A luta mais vã e viva
(Arte: Revista Cult)
Aqui estão alguns dos poemas escritos por participantes da oficina de poesia que ofereci no Espaço Cult, em 8 encontros online entre maio e junho deste ano. Foi a terceira oficina nesse formato que a pandemia nos obrigou e ensinou a aproveitar, instalando assim as mais improváveis pontes. Durante duas horas nas noites de terça, a janela do computador reuniu gente de vários cantos do país e alguns espalhados pelo mundo: gente começando a noite aqui no Brasil, gente lutando contra o cansaço na madrugada de Paris e Berlim, gente com o sol às costas na Austrália – todos pensando sobre poesia. E escrevendo. Juntos.
A proposta das oficinas é bastante simples: ler alguns poetas, conversar sobre seus poemas e tentar sacar dali, da prática da poesia, lições para nossos próprios processos criativos. Nesta edição, visitamos especialmente o universo dos poetas Paulo Leminski, Orides Fontela, Herberto Helder, Ana Cristina Cesar, Manuel António Pina e Wislawa Szymborska. Suas casas são muito diferentes, sem dúvida, mas em todas elas apreendemos algo que, no dia seguinte ou daqui a dez anos, quem sabe?, vai nos surpreender quando estivermos sozinhos com nossas folhas e canetas e telas arranjando as palavras na página.
Quem escreve poemas sabe que o tempo da poesia é diferente, estranho, exigente. Dez poemas numa semana, um poema em dez anos – tudo normal. O tempo da transfiguração em poema de tudo que nos atravessa, de que tudo que buscamos – não controlamos. E este talvez seja o maior desafio de uma oficina de poesia, porque de um encontro a outro esperamos, de alguma maneira, ver poemas nascendo, responder aos exercícios, aos estímulos e provocações, mas sabemos, lá no fundo, que poemas não são seres muito obedientes: “Fazer poesia, eu sinto, apenas isso./ Dar ordens a um exército,/ para conquistar um império extinto”, nos disse o Leminski em “Desencontrários”.
Um tanto cruéis no trato com nosso desejo, poemas se aproximam lentamente quando imploramos pela sua presença. Irrompem na madrugada quando apenas queríamos dormir. O poema, para sair de sua toca, pode demorar demais. Pode decidir nem mesmo sair. No entanto, chamamos, chamamos, sabendo que nem sempre ele nos atenderá. De todo modo, o que aprendemos enquanto o chamamos é simplesmente a chamá-lo melhor – com mais força e delicadeza, entrega e convicção. Até mesmo Drummond, alguém que durante décadas e décadas soube, como ninguém, chamar e ser atendido pelos poemas, fez questão de registrar as entranhas desse “combate” cheio de glória e mistério, amor e desdém, entre poeta e palavra, no lindo poema “O lutador”: “Lutar com palavras/ é a luta mais vã./ Entanto lutamos/ mal rompe a manhã. […] Luto corpo a corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caça ao vento”.
Também por isso, voltar aos poemas escritos pelos participantes algum tempo depois do fim da oficina é uma experiência muito forte. Com a memória ainda quente das conversas todas que mantivemos, consigo perceber nos poemas a sombra dos andaimes utilizados em sua construção, as marcas do combate, o que pode tê-los deflagrado, o que comentamos, as mudanças, a reação da turma à leitura de cada poema. Mas, ao imaginá-los publicados para novos leitores, que não terão essa memória dos bastidores da criação, divirto-me com o jogo de luz e sombra que o poema instaura tão logo se desloca em direção ao leitor. Assim que a porta de oficina bate às suas costas, o poema ri – pleno.
Muito obrigado a todas e a todos. Até breve!
PROCURAM-SE POETAS
Aloísio Sá
Procuram-se poetas para compromisso
Com isso e aquilo.
Poetas bons de bico.
Procuram-se poetas
para sacudir o céu
e infernizar os infernos.
Procuram-se poetas declarados vivos
Pois os poetas mortos
Abandonaram seus sacrifícios.
Foram vistos na linha do precipício
Um bando de leitores perdidos
Todos à procura de poetas vivos.
Procuram-se poetas declarados vivos
Para afogar as magoas das pessoas
Para empurrar outras aos seus abismos.
Poetas para escrever epitáfios
Poetas para frases perfeitas
Poetas para dormir na rede
Poetas para fazer amor.
