Meu nome é Gal
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Uma das vozes mais brilhantes que o Brasil já teve, que infelizmente nos deixou, Gal nos surpreendia, entre outras tantas qualidades como artista, por sua espantosa presença no palco, no corpo e na voz. Aproveito esta coluna winnicottiana para falar, em sua homenagem, de presença, de corpo, de voz e outros temas atuais.
Junto a artistas e filósofos de seu tempo, Winnicott se dedicou ao tema da encarnação e teve como objeto de estudo o indivíduo de carne e osso – e não um sujeito incorpóreo visto como uma entidade abstrata, um aparelho mental e seus mecanismos.
As ideias de criar um corpo pessoal, uma psique a partir das experiências corpóreas e uma parceria entre o corpo e a personalidade, centrais na obra de Winnicott, são inéditas em psicanálise. Até então, tratava-se a morada no corpo como óbvia e o ego corporal um ponto de partida e não uma conquista que pode ou não ser alcançada, e ao mesmo tempo condição sine qua non para outras aquisições, como a capacidade para amar e sonhar.
Para Winnicott, a existência é psicossomática, e esse novo horizonte nos permite olhar com frescor fatos da vida cotidiana como gestos, cansaço, excitações, impulsos, a pele como borda, o ar que entra e que sai, o grito, o cantar – esse, aliás, também o nome de um lindo álbum de Gal. Permite entender melhor as angústias atuais, não as relacionadas à castração, à perda de partes excitáveis de um corpo já constituído, mas as mais primitivas, relativas ao enfraquecimento da morada no corpo e à aniquilação de si mesmo, bem traduzidas nas telas do artista plástico inglês Francis Bacon, em que rostos e corpos se desfiguram, escorrem, esvaem-se.
Permite entender os estados despersonalizados que estão na base da vida só mental, só virtual, ou mesmo só corpórea e de sentimentos, como os de irrealidade, de futilidade, de ser um zumbi, um fantasma. E compreender boa parte das patologias ditas contemporâneas, defesas contra as impensáveis agonias frente a ameaças de ruptura entre a personalidade e o corpo, que levam a sintomas recorrentes no cenário atual, como as compulsões, a necessidade de se cortar, de infligir dor a si mesmo, a prática de atos violentos para se sentir real etc. Organizações patológicas que afinal sempre estiveram aí, já que se relacionam aos riscos inerentes à necessidade de amadurecer, às interrupções – por falhas ambientais – no percurso demasiadamente humano pelo qual todos passam, mas cujo aumento de incidência evidentemente denuncia a precariedade dos ambientes contemporâneos no papel de facilitar as aquisições necessárias para que o amadurecimento de fato aconteça.
Volto à Gal, mais especificamente à cena memorável do show de 1981, em que ela desafia a guitarra de Victor Biglione e canta, grita, rasga: “Meu nome é Gal”… “e desejo me corresponder com um rapaz que seja o tal”, ostentando na carne e na voz quem é, a que veio. Gal exibe, ritualiza, brinca, ostenta ludicamente o fato de ser, de ser uma pessoa e corpo, corpo e voz, pessoa que canta, de nome Gal. Desejar se corresponder com um rapaz que seja o tal vem depois, nos versos.
Winnicott discorre em vários momentos de sua obra sobre a tarefa de reunir pessoa e corpo numa identidade psicossomática e pessoal, que se inicia no nascimento e completa uma etapa importante na posição Eu sou – quando a conexão filológica entre as palavra alma e respiração ganha sentido. O alcance do eu destacado do outro, em condições ambientais favoráveis, tende a ocorrer em torno de um ano e a posição é revisitada cada vez que a criança ou adolescente reiteram a dor e a delícia de serem quem são, enfrentando situações quaisquer na vida familiar ou social, ou a cada vez que o adulto se posiciona frente ao outro no mundo, numa apresentação artística como Gal, numa reunião de negócios, num debate político.
Quando instaurada pela primeira vez, a criança celebra ser ela mesma e reivindica seu lugar em nome próprio. Quando o ambiente familiar é suficientemente bom, recebe com alegria a espontaneidade e agressividade das manifestações excitadas do bebê que se intensificam e o brincar excitado passa a fortalecer o ego corporal conquistado e vice-versa. Mas, de início, o gesto espacial e temporalmente demarcatório do lugar para ser, potencialmente prazeroso, é também o mais agressivo que um indivíduo pode fazer, segundo Winnicott. A criança expulsa e destrói tudo o que não é eu do mundo subjetivo, cria o não-eu e, em seguida, o outro.
Como metáfora dessa posição, Winnicott toma emprestada a brincadeira comum entre as crianças inglesas: “Eu sou o rei do castelo, você é o patife sujo”. A situação é paranoide, já que o não-eu, e depois o outro, se tornam inimigos potenciais e a criança precisa se defender, pois imagina, e teme, que possa receber de volta a agressividade empregada no gesto destrutivo.
