O ministro da Economia, a liquidação do Brasil e o deus do dinheiro

O ministro da Economia, a liquidação do Brasil e o deus do dinheiro
(Arte Revista CULT)

 

Há dias, o ministro da Economia fez em Dallas, Estados Unidos, um anúncio que causou espanto. Amparando-se na suposta vontade de um empresário que ele chamou de seu “amigo bilionário”, ele falava entre o bom-humor e a jocosidade, que o amigo tudo queria vender, e que ele, o ministro, também venderia tudo. No caso, o objeto da venda anunciada, as mercadorias, seriam as estatais brasileiras, inclusive o Banco do Brasil e a Petrobrás. O amigo bilionário servia, no jogo retórico apresentado no discurso, para uma comparação: o empresário que tudo vende é análogo ao ministro. Ali, ele surge apenas um amigo que inspira uma atitude e um projeto. Mas se o empresário é um vendedor e, sendo dono de seus bens quer vendê-los, o ministro não é dono dos bens que pertencem à nação – e mesmo que seja um vendedor, agora deveria ser um ministro.

No discurso em questão, em inglês, para os donos do capital mundial entenderem, o ministro se expressa com um tom que merece análise. Esse tom é o tom da ideologia. Como se a coisa pública lhe pertencesse ou pertencesse ao governo que ele representa, ele anuncia a venda das empresas brasileiras com um sorriso. Como um vendedor que quisesse vender a mãe, ele zoa. Brinca dizendo que vai expulsar Bolsonaro do palácio para vender o palácio… Não há povo, não há direitos, não há sociedade, não há emprego e renda para a população no seu discurso de “economista”. Assuntos sérios não entram na performance diante dos capitalistas que se riem.

Há o anúncio da venda nacional e o riso sobre essa possibilidade. A alternativa, fundir os bancos, as empresas brasileiras às americanas, uma espécie de sonho pelo que podemos perceber na expressão facial semi-irônica. O esforço do discurso parece ser o do vendedor que tenta convencer um cliente com um agrado enquanto lhe engana sobre um produto. Ao mesmo tempo, o produto é bom demais e o vendedor, escondendo seu desespero, fala; antes que a sua chance de falar com o cliente acabe, porque clientes gostam de ser mimados senão vão logo embora.

A tática da brincadeira faz parte do populismo bolsonarista. Esconde-se um assunto sério, sejam preconceitos, sejam as graves questões econômicas, atrás de um sorrisinho pseudo-simpático para enganar trouxas. Por trás do sorriso enganador, esconde-se um projeto econômico que não inclui o povo, o progresso econômico e social do país, mas deixa evidente para quem quiser ver que, nesse projeto econômico à qual a política deve se submeter, políticos funcionarão como empresários, submissos ao mercado internacional, comprometidos apenas com as causas próprias a seus grupos econômicos. Mais uma vez os fins privados justificam os meios abjetos.

Um fato a ser notado é que esse ministro não chama tanto a atenção quando comparado a seus colegas. Em geral, os ministros do governo são protagonistas de piadas dos mais diversos tipos. Acompanham o presidente em seus estilo porque revelam suas facetas mais histriônicas. Erros, excessos e contradições fazem com que virem piada rápida. Moro, que fala errado, que fala sem consistência, que se contradiz, já deixou claro quem ele é e do que é capaz para aqueles que nunca tinham ouvido ele se expressar com mais tempo. O ministro da Educação, famoso por trocar Kafka por Kafta, não precisa de mais explicações. A ministra Damares se tornou a rainha da piada pronta, o que fica claro quando ela, por exemplo, projeta publicamente possíveis problemas pessoais em personagens da Disney. É verdade que há outros, mas esses exemplos são os mais evidentes da função “cortina de fumaça” dos personagens e suas falas. Todos esses ministros ajudam a construir a cena a que chamamos de ideologia. Ideologia significa justamente cortina de fumaça, contexto de cegueira, obnubilação, falsa consciência. Ideologia é aquilo que nos engana, que se toma por verdadeiro quando não é. Fake news e pós-verdade valem em tempos ultra ideológicos. O ministro da Economia é responsável por implantar a ideologia do neoliberalismo com seu sorrisinho (talvez alguns chamassem a essa característica de jeito “tchuchuca” de ser, seu apelido popular).

Comparado ao histrionismo dos personagens, usado como método publicitário desse governo, o ministro da Economia é uma figura desempolgante, sem muita expressão. Mas o que ele fala é tão ou até mais grave do que os outros falam, embora ele não apareça tanto.