Poetas para suicídio coletivo
Poetas para fazer a guerra
Poetas para beber do vinho
Poetas para dividir o pão
Poetas para salvar o mundo
Poetas para fundar um país
Com flores nos canos dos fuzis.
LESMA
Amarildo Veiga
o centro da linguagem é o silêncio
o som do mármore
estilhaços de aço
as sombras regurgitam vísceras
todos os quarenta e nove buracos das sete cabeças que brilham no corredor
todos ouvem silêncio
sou todo medo
sou todo água carbono e medo
que evapora que decompõem sobra medo
e trinta e dois dentes
sou todo medo
beijo teus pés e me devoto ao teu corpo
quero teus pés dentro da minha boca
até sufocar meus gritos
as lagartas devoram couves e repolhos
as lesmas deixam sua gosma nas folhas verdes
traçando um caminho brilhante
temos o arremedo do presente (dias pachorrentos que não passam enquanto esperamos a chuva)
o passado é uma mentira (colagem de lembranças seletivas
memorabilia móveis velhos numa garagem de memória)
e o futuro não passa de uma remota perspectiva (esfumada e voraz que
persegue e transforma os nossos dias em angústia)
enquanto isso
meus dedos enredam teus cabelos castanhos e quero teus pés na minha boca
minhas mãos estão pintadas no teto da capela sistina
meus dedos tocam os dedos de teu deus
meu falo mais parece uma pequena lesma
que dorme a tua espera
[ERAM VINTA E OITO…]
André Xavier
eram vinte e oito anos, um par de sapatos, dez livros
e nenhuma fotografia sequer que atestasse infâncias entre a mala
apenas o rosto de minha mãe no retrovisor
não sabia se as lágrimas eram minhas ou se eram delas
fingi silêncio pela primeira vez na vida
não queria pensar que para partidas
fosse necessário muito mais que uma alça e objetos
BAGAGEM
Beatriz Jatobá
na pequena valise
guardo
o que me preenche
vazia,
a embalagem do doce,
primeiro presente
da tua presença
um anel,
solitário
nossa última foto,
juntos
de mala arrumada
sem prumo
tomo meu rumo
CAMPANELLA
Bruna Trevelin
No palco de um
Teatro em chamas
Anseio, persigo
Um som
Porém recuso.
O som reverbera o fogo
O calor
A cinza
O sonho
Porém abafo.
Alguém está livre
Na ordem suspensa
Do grave ao agudo
Alguém que eu desejo
Porém sufoco.
[QUASE…]
Bruni Santiago
Quase todos os dias ela vem.
Seus olhos passeiam pela vitrine
sem pressa.
De um lado para o outro
ela anda como se estivesse
dançando.
Pergunto como posso ajudar,
ela responde (sempre) que
está pensando.
Pensando em quê?
me pergunto em silêncio
Às vezes parece que ela só vem
pra pensar.
E depois de pensar
pede meia dúzia
de croissants de chocolate
e segue viagem.
KING SIZE
Carla Andrade
o corpo dela não consegue pisar
no chão, nas formigas turbinadas
de flores, folhas e galhos triturados
mais um dia ela vai ficar aqui comigo
entre lençol e virol para duas pessoas
só ela, com a cabeça em toneladas
eu tão grande, ela encravada em mim
como uma espinha espremida
eu macia, ela dura como o taco do piso
melada de uma seiva de árvore jamais
visitada, ela é a sombra dessa árvore
que olha para sóis em outra órbita
sou a cama encarnada dela (ainda) viva
À LA CARTE
Carla Bessa
dizer não / discordar (algumas vezes)
ficar sozinha
comprar pão integral daquele mais caro
avisar o vizinho de cima que o vizinho de baixo voltou a gritar à noite
desafirmar o que afirmei antes
ler manuel de barros
ler hölderlin (no original)
escrever uma carta para elisabeth, a rainha do reino unido
perguntar quem ela pensa que é
(em português mesmo)
passar pelo menos 1 hora contemplando a gralha – ela destrói as plantas da varanda
ou os urubus na saída da ponte rio-niterói – eles planam
refletir sobre a quantidade ou soma que não se designa
quantidade mínima de energia que pode ser emitida, propagada ou absorvida:
“a coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério”
PARTIDA
Daiane Moret
suas bochechas rosadas de poeira.
minhas digitais impressas na fotografia.
um chumaço de cabelo de cada blood lineage.
um livro. um lápis. seu sorriso largo.
o cheiro da casca de mexerica.
joelho ralado.
asas de fiapos e olhos de gavião.
essas são as coisas com espaço
na minha bagagem de mão.
