheres, há um expressivo contraste entre a atuação de Paula Burlamaqui, de um lado, e de Renata Maia e Regina França, de outro. A Celimene da primeira é uma personagem autônoma, rica de matizes psicológicos, a quem a atriz empresta uma leveza cômica notável. Já a Eliane de Renata e a Aricene de Regina estão mais próximas do tipo caricatural, que ambas exploram, entretanto, pelo veio da inteligência – o que aproxima o efeito cômico perseguido não somente por ambas, mas também pelos demais intérpretes do famoso epigrama de Horace Walpole: “A vida é uma comédia para o homem que pensa e uma tragédia para o homem que sente”.
A economia de recursos da encenação visa a um propósito verdadeiramente formador nos dias espetaculosos que correm. Os poucos elementos reunidos em cena (o cenário, a iluminação e a sonoplastia são assinados pelo próprio diretor, que em parceria com André Liber Mundi concebeu também os figurinos) estão a serviço das ideias a serem debatidas. Marcio Aurelio, dada a envergadura intelectual de sua atuação como diretor e pedagogo, não está interessado em recuperar uma arqueologia da comédia clássica francesa, dado que, já no século 18, como afirma Ana Portich em A arte do ator entre os séculos 16 e 18: da commedia dell’arte ao Paradoxo sobre o comediante, “a comédia de Molière havia perdido seu público porque não chocava mais, uma vez que a hipocrisia do Tartufo estava disseminada pela sociedade francesa; nela, todo sábio se tornara um Misantropo, denuncia Diderot. Porque o elemento burlesco característico da comédia de caracteres veio a tornar-se uma banalidade, fazendo com que o público perdesse o interesse, ocorreu essa inversão de valores”. Antes, o que move o diretor à frente desta iniciativa parece ser o diálogo entre tempos tão díspares que concebem, como é natural, modos muito distintos de compreender o comportamento misantrópico.
Enquanto Rousseau se pergunta quem é o Alceste de Molière, respondendo que se trata de “um homem de bem que detesta os costumes de seu século e a maldade dos contemporâneos; que, justamente porque ama seus semelhantes, odeia neles os males que se fazem uns aos outros e os vícios de que esses males são fruto”, Marcio Aurelio parece nos indagar a respeito de quem são os misantropos de hoje em dia. Seriam eles os brasileiros médios, embalados publicamente pela alegria do samba e das marchinhas de carnaval que fazem parte da trilha sonora do espetáculo, mas motivados, no âmbito da privatização das consciências, por toda sorte de ódio, rancor e cinismo?
Esta pioneira encenação de O misantropo corresponde à tradução da mais fria e olímpica comédia de Molière em uma linguagem muito próxima da desfaçatez que rege a vida social contemporânea, cujo ódio normalizado (normatizado?) transformou a aversão moral à humanidade em um espetáculo irrisório. Bom mesmo é gargalhar diante de cada arena romana erguida dia após dia para nosso deleite e fruição.
O misantropo – Direção Marcio Aurélio
Onde: Teatro Aliança Francesa – Rua General Jardim, 182 – República
Quando: até 18 de dezembro – quinta à sábado, às 20h30; domingo, às 19h
Info: (11) 4003-1212