Ver pela primeira vez: poemas da 2º oficina de poesia do Espaço Cult

Ver pela primeira vez: poemas da 2º oficina de poesia do Espaço Cult
(Colagem: Cynthia Gyuru)

 

Qual palavra não poderia faltar num texto sobre o ano de 2020? Qual palavra não poderia entrar de maneira alguma? O que você descobre sobre si mesmo enquanto foge do vírus? Do que você mais foge – de si mesmo? – entre os cômodos da sua casa? Que outros medos você aprendeu na rua? Que outras casas você descobriu dentro de si? Quais portas se fecharam? Quais janelas se abriram? Quais fugas você imaginou? De que imagens você fugiu?

Os poemas escritos durante a segunda rodada da oficina de poesia que tive o prazer de coordenar no Espaço Cult, entre outubro e novembro, lidam com essas perguntas que tantos de nós nos fizemos neste ano estranho. Aliás, encarar perguntas – questionar-se, questionar, ser questionado – talvez tenha sido o melhor que pudemos experimentar nesses meses. Indagar-se, indignar-se.

A poesia (e a prosa) que foi escrita neste ano pode ser enfeixada em torno de questões comuns e lida, em sua radicalidade, como respostas, ensaios, aproximações ao abismo que tais perguntas revelam – e namoram. Não foi diferente em nossa oficina, porque, agora, voltando aos poemas escritos pelos participantes para escolher quais publicar aqui, é como se o ano se inflamasse (ainda mais) diante dos meus olhos, como se os versos não deixassem nada parecer “normal” – e penso que é justamente disso que precisamos.

Quando os poetas, aqui, nos levam para dentro de suas casas, para perto de seus corpos, para o universo de seus sonhos, apontam caminhos que não apenas nos permitem respirar nesses tempos de asfixia coletiva, mas criam espaços de liberdade, desejo e alegria pelos quais devemos lutar sempre, não apenas quando toda liberdade, desejo ou alegria parece inoportuna.

Assim como na primeira rodada da oficina, exploramos esses caminhos guiados (e também despistados…) por autores que, cada um à sua maneira, encontraram formas lindas, fortes, riquíssimas de atravessar os caminhos da poesia (e da vida), como Fernando Pessoa, Adília Lopes, Chico Buarque, Clarice Lispector, os poetas concretos e alguns dos nossos contemporâneos.

Todos eles, em suas linhas tortas, nos revelaram muito sobre si próprios – e também sobre nós –, mas principalmente sobre esse ofício comum que, em algum momento, deu sentido às suas vidas – e, hoje, dá às nossas. E era exatamente isso que buscávamos. O que nos une, na oficina e para além dela, é a paixão comum por “ler-escrever poesia” – e não há forma melhor de aperfeiçoar nossas condições de leitura e escrita de poesia do que se entregar aos desafios lançados pelos poetas em cada um dos seus textos.

Nas palavras do saudoso poeta Carlos Felipe Moisés (1942-2017), “a poesia nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez. A poesia nos ensina a subverter permanentemente o já visto” (Poesia para quê? – a função social da poesia e do poeta, Editora Unesp, 2019). É isso. Ler-escrever poesia é fazer(-se) ver o mundo novamente (e novamente não é mais uma vez, mas sim de modo novo). E, não menos, ver também a poesia de modo novo: rever, revirar, revolucionar a sua própria relação com a poesia. Sim, quando nos empenhamos coletivamente nessa tarefa, saímos todos com olhos novos, vivos, que nos entregam um outro mundo e outras formas de lidar com a poesia.

Muito obrigado a todas e a todos – até breve!