SEMENTES
Dayse Ricardo
O vaso caiu
Talvez derrubado pelo vento
Não sei dizer
As sementes tocaram o chão
Tiveram medo!
Mas não desistiram
E desapegaram do vaso
Do passado aprisionado
E aceitaram o convite do tempo para seguir.
Ao tocar a terra resolveram brotar
e espalhar flores pelo caminho.
Quando sentiram o poder da terra em seu ser
viraram primavera.
SEM NOME E DE FORA
Diana Dias
O salto, a dor, melancolia e medo
As mãos, o tremor
pendores estomacais
Sorrisos desbotados
Ana C. estalando alto
O baú chacoalhado de
memórias vivas
a sensação tonta de que não esqueço nada (tantas fiz)
Virginia flanando em um balanço sorridente
Essa paz.
Minha flor, meu cais
Tudo o mais que meu
E não darei
a mais
ninguém.
UM DIA, UM HOMEM, UNS ÓCULOS
Diego Pereira
O/A cônjuge
“Nem sempre acorda quando o dia amanhece.
Por que outra razão haveria de se atrasar tanto,
para o desjejum, ou a história daquilo que,
entre nós, sequer aconteceu? Diz-se poeta e
que ‘poetas terminam jovens, meu bem’.
Nenhum de nós dois aprendeu a esperar.”
Os pais
“Seu telefone está perdido,
essa chamada está perdida.
Sua voz, nossa voz, também estão.
Mas, ‘Que Deus te dê sorte, meu filho’.
‘Que Deus te abençoe, filhão’.”
A irmã/O irmão
“‘És belo, és forte, impávido colosso’.
Não vai morrer. Não vai morrer. Não vai morrer.”
O zelador (do lugar onde mora)
“Já perguntei a ele a respeito de tudo,
e não desisto de perguntar, ainda que suas respostas
não respondam às perguntas alheias ou às próprias.
Sempre é ‘sim’,
sempre é ‘não’.”
O motorista (de aplicativo)
“Por que não andas, daqui ali?”
O porteiro (do lugar onde trabalha)
“Traz, todo dia, um sorriso que ninguém tem. É forjado.”
Seu chefe
“Não falta. Não atrasa. Trabalha.”
Seus colegas de trabalho
“Não falta. Não atrasa. Trabalha.”
Outro porteiro (do lugar onde trabalha)
“Não sei quem ele é. Alguém sabe?”
Outro motorista (de aplicativo)
“Está triste demais para ir aonde precisa ir.
Mas parte (e chega), desfazendo-se pouco a pouco.
Ao entrar, ou partir, ao sair, ou chegar,
está triste demais para tudo isso (e só).”
A psicóloga
“Suas palavras, religiosas,
vêm sempre a mim. Mas, ainda não sei
qual a origem,
qual o destino,
da voz de que se servem.
Às vezes, por detrás de todas elas,
ninguém fala a alguém; às vezes, é um homem
quem fala; às vezes, é um poeta.”
Outro motorista (de aplicativo)
“De 0,0 a 5,0, é 4,92. Vamos lá, então!”
O mesmo/A mesma cônjuge
“Já chegou?!”
Ele mesmo
“Sim.”
ELA TEM UM SORRISO
Eduardo Guilhon Araujo
ela tem um sorriso
………..tão terno, preciso
um lírio-branco mar
………..perder-me-ia por lá
sem qualquer aviso
………..ela tem um sorriso
[SABE, HOJE…]
Eduardo Murakami
Sabe, hoje, eu só queria voltar para uma sexta-feira.
07 de agosto de 87.
Eu sairia da escola,
caminharia lentamente até a oficina.
Chegando, desviaria dos carros,
lhe trataria com desprezo
e frieza.
Mudo.
Esperaria as voltas dos ponteiros.
Mudo.
Entraria no carro.
Mudo.
Chegaria em casa
Libertaria de dentro de minha mochila o cão de meias.
Por dois dias mais sonharia.
E no segundo domingo daquele agosto,
lhe daria o presente.
Mudo, eu destruiria o cão de meias e aqueceria seus pés.
Sabe!
Se eu pudesse voltaria àquela sexta-feira.
