Marighella, notícias de um filme no exílio

Marighella, notícias de um filme no exílio
Seu Jorge em cena de 'Marighella', filme de Wagner Moura (Foto: Divulgação)

 

Um comunista atrevido que resistiu à prisão
E mesmo a bala ferido
Se defendeu sem ter medo
Brigando como um leão
Cordel espalhado após prisão de Marighella em 1964

 

Marighella é um filme exilado. O primeiro longa-metragem dirigido por Wagner Moura –  com roteiro dele e de Felipe Braga, baseado na biografia escrita por Mário Magalhães – já rodou festivais pelo mundo: estreou em Berlim em fevereiro, passou por cidades como Hong Kong, Lisboa, Paris e chegou a Nova York no começo de dezembro, antes de seguir para Havana. Mas na terra de Carlos Marighella a película não tem data para sair.

“O filme está censurado no Brasil”, afirmou Wagner Moura em debate após sessão em Nova York, durante o Festival Internacional da Diáspora Africana, no dia 7 de dezembro. Produzido pela O2 Filmes, a cinebiografia do guerrilheiro baiano morto pela ditadura militar seria lançada em 20 de novembro, dia da Consciência Negra. Em setembro, os produtores anunciaram que a exibição estava suspensa por não ser possível cumprir todos os trâmites exigidos pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), principal agência de fomento ao audiovisual no país e alvo constante do governo de Jair Bolsonaro, que já defendeu filtro ideológico e mesmo a extinção do órgão.

“O modo como fazem censura agora é diferente. Eles infiltram os seus fanáticos nas instituições de cultura e burocraticamente tornam nossa vida impossível”, diz Moura. Em agosto, a diretoria da Ancine negou dois recursos da produtora relativos ao ressarcimento de despesas por meio do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e ao adiantamento de verba para a comercialização do filme.

Declarado inimigo número 1 do regime militar (1964-1985), Marighella ainda soa barulhento 50 anos depois de sua morte. Mas quem é o homem que sai da película de Wagner Moura? Líder da Ação Libertadora Nacional (ALN), o baiano torcedor do Vitória, poeta e professor trazia em si antíteses que o faziam, afinal, humano: o guerrilheiro feroz, indócil à rendição, era também frágil e chorava feito criança. Homenzarrão imponente, com voz de comando, Marighella fazia o tipo gaiato, sarcástico, dado a pregar peças nos companheiros. Ele lembra o poeta satírico que, nos bancos da faculdade de engenharia, fazia troça com seus desafetos políticos. A raiva incontida contra a ditadura – na interpretação pujante de Seu Jorge, vencedor do prêmio de melhor ator em festivais na Itália e na Índia – se amansa no trato com os seus. A mulher, Clara, interpretada por Adriana Esteves, e o filho Carlinhos são seus refúgios de carinho, por breves que sejam. É quando Marighella é mais poeta que guerrilheiro, mais doce que marcial.

Em torno do líder, gravitavam jovens mal saídos do secundário e outros velhos companheiros de armas, remanescentes do Partido Comunista, pelo qual Marighella fora eleito deputado federal em 1945, no breve período de legalidade do partido. Como um thriller, o longa de mais de duas horas e meia é rodado quase sempre com a câmera na mão, trêmula e testemunha de reuniões clandestinas, perseguições, tiroteios, torturas e perdas. O arco da história acompanha os últimos cinco anos da vida do guerrilheiro, do imediato pós-golpe de 1964 até a noite de 4 de novembro de 1969, quando Carlos Marighella é fuzilado em uma emboscada que envolveu ao menos 28 policiais coordenados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), em São Paulo.

Marighella repassa um histórico de violência do Estado brasileiro contra populações negras – o delegado Lúcio, vivido por Bruno Gagliasso, tem suas vítimas bem definidas: “Se mato preto, mato vermelho”, ele diz em uma das cenas. Bisneto de uma ex-escrava sudanesa, Marighella reclamava para si a condição de herdeiro do povo haussá, que fizera a Bahia tremer no começo do século 19. O papel do guerrilheiro negro coube a Seu Jorge, o que gerou críticas no Brasil pelo fato de Marighella ter a pele mais clara que a do ator. “Não me importei se Seu Jorge tinha a pele mais escura. O que eu não poderia era fazer o que é comum no Brasil: nossa história é a de clarear pessoas”, disse Moura, referindo-se a casos como o do escritor negro Machado de Assis, por vezes representado como um homem branco.

“Penso que a gente não pode tocar em qualquer questão social no Brasil se não falarmos do racismo estrutural do país”, afirma o diretor, que traça um paralelo entre o assassinato de Marighella e o da vereadora Marielle Franco, em março de 2018. “Um militante de esquerda negro, revolucionário, morto dentro de um carro pelo Estado em 1969. Uma mulher negra, política, de esquerda, morta dentro um carro, provavelmente por agentes do Estado, há quase dois anos. A violência cometida contra revolucionários e pessoas negras nos anos 1960 é a mesma cometida contra a população negra nas favelas hoje.”

Marighella já contava seus 57 anos quando foi assassinado. Naquele momento, mesmo sob a cruenta reação militar, sustentada no Ato Institucional Nº 5, ele planejava uma sublevação popular cuja fagulha, segundo imaginava, se espalharia do campo para os centros urbanos, como ensinara a experiência cubana dez anos antes. É nesse personagem, que ainda cogitava um horizonte diante da derrota iminente, que Moura parece tentar se inspirar.

“A arte no Brasil é parte importante na resistência”, diz o diretor. “Se você olhar a história, vai ver que a primeira coisa que todos os governos fascistas fazem é atacar a cultura, a arte, o pensamento crítico da universidade.” Para Moura, apesar do cenário de asfixia da produção cultural no país, é preciso manter o brio.

“É provavelmente o pior momento de nossa história depois da ditadura”, afirma. “Não podemos ficar calados. Eles operam na lógica do medo. O que mais assusta não é a censura, mas a autocensura, quando as pessoas dizem algo como ‘eu não deveria fazer isso, porque isso não vai ser aceito’. É o que eles querem. Este é o momento de seguir em frente.”


LUÍS COSTA é jornalista e doutorando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

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