 

***

O CAVALO AZUL

 

Ana Cláudia Romano Ribeiro

 

durante algum tempo tudo
acontece em torno
de um pequeno cavalo azul

o sol o frio a luz
o chá quente e o vinho
os mercados de pulgas
as correspondências
e todas as palavras
novas verdes nuvens

presente do moço francês
meio apaixonado chinês
um dia caiu e quebrou-se em mil
pedaços deve ter sido depois
daquela vez em que ele
disse que não
se orgulhava
dela

 

TAL VEZ

 

Anouch Kurkdjian

 

Depois de você
eu esqueço o significado das palavras
e elas viram aquilo que sempre foram
sons imagens milagres

o mundo em sua concretude
oficial jornalística
(quem nos governa ou desgoverna além de nós mesmos
que time ganhou ou perdeu além do nosso)
deixa de existir
para se tornar um sonho
sonhado por algum deus
de tempos imemoriais

as coordenadas geográficas
refinadas por milênios de ciência
não se aplicam mais

teremos eu e você
que inventar um outro sistema
se quisermos nos encontrar novamente
nos metros quadrados de um quarto
uma nova métrica
um novo calendário
com novos nomes para os dias da semana
a passagem do tempo
medida em outra unidade
– mais complacente

juntos criamos
um nome mais digno
para isso onde estamos deitados
um nome
feito de novas letras

 

[LUGAR PÚBLICO]

 

Antonio Martinelli

 

predestinado ao fracasso,
estufo os arcabouços,
mas os alicerces
são frágeis,

[só o Marlboro sustenta na boca]

meu esqueleto
– concreto armado –
pouco suporta gestos,
estruturas estáticas,
meus ombros não alicerçam
o novo mundo,

[e abalo-me lendo Carlos,
e derreto-me vendo Carlitos]

a inutilidade da momice
diante do papel
nos bolsos,
qual o resultado:

– dos exames de sangue?
– da contagem dos votos?
– dos histórias de mulheres e homens,
que amei e odiei?

dissentimos,
[mas, no fim, é sobre isso
como dois e dois]
é sobre isso o poema:
a morte nas tripas,

e não há palavreado,
não há sirene soando,
não há prontuário, nem carta,
nem fichários, mensagens,
nem memes engraçados,
e não há palavras de ordem,
assembleias, nem novenas,
não há últimos capítulos
de novelas
[nem mesmo sucesso
capaz de parar o país]

 

de nada adianta
faixas destilando _________________________ no céu da praia do Leblon,
nem o grito
vibrante do homem do Mate

[ao término,
o poema é sobre isso,
no fim,
tudo é sobre isso]

e não serei eu a bradar,
e não fui eu quem gritou,
em Lugar Público:
“A vida é inútil,
os outros são nulos,
a morte espera todos…”.

 

*

 

Bruno Carrara

 

o rio da dúvida
deságua onde
nasce?

 

AULA ONLINE

 

Bruno Ramalho

 

há esse que parece falar, só ele, o que todos precisam ouvir, que escolhe por cenário o paraíso para esses todos e quem quer que busque experimentar a palavra que esteja por vir. é um acolhedor.

há aquela que não consegue ligar o microfone. é uma vítima indireta do sistema e acaba desistindo, abandonando-nos.

há a moça que mora num mundo vermelho e embaçado, e de quem o olhar, ao contrário, traz nítido colorido. tem cabelos movendo-se por uma brisa leve.

há duas ou três que gostam de falar e, assim, desembaraçam a turma. demonstram saber mais do que eu e eu espero que elas falem, pois quero muito saber de cada quê.

há outras duas de nome e sobrenome incomuns e caras sérias, que, decerto, escondem delicadeza. idealizo seus intelectos literários e sinto uma boa inveja.

há uma que parece morar numa vitrine de loja de bons móveis, com tijolos brancos de bom gosto. vive em meio ao bonito e não abre mão de ter um porta-retrato da família para se lembrar do seu bom mundo.

uma cuja cor dos cabelos imita a armação dos óculos, um sinal de sofisticação estética, que, penso, há de se repetir em poemas. tem um sorriso percipiente, uma armadilha.

e, por fim, há aquela com ar e feições de professora, que quase pula de uma estante tão rica quanto à do cara que tanto fala – ele não se cuidando, ela o substitui com maestria.

isso sem falar das fotos de outras pessoas que viram vídeos que viram fotos e, às vezes, nessa troca, flagram-se a golada no vinho, a escapada ao banheiro, a distração outra qualquer.

de vez em quando, surgem uns homens nessa minha tela túrgida, mas eles, imagino, são tímidos que, como eu, preferem assistir a tanta força e ouvir em silêncio, temendo ser versejados por um colega perdido no exercício da heteronímia.

enfim, o faço e estou agora.

e o que pensam de mim, esse anônimo ou quase, esses de quem tanto penso? antes, creio, pensavam nada, mas agora tudo é algo mais que isso: um tentar-ser-outro, o heterônimo que todos nós, não ou querendo, nessa aula online, acabamos sendo.