Salvaria o cão de meias da lata de lixo e,
quem sabe,
me salvaria também.
AQUI JAZ UM CURRÍCULO
Elivanda de Oliveira
Os amigos foram embora
As crianças cresceram
O aniversário passou
Publicar, publicar, publicar
A filha engravidou
O neto nasceu
A careca brilhou
Publicar, publicar, publicar
O pai morreu
A mãe operou
A esposa o deixou
Publicar, publicar, publicar
O cacto definhou
O bem-te-vi mudou de rota
O café esfriou
O coração não aguentou.
[CACHORRO – II]
Flávio Aquistapace
Queimar o nó do dedo na frigideira
Almoçar a pizza dormida que restou
Escrever tocado pela canção triste
Seguida de outra, glacial
Relembrar a noite da peste – um domingo
Em volta da mesa com o seu pai
Comemorando juntos vinte dias depois
Sem festa nem brinde, nenhum alarde
O encontro basta para um aniversário
Com todas as imperfeições – basta
Na outra manhã, correndo para garantir
O resto de Sol que banha a casa quando
Sem ter um homem para chamar de seu ele
Próprio se reconhece como seu cachorro,
Anotando no fim do calor o “animal-escritor”
Não que ele é mas no que consegue ser.
………..…………Queimado, fodido
………..…………Amado e triste
………..…………Animado, solitário
………..…………Equinócio completo.
………..…………………..……..Canção dissipada
………..…………………..……..Dentro do nada.
[ESFÉRICA…]
Lara Pinheiro
Esférica, a imagem descortina um zum-zum
cruzado do outro lado da porta.
Se escuta algo, não sai.
Foge ao menor sinal de gente no elevador.
Estranhíssima.
Quero doar um aipim que trouxe da roça.
Como?
Toco a campainha, não toco.
Toco.
É do 904. Trouxe um aipim da roça.
Silêncio.
Vou deixar na porta e pedir para o porteiro avisar.
Estranhíssima.
CURRÍCULO
Leandro Miyashiro
Aos sete,
Quebrei o braço
Fui pra Bahia de carro
Mudei de casa
Aos catorze,
Assaltaram a casa
Entrei pro ensino médio
Estava me entendendo
Aos vinte-e-um,
Parti o coração de alguém
Fiz intercâmbio
E voltei adulto
Aos vinte-e-oito,
Trabalhei muito, viajei um pouco
Fiz uma operação chata
Amadureci
Tudo isso, querido patrão,
Eu te garanto
Me capacita a ser
De faxineiro a CEO
Da área contábil ao RH,
Pintor de quadros e paredes
Entregador de delivery ou de sonhos
Pode me contratar, tratar comigo mesmo
CONTÍNUO
Lígia Fogagnollo
Atravessa o percurso do tempo
O relógio já sem caminho
Vida partida, vidros inteiros.
O agora é um fragmento
Do quase tudo longe perdido no campo arame farpado
Rasgo de onde as lágrimas vazam
Confundindo o que foi e agora também.
Carregar os panos cujas dobras murmuram
Ritornelo trôpego refazendo o caminho de olhos fechados.
Nunca partido só o vidro que brilhava até sob o sol apagado,
os olhos que piscam e os minutos que fingem.
Desorientação de acordar sem hora, membro que falta, céu que chora
e tanta coisa que continua como se nada.
Há que se carregar o relógio.
Também ele necessitava de corda
Também o coração precisava de pulso.
O que fazer daquele relógio sempre no braço?
Pele, banho, colo. Tudo acabado quando o tempo, o sol e o último tijolo.
Às vezes no desdobrar dos panos
Tique-taque tique-taque
Feito reza rouca e novo adeus
Estrela cadente presa no piche.
VIZINHOS
Lilian Escorel
I
Em frente ao prédio onde moro, vive num sobrado um cantor lírico. Ele costuma cantar à tarde. Tem um vozeirão, que chega nítido e claro até o meu apartamento no quarto andar. Deve ser barítono. Exerce o ofício todo dia, mas não o tenho ouvido ultimamente. Faz algum tempo eu o flagrei discutindo com o vizinho, que reclamava do barulho dele. Tomei um susto, porque foi a primeira vez que o vi. Só o conhecia pela voz e, por ela, imaginava um homem mais velho, corpulento e grande. Apareceu no lugar um jovem estudante. Os cabelos pretos, ao contrário dos brancos do vizinho rabugento, estatura média, o corpo bem cuidado.
