Crítica da razão negra: marcação e contramarcação

Crítica da razão negra: marcação e contramarcação
(Arte Andrea Freire)

 

Crítica da razão negra, de Achille Mbembe, publicado em 2013, dificilmente será superada no século 21, seja por seu conteúdo, seja por seu caráter ético-político. Divisor de águas na história do pensamento, de agora em diante, toda a reflexão que se leve a sério está colocada em uma posição inconciliável com a tradição da opressão que se constituiu em nome da lógica da raça por ele analisada. Negar o diálogo com os argumentos de Mbembe, de agora em diante, implica a manutenção da mistificação branca que sustentou o poder e o capital no lugar que conhecemos. Crítica da razão negra puxa o fio de linha podre que sustentava a trama racista na história europeia, da qual nós, brasileiros, bem como todos os habitantes das Américas, somos herdeiros, ora como algozes, ora como vítimas.

A história do racismo é a história do capitalismo, uma história de submissão dos corpos, de uso e abuso dos seres nele capturados, por meio de operações eminentemente teóricas e discursivas, com efeitos perversos na prática.

Ao procedimento de definir alguém como um outro chamamos de marcação. Ao definir esse outro como um negativo, a marcação é o verdadeiro mal radical enquanto aniquilação da humanidade do outro. Marcados são os sujeitos da diferença, tratados constantemente como objetos, coisas, mercadorias. Assim é com aqueles que são marcados como Negros, reféns da lógica perversa da raça, criada para a manutenção de crenças e preconceitos que serve a uns em detrimento de outros.

O mal radical é branco

Essa lógica não é apenas racional, ela é também o princípio do mal radical evidente naquilo que Mbembe chamou o “devir negro do mundo”, efeito de um delírio próprio da modernidade europeia que sempre abordou a identidade em termos de espelho, como que inventando o “outro” para sustentar o reconhecimento apenas do “mesmo”. Conseguia-se assim transformar outras pessoas em objetos, coisas e mercadorias que poderiam ser utilizados como animais, energia física para o trabalho. O delírio se comprova, na visão de Mbembe, quando ninguém, nem aqueles que inventaram o Negro, nem os que foram englobados por seu nome, desejaria ser um Negro ou ser tratado como tal.

Hoje, aqueles que se autoafirmam a partir da raça, como Negros, sabem que usam um nome que não deram a si mesmos. Muitos tentam fazer o melhor uso possível, um uso político de uma identidade, em princípio, alienada. Ressignificam um nome forjado contra eles, um nome que foi criado com o objetivo de promover um necessário empobrecimento ontológico para os fins do capitalismo sustentado justamente na humilhação daqueles que são usados por ele. O sujeito humilhado, reduzido ao “calabouço da aparência”, sujeitado à “falsificação de si pelo outro” não confronta os donos do poder do capital.  

Pessoas e grupos marcados como Negros, assim como mulheres, índios e outras minorias políticas, atuam hoje por meio de uma “contramarcação” na intenção de confrontar o poder sustentado na lógica de aviltamento da qual a lógica da raça é um dos elementos mais importantes. Em nome desse dispositivo capitalista foram perpetrados crimes, catástrofes e carnificinas: a escravatura, a colonização e o apartheid são suas provas históricas.

A construção pragmática do Negro dependeu de uma armadilha ontológica que apaga aqueles que a ela se submetem como sujeito de direitos, como cidadãos iguais a todos os demais e os localiza como um não ser ao qual, quando muito, é permitido viver sob o paradigma da bondade e da condescendência que serviu historicamente para reafirmar o delírio útil que deu ao mundo branco, preguiçoso e perverso, a acumulação do capital.

Hoje, no fundo do poço social que é o efeito objetivo do neoliberalismo para todos, é preciso confrontar essas construções sem mais mascaramentos brancos, para além da hostilidade racial que serve aos donos do poder.  

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