Brazil Delivery, Sale Brazil. Assistimos boquiabertos a economia ser sequestrada. Como se fosse um saber da ordem de um fundamentalismo religioso e não uma área humana que precisa ser abordada de modo interdisciplinar e que, inclusive, precisa ser vista como parte do todo da vida, a economia é afastada do povo tratada como massa ignara. O povo sofrerá os efeitos das catástrofes, mas manobrado como massa, continuará apostando na imbecilidade como salvação messiânica.

Uma pergunta relacionada a essa questão talvez possa nos ajudar a pensar no que está em cena: serão os economistas do neoliberalismo provenientes da escola de Chicago – os neo Chicago Boys – apenas vendedores oportunistas? Talvez essa expressão soe forte demais para quem defende o neoliberalismo, mas ela faz sentido se pensarmos no capitalismo como um processo de apropriação indébita – um grande assalto às nações e aos povos – sobre o qual falaremos em um próximo artigo.

Salvo engano, a expressão do ministro nos leva a perguntar se ele se diverte “liquidando” o patrimônio nacional. Em seu discurso parece que não haverá mais Brasil. Mas o que significa esse caráter de liquidação? Líquido é um termo de amplo alcance. Liquidação significa acabar. É um termo ligado a outro muito importante no economês: a liquidez. A liquidação de uma loja serve para acabar com as mercadorias para que entrem outras em seu lugar ou para que o negócio feche, não importa. O que importa é que a mercadoria, o “ativo” (bens, ou investimentos) se torne dinheiro rapidamente. A liquidação produz a liquidez.

A liquidação anuncia o fim de alguma coisa que se transforma no que, para muitos, tem um fim em si, o dinheiro. O dinheiro que deveria ser apenas um meio de comunicação e de troca, é parte fundamental de uma lógica, a do capital, que passa pelo fetiche da liquidez. Por que falar em fetiche aqui? Porque o dinheiro também é um fetiche, algo que encanta de maneira apaixonada. Há, no mundo todo e ao longo da história, pessoas que amam o dinheiro acima de tudo, como amam um objeto substitutivo infantil (a chupeta de Winnicott). Em termos de teologia, para quem quiser pesquisar mais sobre o tema, é preciso voltar a falar de Mamon, o deus do dinheiro totalmente anticristão.

Dinheiro, por sua vez, é também um elemento que está ligado às substâncias inferiores do corpo nas mais diversas simbologias. A bolsa dos avarentos na história da iconologia é análoga às fezes que não podem ser abandonadas. O ouro representa as fezes do inferno em certas narrativas antigas. A fase anal de que falou Freud – e que analisa esses simbolismos exemplarmente – poderia também ser lida em termos de “filogenênse”, e não apenas de ontogênese, ou seja, do que acontece com povos e populações e não apenas do que se passa com os indivíduos. Na história das escatologias, o caráter avarento é o do sujeito que tem as fezes aprisionadas em seu intestino disfuncional. Freud sabia que certas neuroses eram financeiras e assim deveriam ser tratadas.

A coisa liquefeita, por sua vez, é evidentemente a coisa deteriorada, que escoa e desaparece. Se antigamente pensava-se que tudo “o que é sólido desmancha no ar”, hoje, tudo o que é sólido escorre pelas frestas. O esforço de reter não salvará ninguém. Se a escolha for entre o dinheiro ou a merda, o destino será o mesmo.

Termos tais como liquidação, liquidez, líquido nos fazem, portanto, pensar no princípio de morte do qual falou Freud por oposição ao princípio de Eros, o princípio da criação da vida. Depois da liquidação, ela mesma uma destruição, vem o gozo com a liquidez, o dinheiro tomado como um fim, idêntico às fezes que não servem para nada. A liquidez de fato tem algo de morte. E, como sabia Freud, se trata, no caso do instinto de morte, de destruir, para depois destruir a si mesmo. Ou seja, se trata de poder liquidar, de matar mesmo, mas de matar para também morrer. Os seres humanos construíram a cultura simbolizando desejos, anseios ou vontades que remetem à morte. E, infelizmente, quando não podem simbolizar, praticam atos que sempre parecem muito próximos da loucura, por abandonarem o simbólico e se tornarem literais.

Infelizmente, a perversão se tornou um caráter de nossa época. Ela implica justamente gozar, realizar-se na destruição, na loucura. No caso, querer vender “tudo” e falar disso sem preocupação, rindo, soaria, em português coloquial, como dizer que se está, de fato, nesse projeto de liquidação, de fazer uma “grande merda” com a nação. É o projeto de destruição do país em franco desenvolvimento.

Só posso dizer que é uma pena – ou será um crime? – o gozo e o esgar de riso com a liquidação de uma país inteiro que, aliás, pertence ao povo. Mas e o povo, será capaz de enfrentar esse tipo de Mamon ocupando um cargo tão importante?

Leia a coluna de Marcia Tiburi quinzenalmente, às quartas, no site da CULT

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