Hoje é sábado, dia de sentar tranquila com um livro ao sol na varanda e regar minhas plantas. Olho para a rua e o vejo saindo do sobrado, de bicicleta, com capacete, mochila nas costas. Os jovens de hoje não ligam tanto para carros. Hoje é sábado, dia de pedalar. Ele sai pela contramão, a plenos pulmões da idade.
II
Em frente ao meu sobrado, vive num quarto andar de um edifício chamado Mauí uma provável escritora e certamente leitora. Todo dia ela está sentada à mesa do escritório. As portas de vidro me fazem intuir que ela escreve. Quando o sol sai, senta-se na varanda, geralmente acompanhada de um livro, e fica ali, muitas vezes com o olhar que sai da página, vagueia e depois retorna. Passa um tempo e ela se levanta para regar suas plantas.
Hoje é sábado e, de repente, ela aparece ao rés do chão. Primeira vez que me deparo com ela mais de perto. Calça esportiva, camiseta justa e uma blusa na cintura. Mulher prevenida, deve ter uns 50 anos. Não direi cinquentona. Essas mulheres hoje têm o ar mais jovem. Cuidam do corpo. É mais baixa do que imaginei, espiando-a pelo vidro à roda de seus livros e, na varanda, tratando das plantas. Hoje é sábado, dia de passear. Ela sai do prédio, no sentido da rua a passos de meia-idade.
[ABRO UM LIVRO…]
Lívia Mota
abro um livro
levo o dedo à boca
molho de saliva
passo a página
mais uma
e mais uma
muitas
dedo, boca, saliva
números no canto inferior direito
sequência ou adorno
uso marcador
uma fita de cetim
bem no meio
história sempre mal contada
NO TEMPO DA ROUPA BATER
Lucas Veiga
enquanto lençóis
sacodem na minha carcaça
como se mais de 300 fios egípcios
tecessem agora a minha alma
junto com água e sabão,
enxergo as coxas grossas
e cabeludas disso que parece ser
um homem,
mas quando a espuma embaça a lente
também parece que essas pernas
grossas e cabeludas
podem ser de um sátiro:
um homem metade bode e a outra metade homem
um homem metade bom e a outra metade em pranto
como se soubesse, pela tremedeira das pernas,
que os rastros de lesma que
o homem que esteve aqui essa noite
deixou nos lençóis
estão prestes a deixar de existir,
mais um amor que vai pelo ralo.
ele se agacha para me olhar no olho,
abre minha tampa, minhas pupilas
mexe tanto comigo, dentro de mim
que chego a achar por um momento
que não sou uma máquina de lavar.
enquanto suas macias mãos
conferem se as roupas de cama
já estão quase no ponto,
prontas para uma nova noite,
um novo amor, talvez
observo a cicatriz que corta
seu supercílio direito
e a textura me parece muito
com os zíperes que já me machucaram,
com as costuras que já se arrebentaram
quando puseram em mim
mais do que suporto.
abaixo da cicatriz,
malfeita como o meu conserto,
olhos pretos, quase noite, lembram os botões
que me emperraram aquela vez
que fui mandada para garantia
e devolvida e levemente despida
do papelão, do plástico, do isopor,
das prestações até estar aqui,
outra vez, embebedada de amaciante
torcendo para que esse homem
curvilíneo da cabeça aos pés
tropece e tombe e venha para dentro
do cesto de inox, meu coração,
enchendo-o com quantos fios tiver
esse que não é egípcio,
mas me devora.