 

O PARAFUSO A MENOS

 

Cleide Trapp

 

só eu sei que você queria se chamar Blimunda sete luas
e que passou o último ano fingindo gostar de chicletes
sem necessidade.
só eu sei que você abriu as pernas o mais que pode
para imitar o A de Amor
e assim tão maiúscula ter uma chance

só eu sei que às sextas você amarra um guizo
ao pé esquerdo e já vai pela vigésima narrativa:
o cartão postal chegado da Bolonha sem assinatura
foi na verdade enviado por Laura que queria seguir incógnita

 

NÃO

 

Conceição Benjamina

 

não me rotule,
não sou mulher de Atenas:
além do nome,
sou mulher apenas.

não sou de homem,
pertenço ao chão e ao céu,
mas estou sujeita às penas
dos masculinos de fel.

não me perdoe
por ser de fases:
além do cor-de-rosa,
dispenso as crases.

não sou diferente
dos homens normais,
mas estou sujeita ao hábito
dos masculinos plurais.

não me exalte
por ser mulher todo dia,
se fora da cama,
o peito é meu defeito.

não sou mais frágil
que os bons culhões;
ao contrário: mulher, eu sei,
uma, sou milhões.

*

 

Débora Bolsoni

 

No caminho das necessidades do cão
a vi se ocupando de algo na sala.

Também já a vi descendo
e subindo uma escada externa que leva para a garagem.
Deixa tudo aberto. Porta, janela.
Aberto não, escancarado.

Até a garagem parece que dormiu escancarada.
Passei a cumprimentá-la.

 

ANTES ERA TUDO UM SÓ

 

Elena Parravicini

 

Aqui e ali. Até quando vamos seguir juntos separados? Cansei meus dedos de palavras invisíveis.

Me encanta a ideia de viver traços de genialidade. Mesmo que eu nunca saiba o que significa.

Segues meus pensamentos? Eu tampouco. Deixo as coisas tomarem seu próprio ritmo, esperando o momento que elas vão seguir o meu. Lembra de quando…? Esquece! Os guardas da prisão já se tornaram nossos amigos. Era esse o presente das fadas? Uma falsa ideia de felicidade temporária. Escondida na ilusão de que tudo desaparece no fogo.

Nada. Deitada aqui eu só tenho o meu corpo pra te obedecer. Grito no descontrole dessa ordem contrariada. Eu nunca fui boa de intenções.

Minha linha desprega o quadro branco que manchou essa parede. Caos. Nossa dança agora pede essa desordem. Melhor então que seja feita no meu-seu próprio ritmo.

 

ÁGUAS RASAS

 

Fabiana Pacola

 

em águas rasas, um barco:
ele popa, ainda fresco e quase mudo.
ela toda proa, desconcertadamente prolixa
e capenga: um racho no assoalho clamando por arremate
ansiava, ela, um arrebatamento desse vazio
mas ele soava como café fraco na boca do cambaleante.
não tinha nada de precipitado, ele.
não que tenha preferido ficar confortável em águas rasas, apenas desconhecia tormentas
ainda tinha os pais com seus barquinhos salva-vidas, ele.
e ela: uma mãe recém morrida.
nem zarparam.
desse horizonte em desalinho sobrou o que: uma dor bicuda, ancorada.
e um barco encalhado.

 

LIÇÕES

 

Felipe Fleury

 

Falemos do mal, que se aprende mais fácil,
que entra pelos poros, osmose a céu aberto,
nem precisa de escola, nem de regras
grafadas em pedra, tão acessível quanto
sinal de wi-fi sem palavra secreta.

Falemos agora do que resta,
que, por sua vez, é mais complexo,
parte do princípio de que é o seu oposto,
de que deveria habitar cada gesto,
como, por exemplo, estender as mãos

ao aflito, sem lavá-las depois,
abaixar-se até aos que estão de joelhos,
aprender o mal só para desaprendê-lo.

