As minorias precisam ser representadas nos espaços de poder. Pergunte-me como

As minorias precisam ser representadas nos espaços de poder. Pergunte-me como

 

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Os progressistas estão convencidos de que a justiça não será implantada se as minorias não forem representadas. Corrijo-me: se não forem autorrepresentadas, posto que só quem faz parte de um conjunto é que deve ser o seu representante. Explicam-me que uma criança negra precisa ser representada por uma presidente negra ou por uma juíza negra na Suprema Corte, que é importante para a sua autoestima e é decisivo para o incremento da estima social de que goza o seu grupo. Reforço positivo de imagem e autoestima, além de justiça restaurativa.

Entendo tudo isso, mas há problemas com esse argumento se ele pretende fundamentar uma regra social de base moral.

Problema 1. O princípio vale para todos ou só para minorias e identidades progressistas?

Se o argumento tem valor universal, por que as pessoas se escandalizaram tanto com a mesma ideia veiculada por Bolsonaro de que havia chegado a hora de termos um juiz do STF terrivelmente evangélico? As meninas evangélicas não terão um adicional importante de autoestima e a comunidade evangélica não terá um reforço no apreço social se pessoas abertamente evangélicas assumirem importantes cargos de liderança política? Por que a autoestima de umas merece um reforço enquanto a autovalorização social de outras não deve ser considerada?

A resposta padrão dirá que meninas negras receberam historicamente tão pouco e a sociedade deve começar a pagar-lhes a dívida social contraída no passado. Mas como dizer isso honestamente quando se considera do outro lada as típicas meninas evangélicas, pobres, da periferia e igualmente negras e mestiças? Ou os progressistas não têm mais dado uma volta nas periferias e cidades pobres do país para notar que mesmo onde falta absolutamente tudo, inclusive o Estado, não faltam igrejas evangélicas?

Problema 2. E se a correlação entre credores e devedores tornar impossível que as dívidas de representação sejam pagas?

Nos últimos tempos, à lista dos que se chamavam de minorias políticas se acrescentou o rol das identidades sociais historicamente marginalizadas, com um elenco aberto sem fim. Sociedades são desiguais e injustas, no passado ainda mais do que agora, de modo que alegações de injustiça e as reivindicações de indenizações sociais, todas muito coerentes, continuam a se acumular. O problema é que as contas não param de chegar, mas os que teriam que honrar esses compromissos, os do passado e os do presente, são em número cada vez menor. Haverá um momento em que a conta não vai fechar.

Veja-se o caso do “branco”, sabidamente o devedor universal. Metade dos brancos, as mulheres, passaram para o lado credor. Sobram 50%, mas, descontados os brancos que fazem parte de minorias políticas e identidades oprimidas, sobram apenas os brancos homens, cis e ricos para honrar os compromissos contraídos com o que, literalmente, é agora a maioria numérica da população. Inclusive as obrigações contraídas por outras gerações. Como todos os oprimidos merecem, moralmente, ser autorrepresentados nos espaços de poder, como acomodar tanta reivindicação, todas provavelmente legítimas, se os recursos para tanto são finitos e em algum momento se esgotarão? Assim como, provavelmente, a paciência política dos que agora são cobrados e culpados.

Problema 3. Como alguém se torna um representante?

No modelo clássico da democracia representativa, o método para se selecionar o representante é o voto direto dos que se sentem representados por uma pauta sustentada por quem está pleiteando a função. O representante se compromete eleitoralmente com uma agenda e uma perspectiva políticas e os que se sentem por elas representados os escolhe.

A esquerda surgiu para representar as classes mais baixas, os trabalhadores, os despossuídos, a direita para representar os produtores de riqueza – e por anos ambos alimentaram esse sonho. Nesse caso, não havia dívidas a serem pagas, mas grupos disputando democraticamente o controle do Estado para implementar suas agendas por meio de políticas públicas.

Mas no mundo identitário, de credores e devedores, as contas não fecham quando há cada vez mais gente do lado da demanda e menos no lado do atendimento. Sobretudo quando todos são vorazes e a política é vista como uma guerra de todos contra todos.

Acontece que a representação produzida por afinidade ideológica e por deputação não entrega um colegiado de representantes que reflita necessariamente cada traço do universo dos representados e em uma proporção geométrica adequada. Na clivagem ideológica, mulheres não necessariamente votam em mulheres, nem negros em candidatos negros e quem bate cartão pode votar em patrão.

Na clivagem identitária, isso é claramente uma usurpação. De forma que como as urnas teimam em não entregar a representação que desejamos, espelhando proporcionalmente o universo das identidades e minorias, é preciso corrigir isso de um modo ou de outro. Urnas, mais uma vez, são consideradas muito legais, mas só quando entregam o que a gente quer.

Não havendo uma delegação da função com base em sufrágio, há dois modos de se determinar quem representa: ou alguém reivindica livremente a representação ou é indicado para essa função por um ato de autoridade.

No primeiro caso, um sujeito que se sente pertencendo a uma minoria, como parte de um conjunto, reivindica falar em nome do todo. A totalidade que ele alega representar, contudo, em momento algum será consultada a respeito de tal pretensão. O pleiteante simplesmente declara que, como pertence a um coletivo, pode falar com autoridade em nome da sua totalidade – não importa se estamos falando de grandezas como “todas as mulheres”, “todos os negros” ou “todas as pessoas trans” – e ocupar todos os postos e funções destinadas aos seus representados.

Entendam, a dívida é devida à totalidade (mulheres, negros, pessoas com deficiência, homossexuais), mas quem passa para resgatá-la é fulano, singularmente, seu autoproclamado representante. Lembra-me da teologia da Igreja Universal, quando eu fazia pesquisa de campo por lá: o fiel contrai a dívida com Deus, mas quem aparece para a cobrança e o usufruto do devido é o pastor. Um bom negócio para o representante, não para o representado que, a rigor, não desfruta nada, apenas do gozo simbólico de ver lá em cima um igual a ele – se acreditarmos na ideologia por trás do processo.

No segundo caso, cabe à autoridade decidir, segundo o próprio arbítrio, quem representará a totalidade dos representados. É o paradoxo (ou contradição) de uma autorrepresentação outorgada, decorrente de uma investidura de fora para dentro: eu, que não sou negro nem evangélico, decreto que doravante você fará a representação dos negros ou evangélicos, que os negros evangélicos se sentirão autorrepresentados por você. Naturalmente, a autoridade pode ouvir grupos de negros ou evangélicos, mas sempre uma infinitésima parte do todo, em geral composto por representantes que se constituíram por autoproclamação. De modo que a menina negra ou a menina evangélica têm que se sentir representadas, no final das contas, por quem Lula ou Bolsonaro e os seus conselheiros quiserem. Ou não. É esquisito, mas só sei que é assim.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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