SEM QUE PALAVRAS
Maria Cristina Martins
sua sombra clandestina
lagartixa sem rabo subindo
pelos muros trincados da repartição
a moça do 13 tinha documentos
comprobatórios de que o prédio ia cair
você caía nessa e me dava raiva
suas falas nas assembleias que raiva
você tinha razão mas lembra do poema
não basta ter razão que desgraça
de novo escreveram no muro
contra o aumento da passagem
mas a passagem só aumenta
e antes que o prédio caia
preciso dizer o que não vou dizer
por ouvir a razão
não há razão para isto
você parece o camilo
mas eu prefiro o che quer dizer
os dois são lindos e cheios de razão
mas não basta ter razão quer dizer
eles venceram mas a gente não
também não basta não ter razão
não há razão para isto
e ainda assim
antes que o prédio caia
preciso dizer o que não vou dizer
que fôssemos etienne e catherine
mas sem morrer
23 DE OUTUBRO DE 2028
Maria Helena Coelho de Aguiar
Sonhei que John Lennon descia dos céus, se dirigia a mim e indagava: “quem é você na cartografia do Universo?”. Acordei absorta em imagens desconexas e ao fundo a canção de Belchior me dizia “a felicidade é uma arma quente”. Durante o dia, ainda ecoava a frase: “quem é você na cartografia?” Só sei que me recordo daqueles dias de chuva em que, sentada sob a sombra, pensava que sabia de algo. Ficaram apenas as paineiras. O resto, o tempo se encarregou de soprar. Anoiteceu algumas milhares de vezes. Estou perdendo a vida a olhar pela janela? Vivencio meus devaneios, escrevi ontem um poema sobre o céu, longínquo e inalcançável. Aconselho os outros. Sei que são bons conselhos. Ai de mim, que não sigo meus próprios conselhos. Bebi água de menos, amei demais. Fugi. Acho que já vou dormir. Boa noite, diário, dorme bem.
EMBORA
Marialda Almeida
No processo de ir embora
Os objetos são uma desculpa
Para permanecer
[PARALELEPÍPEDO…]
Natália Mota
1.
paralelepípedo
agora, fale rápido
paralelepípedo
devagar
PA-RA-LE-LE-PÍ-PE-DO
jogue o dado
volte três casas
tem história que
é proparoxítona
2.
uma coluna, com quadrados em branco
uma linha, com quadrados em branco
preencha conforme a pista
se deu certo,
é palavra cruzada
[E QUANDO…]
Raquelle Albuquerque
E quando se esquece o segredo da mala?
Lá dentro, guardado no silêncio, acomoda-se um mar limpo e macio de tecido usado e lavado.
Os plásticos, os metais e os papéis se afogando no algodão
Enquanto isso, não lembro o segredo da vida.
OUTRO
Shirlene Holanda
Sabe do leitor
à espreita
Quantas letras seguem o fluxo
Corta troca sílabas
Procura ave de presságios
peixes escorregadios
o sem persona
Bebe de Apolo
do vinho do Chinaski
Cria apelido
Veste para o outro
Pensa na solidão do H. Helder
Escorrega
Aproveita o reflexo
O assombro no deslize
Busca a forma do delírio
Contorna em vão
Foge do brilho das luzes
Mãos pesadas sobre os olhos
O que não está em volta
O obscuro traz o não dito
Claridade leitosa
Feito o Fingidor
Quantos dias para dar forma
Uma forma reconhecida
O que faz amadurecer
Nascer
invisível na cidade
não ter de nada
o verso livre
o sublimar
LÍNGUA POEMA LINGUAGEM
Theodora Moreira
O primeiro gole de chá que queima minha língua, dizem
as papilas gustativas nunca mais serão as mesmas
Senta, toma um gole
A habilidade milenar de soprar pra dentro e congelar o líquido quente com ares glaciais do bafo tropical-morno.
Passar a língua no céu da boca como quem lambe o céu mesmo
Esse céu tem lá seus gostos de gengibre
do alto dos trambolhos dos aviões não tenho a experiência de dizer que o outro não
Mas tenho sim a experiência de congelar de dentro pra fora sem nem olhar pelas janelas,
me foi dado o assento do corredor e naquele dia aquilo era a morte
Olha o céu cor de limão capeta do lado de fora da fresta de janela que me foi designada
Ainda guardo fotos de aeroporto se quiser provar
Hoje tem tons de rosa chiclete
Mas logo decidi esfumaçar o tom, não dar tão na cara
O doce enjoativo do cotidiano
Bocejo do lado de cá
17:45 da tarde de terça-feira
É sempre um pouco tarde
Como será habitar a língua habitar o corpo habitar a caverna da boca
Não sei, sou só aparição repentina, que num susto calhou de estar ali
Do you believe in ghosts?
Ainda tenho um pouco de medo de escuro
NOTAS
Leia também os poemas anteriores, da primeira edição da Oficina de poesia e da segunda Oficina de poesia.
Fique ligado: em outubro e novembro, abriremos uma nova rodada da oficina de poesia com Tarso de Melo, visitando outros poetas e conversas sobre poesia.
Tarso de Melo é poeta, autor de Íntimo desabrigo (2017) e Rastros (2019), entre outros livros.