*

 

Felipe Secondo Perin

 

A estante da sala tem fotos:
Uma viagem inesquecível.
A foto do nascimento do primeiro filho.
Um passeio no parque, num domingo de sol
O mesmo que desbota as fotos.
Mas não faz sumir os fatos.
Cada instante ali, marcado no retrato
Retratos de momentos, de dias, de uma época.
Na estante do escritório, a foto do meu pai
Que fechou os olhos no instante do flash
E agora, mesmo sem o flash, os mantém assim.
Tudo que se perde parece sumir
Instantaneamente
A caixa guardada no ponto mais alto da estanteTorna as lembranças distantes
Uma caixa de instantes.
Revejo histórias.
Folheio livros antigos
Cadernos da escola.
Cartões de Natal.
Reconto minhas histórias em meus pensamentos.
Eternizando cada instante
Que congela o tempo para deixar a lembrança passear.
Passeio pelas fotos, os livros,
Os enfeites dispostos ao acaso
O pedaço da madeira já desgastado
Nas estantes, ali, tudo guardado
Tudo marcado
Cada instante, ali, registrado.
Penso, assim, que a vida
É feita
De estantes.

 

ÁBACO

 

Flavia Bon Cardoso

 

A morte está ali, à espreita
Quantos rostos conhecidos ela ceifará sob o olhar insensível dos tiranos?Quantos desconhecidos estarão sob seu jugo
ao final da tarde?

Tenho certeza
– me disse isso minha carta natal –
que nasci para contar as borboletas que pousam todos os dias na linha do varal
as libélulas que tocam a água que voltou a ser cristalina
as linhas do arco-íris que, por imprecisas, ainda não consegui constatar que sejam sete

A criança que fui pensou um dia contar as estrelas do céu
e num despreparo de equipamentos necessários
o fez temendo verrugas em seus dedos magros

Ainda são milhares os cantos de cigarra que me propus colecionar
Sequer cataloguei todas as lagartas que viraram borboletas por aqui
E sequer é minha a morte que temo.
Fiz todos os rituais necessários para recebê-la com altivez

É para essa dor do mundo que nunca estive preparada
Nunca pensei – pensaste tu? –
estar diante desta contabilidade.

 

ALFABETO PARTICULAR

 

Giovanna Malvar

 

sinto falta de tudo que nunca me emergiu subterrâneo – nunca faltou
como quem voluntariamente descarta peões no tabuleiro
e saliva mel
goteja o que há de salino na intimidade

os copos que foram roubados e encerram suspiros
o café queimou e ninguém ameaçou ir embora
uma carona e uma conta que não se pagam
dedos infantilmente adultizados se entrelaçam
enquanto o vinil embriaga as brumas desatinadas

toda madrugada pede uma fuga de casa
e toda fuga pressupõe um colchão extra
toda fuga alerta a impossibilidade da náusea
os cotonetes em cima da pia e o décimo saco de lixo do dia
a nudez que mimica ranhuras do despacho

não se pode atender ligações com o freio pressionado
é como começar um escrito do topo contrário – meu norte é sul
a toalha molhada em cima da cama úmida pelos deuses e demônios
o traumatismo craniano das conchas que prendi à mão
a etimologia de tudo que me pareceu inalterável

que valor atribuir aos cochichos dos corredores?
ao barulho inconfundível dos dentes escovados
mesmo que a porta esteja trancada
mesmo que a tartaruga tenha seu casco virado para baixo
mesmo que a cólera poupada não vire prataria e magma
nem toda fruição é pacata – meu deleite é de carnificina

paixão nunca me falta: interferência nunca exonerada
pensei ser enxotada – falácia de quem sempre acendeu as luzes
de quem forçosamente masca a própria língua
pela escassez de últimos beijos

nunca me faltaram dialetos secretos a azucrinar
vivo a pronunciar novos nomes de mulher.