Sim, a afirmação da identidade pessoal é de início paranoide, não há como escapar disso, mas, na saúde, a continuidade do ambiente confiável, que não sucumbe nem retalia, permite que os fatos se distingam da fantasia e a expectativa de perseguição se aplaca, a criança se alivia, tornando-se mais e mais capaz de ter experiências sendo ela mesma e de prosseguir brincando, fortalecendo-se para enfrentar o mundo e lidar com o outro, seja para rivalizar, cooperar, colocar-se no lugar dele etc.
Neste marco fundante da psicologia individual, consolida-se não só uma psique pessoal, mas uma parceria entre a psique e o soma. O bebê, antes fragmentado, em fusão com a mãe, se reúne e reconhece o esquema corporal recém-integrado como ele mesmo. Experimenta se equilibrar nas próprias pernas, ousa dar os primeiros passos, mas ainda em situação de extrema dependência e com os contornos identitários ainda muito frágeis. A imagem que Winnicott traz dessa perigosa travessia é a do Humpty-Dumpty, outra figura do imaginário das crianças inglesas, cantada em verso e prosa por Lewis Caroll em seu Alice através do espelho: o menino-ovo acocorado sobre o muro, altivo, corajoso, feliz, mas em situação de grande risco de queda.
A precariedade dos contornos psíquicos e somáticos recém-construídos está claramente simbolizada pela fina casca do ovo, a qual, na desventura da queda, quebra-se em inúmeros pedaços e falha em prevenir que as partes moles escorram à maneira das figuras de Bacon, incontinentes, flácidas, esvaindo-se das bordas de si – como o ar, o grito, o canto. Nessa unidade psicossomática recém-constituída, o simples ir e vir da respiração pode tornar-se intolerável quando estão presentes ansiedades relacionadas ao escape do verdadeiro si-mesmo. Nesse caso, instaura-se um conflito entre a liberdade do entra e sai do ar e a necessidade de controle, que pode relacionar-se ao grito ou à asma, por exemplo.
Um dos mais belos fragmentos clínicos de Winnicott a respeito do verdadeiro distúrbio psicossomático (o qual o psicanalista distingue das alterações fisiológicas comuns da vida que, salvo quando estritamente tediosa, inevitavelmente envolve intensidades eróticas, agressivas etc.) é o da “mulher que não conseguia gritar”. Essa paciente sofria do terror de perder a si mesma caso se permitisse expelir espontaneamente o ar num grito significativo. A mulher apresentava eczemas de pele, asma, fumava compulsivamente e não podia relaxar, deixar escapar qualquer faísca de espontaneidade. Coçando-se, feria ainda mais a pele já escoriada e tensionava-se mesmo dormindo, pois inconscientemente escolhia posições esdrúxulas, forçando a presença das bordas; recorria enfim a variados modos de adensar a pele, a fim de trazer um sentimento mínimo de contenção, defendendo-se da agonia impensável de perder a morada no corpo e a si mesma.
A melhora dessa paciente foi indicada, segundo Winnicott, por meio de um tímido gesto de protesto na relação transferencial, em vista de um pequeno atraso do analista, e de um sonho em que ela era capaz de cantar em público. Poderíamos chamar essa paciente de o reverso de Gal – ou da metáfora que fiz de Gal na cena em que ela ganha palco, corpo, voz e grita sendo Gal, desafiando excitada e alegremente a guitarra eletrizante.
Claro que ser um, ser eu, no sentido que Winnicott dá ao termo, não é um fim em si mesmo, pois o amadurecimento prossegue e, conforme o indivíduo consolida os contornos pessoais, também alarga a possibilidade de dissolvê-los, de usar relacionamentos nos quais há confiança máxima para desintegrar-se, despersonalizar-se e, até mesmo, abandonar a premência fundamental de sentir-se existente.
Não se trata aqui, portanto, de se fazer um elogio à identidade vista como clausura, posição meramente individualista e paranoide, mas de notar que, em Winnicott, para perder-se de si, afrouxar as bordas e mergulhar no encontro com o outro, na vida coletiva e cultural, é preciso antes criar um corpo pessoal em parceria com a psique, uma morada, de onde sentir, olhar, brincar, espernear, falar, gritar – e quem sabe cantar – em nome próprio, e desejar se corresponder com um rapaz… que seja o tal!
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Vera Regina Ferraz de Laurentiis é psicóloga, mestre em psicologia clínica pela PUC-SP, psicanalista pela SBPW, professora, supervisora, orientadora e editora científica na Escola Winnicottiana de Psicanálise e no Sino-Brazilian International Training Programe em Beijing pela IWA (International Winnicott Association). Escreveu o livro Corpo e Psicossomática em Winnicott e artigos.