 

*

 

Helga Hofmann

 

Sou pretendida na tela mental de quem ensina
e na tela fria de quem me fita
Sou sonho
Sou consequência
Sou nada…
Sou tudo, dentro da possibilidade que não me sei capaz
Sou prazerosa, pesada e espremida no cotidiano gasto
Sou matutina, vespertina, noturnal e até acordo na madrugada das noites desses tempos
Sou palavras soltas que voam circulando, penetrando, incomodando os de casa
e quem nem em casa está
Estou colada, junto como uma criança que não tem seu apelo respondido
E como o desejo da carne no cume das paixões juvenis
Não, não trago paz enquanto não me cumprires
Grito dentro do oco da moleira por atenção
Necessito sair daquele que tem o saber
e cair, feita, no papel em branco daquele que tem a ânsia de um aprendiz
Preciso nascer, encantar, incomodar tombando em alheios lares
e durar, eternamente, nos olhos surpreendidos que possam pousar sobre mim.

 

ÁRVORE

 

Jose B C Andrade

 

Sou uma árvore,
não almejo outro destino

Os humanos me chamam
Ipê, até sobrenome me deram
Ipê Rosa

Minhas parentas da cidade
quase não mais existem

Na minha rua
só tem árvore nua
Podaram-nas

Outro dia
vieram homens
a mando de não sei quem
a pretexto de uma
tal calçada cidadã
Imagina
uma calçada cidadã

Não fossem as boas almas
eu estaria em cinzas
num forno qualquer

 

POEMINHA INSONE

 

Júlia Torres Dias

 

Verbos delirados, palavras enluaradas, sentidos caducados.
Um poema à noite acontece, um poema me anoitece.
Sorrateiro, vem noturno, no escuro.
Deve ser para não bagunçar a rotina.
Deve ser quando a casca do sono é fina.
Deve ser quando as razões descansam.
Deve ser quando as letrinhas dançam.
Bailantes, desejantes
Embalo-me como puder, não as ponho a calar.
(Des)articuladas, querem circular!

 

O DIZER DAS COISAS QUE ACONTECEM NA FOTOGRAFIA

 

Katia Marchese

 

aqui mosquitos
rondam mariscos abertos,
a flor de sal derrete as flores do abricó,
a ventania move a areia,
alguns lugares desaparecem.

aqui um leão marinho triste
morreu de isquemia,
as garças devoram os peixes
que ninguém quer levar,
não há cemitérios.

aqui a ponta da praia
se curva ao estuário,
todos os dias dragam
o escuro canal das águas
e não sabemos para onde vai a areia.

aqui o emissário submarino
ergue Tomie Ohtake
na gigante onda suspensa,
enquanto o esgoto subterrâneo
corre quatro quilômetros e jorra no mar.

 

A MAÇÃ

 

Lara Pinheiro

 

Na opacidade da meia-luz que espraia um flamejar indireto, ela rebrilha, rubra e sem mácula. Roliça e sadia acomoda-se no fundo branco do recipiente que a abriga.

O umbigo atravessa-lhe a forma. Exibe, de um lado, um pedúnculo arroxeado que nas origens a susteve em devir; de outro, pequenas franjas crespas enfeitam a cava plissada, à moda d’um arremate, que a compõe em plena maturação.

À vista oferece uma face impermeável, qual natureza que não se deixa entrever. Da lisura de sua superfície emana um odor suavemente adocicado que, inalado em profusão, lança-nos em leve estado de embriaguez.

Rompido o invólucro com a voracidade dos caninos, ela se rende crepitante, expondo a alvura de sua polpa agridoce e um resto fluido que se derrama dos limites da boca.

 

CONVERSA AFIADA

 

Lilian Aquino

 

Acredito que haja
preguiça, esse desmazelo
essa ausência de corte
Olho sem discrição
e digo que belo
está seu cabelo
Ela o ajeita atrás
da orelha, não desgruda
aquele sorriso
Olho sem discrição
sua mãozinha levada
até o botão do sexto
andar. Mulher assim
sempre cortês – ela diz
obrigada, Marlene –
em dissimulada simpatia
só podia mesmo
não ter aliança
no dedo.

 

SIGNIFICADO

 

Lilian Sais

 

escrever um poema
como uma performance
de john cage

sentar ao piano
e apenas
sentar ao piano

 

DESCANSO

 

Lívia Moreti Mota

 

copo de vidro vazio transparente na mesa de cabeceira
o que tinha no copo antes da sua rebeldia
em não servir de nada?
um copo sem água,
sem vinho,
sem vida
um copo pelado
que não
me diz nada
um corpo pelado
já me faz
descarado
copo de vidro
vazio
ali parado
depósito de pó
suporte
para escova
um copo vazio
até na
identidade
copo de vidro
trincado
quer descanso, deito meu corpo.

 

CONTRaÇÕES

 

Márcio Silva

 

Desde antes de eu nascer
ondas de ultrassom já denunciavam:
Eu não tenho útero!
Por muito tempo acreditei nisso.
Piamente
Cresci.
Brincando com carrinhos, jogando futebol, empinando pipas.
Hoje não mais
Por algum motivo isso me faz lembrar Clarice
Mulher amputada de sua terceira perna
Outro dia Angélica Freitas disse: ‘um útero é do tamanho de um punho’
Então é isso! Pensei
O útero é do tamanho do punho que
Fechado, é do tamanho do coração
Eis que entre sístoles e diástoles
Sob pressão de 120 por 80 ou mais
Sinto fortes dores
Como se esmurracem meu útero
Como se quisessem na marra
Fazer-me abortar tudo que venho gestando
As contrAções são inevitáveis
Escrevo!
Nascem poemas

 

A TAMPA DO RALO DO TANQUE

 

Maria Alice Zocchio

 

Escolho uma – como num sorteio de cupom premiado – no compartimento de tampas da megaloja da construção. Iria a um armarinho se fosse um botão. Não há autosserviço para botões, é o que sei. Não conheço compartimentos de botões avulsos e nem os mega-armarinhos.  A tampa é sem cor, neutra, medida em polegadas. Tem de se ajustar. Servir. Não decora ou combina como um botão. Na área de serviço, a tampa, escolhida nas tantas, cria identidade e ingressa no mundo do trabalho. Auxiliar de armazenamento. Função: impedir que a água fuja. Trabalha o resto da vida na A S e leva de cem a quinhentos anos para morrer. Tanto tempo e nem conhece as outras da mesma espécie nos outros ambientes. As tampas de lavatório e a da pia da cozinha. A da cozinha tem sofisticação. Tampa de válvula com filtro para os resíduos raspados dos pratos. Do almoço e do jantar.  O tanque não se sofisticou, talvez as roupas, estas sim. Os tanques vão perdendo o lugar engolidos pelas lavadoras. Sem tanque, sem tampa. Sempre que necessária nunca está à mão. Escondida na escuridão, na poeira ou umidade.  No cesto de roupas, entre prendedores, atrás da máquina de lavar, sob a máquina de lavar. Tão sumida que acaba reposta. Outra escolhida ao acaso na megaloja da construção ou no depósito da esquina. Cria limo ou resseca. Fica diferente das injetadas em série expostas no compartimento de tampas. Um limo próprio, um racho único. Identidade que pouco importa se já há outra no seu lugar também para se perder. Há quem as prenda por fios, barbantes, correntes como animais. Ferozes ou domésticos. Assim não fogem. As que fogem reaparecem nos dias de limpeza quando se afastam as coisas. Permanecem nas casas de quem se muda. Ficam de herança ao novo morador.

 

OS DIAS ENTRAM E SAEM, COM A LUZ E O ESCURO

 

Mariana Correia Santos

 

os dias entram e saem, com a luz e o escuro, mas ela sempre está aqui. não é como antes. costumava sair por algumas horas após o amanhecer, causando atrito e som até lá embaixo. ouço tudo, são muitos os tremores. e após escurecer, esfriar, ela chegava, mais lenta, e menores eram os sons e os toques. agora ela não vai a lugar algum – admito que nunca estive tão completa.

ela é negligente, parece não perceber que estou manchada pelas patas do gato. gosta das linhas horizontais, mas quando está sobre os pés, usa sempre meias quentes contra mim. não me sinto ofendida, a temperatura não é do meu controle. faço o possível. nas verticais, ela gosta de pendurar quadros que abrigam pessoas como ela, e ela as observa todos os dias ao acordar. e assobia vento pela fresta como a janela, sempre, e depois retorna para um pouco mais com pasta e escova para os dentes. hoje, foi diferente, fez calor, o assoalho de pranchas de madeira expandiu, rangeu nas fissuras, em alguns lugares sob as janelas. ela esteve fora e, como sabia bem, logo voltou mal esfriaram os passos. eu entendo, em dias quentes também escolho expandir alguns limites. mas é sempre importante observar as fissuras. vigiar o tempo nas fissuras, se estão sendo cuidadas. as mãos e os reparos que vêm das mãos são necessários. não posso ser abandonada, abandonada perco as arestas, e surgem os bichos, o mofo, envelheço. como ela. que está sempre só, para quem chegam alguns e algumas, que ficam pouco – e não me fazem de abrigo. mas sempre me mancham, isso fazem de primeiro, e as manchas ficam para sempre, não importam as demãos, porque demão após demão, insistentemente, vou me tornando dura, espessa, me ocupam as rachaduras, e nos cantos me despedaço com o tempo. este é o problema de não ser ocupada em permanência, não sou de ninguém, realmente. dependendo da sorte, me dormem e acordam aqui alguns com alguma atenção ao que sou por inteiro – mas então, querem me mudar, fazer melhorias, colocar abaixo algumas vigas, reparos de intrusos. me mantenho firme. não há alternativas: até que me esqueçam por completo, que me botem abaixo, para estas vigas ruir não é uma opção. minha falha talvez seja de estrutura, observo, algo na disposição dos espaços. talvez eu não seja mesmo feita para a permanência, para abrigar, ser tomada, ocupada por completo. tenho partes tão quentes, no entanto. e é verdade que não me ofendem as meias. seria um problema ser sempre quente. veja, sempre acolhedora, sem que importem os que chegam. é assim que me vêm as brocas, que me quebram calhas, que canos me vazam litros ao chão. tenho que fazer como ela, talvez? me bastar os contornos e as coisas que me são próprias, sem os adereços e aqueles para quem criar interesse, admiração, acolhimento, ecoar: vem. fique. mas como fazer, afinal? ela parece inerentemente só. talvez alguns sejam feitos para abrigar, sem que o tempo precise ser uma questão. outros, não.

 

A INVENÇÃO DA SOLIDÃO

 

Mariana Moreira de Menezes

 

Molhei minhas plantas
Abracei meu cachorro
Morei dentro de mim
Desfiz nós, criei laços

Me perdi nas páginas de livros
Chorei até perder o fôlego
Com histórias repetidas
E filmes clichês

Troquei nudes e afetos
Descobri novos prazeres
Na falta do (a)mar
Mergulhei em mim

Abandonei sutiãs
Deixei o cabelo crescer
Pintei as unhas aos domingos

Fitei as mesmas paredes
Voltei para a terapia
Desconheci limites

A vida é boa
O mundo, nem tanto

 

EXAUSTOR

 

Michaela v. Schmaedel

 

Cansei da casa
dos objetos mortos
da natureza morta
da fruteira
da cadeira abatida
da plantinha sufocada
no canto da sala.

Sei desenhar uma casa,
António Pina,
mas cansei dela

do relógio na parede
do sol batendo na quina
da máquina de escrever
estática
de fazer poesia
da clausura.

Passo os dias com
Tolentino Mendonça
martelando as paredes

não somos a casa
somos a montanha
e o relento

e fico repetindo
não somos a casa
não somos a casa

não somos este liquidificador
que já não funciona mais

não somos esta vida internada.

 

QUEIJO QUENTE

 

Natália Moreti Mota

 

na cozinha, ela prefere o queijo quente
sinto o rastro do aroma que ela deixa
quando corre para encontrar a frigideira
na cozinha, ela queima
pipoca
por dentro
na pressa de ir viver
esquece o fogo ligado
bate a vitamina como quem diz
a vida é shot
para esquentar a garganta
na cozinha, ela derruba
tampa e Tupperware
xinga a gravidade
de um jeito que levanta
meu sorriso no canto da boca
na cozinha, eu não vejo a hora
de ela correr para fazer
o queijo quente derreter

 

*

 

Paula Silva

 

será que está fazendo um tratamento de
pele
com um daqueles produtos que não permitem
exposição ao sol
e por isso ela nunca aparece
ela podia inclusive comprar um chapéu
com proteção uv
se já tiver foi a jadlog que entregou
ou pode ser só por causa do distanciamento
social
de repente ela pegou corona
mas antes já não descia pra
buscar as encomendas
a mãe riu e disse
essa menina não para de comprar
outro dia eu vi na caixa
united states
e também já vi escrito
made in china

 

POEMA DE QUARENTENA

 

Rebeca Bulcão

 

portas fechadas e paredes frias
isolam mais que o pensamento
não necessito de espaço
são meus o quarto e a sala
nem preciso de tempo
tenho as noites e os dias

com o peito apertado
sem ar em alguns momentos
salto para um mergulho
num poço sem água
às vezes, prendo a respiração
para o mundo respirar

o coração pequeno
como um grão de areia
ou uma gota d’água
que sem trégua o universo
se encarrega e arrasta

no sono sobressaltado
vejo pesadelos acordada
enquanto despertam,
à espera de afeto,
lembranças silenciosas
e expectativas órfãs

os marejados olhos
navegam sem avisos
sequer enganam
não remansam no horizonte
nem encontram o cais
só descansam ao
naufragarem em alto mar.

 

BAUDELAIRE-IN-ME

 

Regina Dias

 

Me faço vidro quando do vinho me aqueço
perguntando solene aonde meu copo se foi –
talvez nesses ventos rasantes que desqualificam minha fala,
essa primeira pessoa, Regina,
rainha das batatas de Machado, sonolenta e boêmia –
aquela que gosta mais de cães do que de gatos.
Manjedoura iluminada no teto de meu quarto –
vou deixar tantos filhos a me espreitarem no dia final –
chorarão, meio Nelson Cavaquinho, tiro meu sorriso do caminho –
maldito ego não desprende como Eduardo Primeiro quer…
farei mais análise, assim ela desorganizaria
esse conjuntinho em Ban-Lon que agarrou na alma –
sou junk mesmo! mas me falta coragem. Mamãe, Coragem.
Gorki, Ionesco, dantesco.
ID… ajuda, mergulha, deixe faltar o ar ah! Meus pneus estão arriados –
quero contornar o lado zen, mas de carro com música e ar-condicionado…
acho que me arrependi de tudo que desenhei aqui
porque não é texto, é linha, desenho, flash contínuo.
Desnuda eu – essa sempre amarrada ao cais.
Verei se sonho, me bebo, se Baudelaire-in-me.

 

NO ADENTRAR DAS LETRAS

 

Rosa Gonçalves

 

Noite passada, sonhei com letras
todas elas ocupavam o meu ser
sem pudor e simultaneamente
sufocavam minha respiração.

Sem saída, resolvi mergulhar,
na ebulição das letras em versos,
para assim renovar meu repertório
de poetas, de poemas, de poeticidade.

Quando acordei, meu corpo marcado
por Pessoa, Adília, Buarque, Lispector…
Subi na Bicicleta de Herberto Helder
pedalei, derrapei, por fim, maguei…

Descobri, então, como entrar
e sair das escritas poéticas
com vozes entrelaçadas,
mescladas nas minhas.

 

COPYRIGHT

 

Thiago Lucali

 

Há tempos pedi por um sinal,
uma marca própria
com a minha digital.

Que identificasse a senha de toda função,
o traço em contusão que contorna
a cicatriz indelével das nossas ocupações.

Um ferimento ambíguo,
o mesmo que frisa e impulsiona.
(o salto dos dedos nas fibras tensas
de nossas criações)

Para que eu pudesse conhecer
o grifo das coisas, para distingui-las de outras,
para espreitar a sina das loterias
e dos autores contemplados.

 

EPIFANIA

 

Vera Milanese

 

e, de repente, um menino Deus
brinca solto na minha cabeça
em casa, corre pra me pegar

sorrindo, esse menino me ensina a viver
sorrindo, esse menino me manda amar

de repente, um menino Deus me ensina

e eu, em reverência, me curvo
e dou um beijo estalado
no meu menino Deus 

 

VORAGEM DE FIM DE INVERNO

 

Victor Brum Calaça

 

Tua boca se derrete festa em mim
feito o sabor da canção perdida
que ouvimos pela primeira vez
Teu abraço é ventre de águas salgadas
de onde nascem setenta viagens
sob um céu vermelho de terror e vertigem
uivando maresias, crepitando delícias
Tudo em promessas de Helena
àquele náufrago que de tanto procurar
inaugura uma Guerra de Troia dentro de si


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