Llanto por Mariana Pineda y otros muertos ilustres
Atores em cena de “Cantata para um Bastidor de Utopias”, da Cia do Tijolo
“El teatro es una escuela de llanto y de risa y una tribuna libre donde los hombres pueden poner en evidencia morales viejas o equivocadas y explicar con ejemplos vivos normas eternas del corazón y el sentimiento del hombre.”
Federico García Lorca, Charla sobre teatro
Federico García Lorca terminou de escrever Mariana Pineda em janeiro de 1925, mas a obra somente seria encenada um pouco mais tarde, por iniciativa da atriz Margarita Xirgu, que estreou, no dia 24 de junho de 1927, em Barcelona, uma montagem do texto cuja ambientação cenográfica esteve a cargo de Salvador Dalí. Não era uma peça de vanguarda, como La zapatera prodigiosa ou Amor de don Perlimplín. Ao contrário, nela Lorca parecia querer adotar o cânone do drama histórico, cortejando um teatro de viés mais comercial que, se por um lado, frustrava o apetite que o poeta e dramaturgo andaluz vinha cultivando pela experimentação; por outro, atribuía a ele a imagem de um autor sério, o que naquele momento era bem-visto e esperado por sua família.
Única peça da maturidade artística de Lorca composta integralmente em versos, Mariana Pineda priva dos mesmos elementos musicais, plásticos e coreográficos que caracterizam a riquíssima teatralidade presente nas outras onze obras para teatro que ele escreveu. Ao recusar a prosa, o dramaturgo refuta também o naturalismo linguístico que não lhe permitiria exercitar a série de metáforas, alusões, hipérboles, ironias e outros recursos conotativos por meio dos quais seu simbolismo sui generis – hoje já chamado de lorquiano – invade a cena. A linguagem vazada em versos relaciona-se não somente com as canções, em caráter estrito, como também com o halo da musicalidade que exala do texto de modo geral, evocando, por sua vez, uma gestualidade de acento tão particular. Não estamos longe do conceito de espetáculo total; tampouco deixamos de nos lembrar do teatro de Lope, Calderón e Valle-Inclán.
Partindo desse espécime dramatúrgico singular, a Cia. do Tijolo concebeu a experiência cênica Cantata para um bastidor de utopias, que vem cumprindo intermitentemente na capital paulistana uma bem-sucedida temporada desde agosto de 2013 e agora ocupa o Teatro da Universidade de São Paulo (TUSP), cujo edifício está impregnado de uma memória histórica e artística com a qual, dentre outras referências, a montagem também deseja se relacionar. A esse propósito, vale destacar os dois motes que parecem ter guiado o grupo na condução da empreitada: o conhecimento da História não como ideia geral e sim como recordação de fatos específicos e o reconhecimento da Arte como um terreno de cultivo especial em que se regam sementes de natureza estética a fim de que sejam colhidos frutos e flores de envergadura ética.
O espetáculo, a rigor, versa sobre a relação do teatro contemporâneo com o tratamento de alguns valores políticos e culturais incontornáveis, provando que, talvez, mais do que venha ocorrendo em outras áreas de criação artística, sejam os encenadores, dramaturgos, atores, cenógrafos, figurinistas… No Brasil os artistas que melhor têm explorado as forças catalizadoras da vida em sociedade, devolvendo à arte da cena uma capacidade que há bem pouco tempo parecia fora de moda: a de fazer parte da trama viva da cultura brasileira, conforme postula o professor Alfredo Bosi em Literatura e resistência. Assim é que Federico García Lorca está aqui acompanhado pela poesia de Carlos Drummond de Andrade, Pablo Neruda e Giovani Baffô; pela música de Paulinho da Viola; pelo cinema de Eduardo Coutinho e ainda por uma série de outras fontes textuais: Eduardo Galeano, Frei Betto, Maurício Pereira, Luiz Eurico Tejera Lisboa e Carlos Lamarca. Como se vê, o caixilho de madeira em que a Cia. do Tijolo prendeu e esticou o tecido sobre o qual quer bordar suas utopias é tão vasto e acolhedor quanto a liberdade que a bandeira ornada pela heroína de Lorca deseja representar.
Quatro ao menos são as camadas históricas que esta Cantata revolve e diligentemente mistura em um terreno único, preparado pelo arado da inventividade artística. Há a personagem real convertida em figura dramática Mariana Pineda, a jovem heroína da cidade de Granada que viveu no início do século XIX e se insurgiu contra o absolutismo de Don Fernando VII, sendo condenada à morte por traição à monarquia espanhola. Há também o poeta Federico García Lorca, igualmente granadino, executado pelas forças anti-republicanas espanholas em sua cidade natal na madrugada de 17 ou 18 de agosto de 1936, em virtude de suas posições políticas de esquerda. Há ainda três brasileiros mortos pelo regime militar que vigorou no país de 1964 a 1985: o operário Manoel Fiel Filho (1927-1976), a diretora de teatro Heleny Guariba (1941-1971) e a militante Iara Iavelberg (1944-1971). Por fim, há os próprios atores da Cia. do Tijolo, que de tempos em tempos abandonam a esfera da ficcionalidade e se dirigem aos espectadores a partir da perspectiva da auto-exposição de sonhos e perplexidades.
Ao evocar o passado longínquo da Espanha, cindido em dois tempos – cada qual produzindo um morto ilustre, Mariana e Federico –, e o passado recente do Brasil, que igualmente produziu cadáveres cuja memória precisa ser preservada, o espetáculo trata de feridas concretas, acreditando na verdade dos fatos e dela extraindo uma emoção muito genuína, disposta a converter a imagem sombria da violência em uma forma luminosa de resistência. Em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, em 2008, o historiador francês Paul Veyne declarou que o filósofo Michel Foucault revolucionou a história justamente por não acreditar em nenhuma ideia geral, mas na verdade das ocorrências concretas: “O que nos faz sofrer, o que nos causa indignação, isso existe. Por outro lado, o sentido da história, a vocação da humanidade, o universalismo… Todas as grandes ideias não são realidades. Auschwitz é um fato, assim como a inocência de Dreyfus. Os crimes do stalinismo, o colonialismo, as alas de alta segurança nas prisões, o tratamento infligido aos loucos pelo sistema de asilos são fatos. Foucault não somente crê neles como os combate”.
O modo do enfrentamento desses fatos de triste memória proposto, então, pela Cia. do Tijolo se dá por meio do entrelaçamento das esferas estética e ética. Os jovens artistas do grupo pranteiam todos os mortos que surgem em cena e reagem com indignação ao seu brutal desaparecimento, mas não o fazem pelo viés da denúncia sombria, sinistra, angustiada, que se deixa entrever na matriz lorquiana (“Observou-se bem que García Lorca é um poeta noturno, e que o sangue exerce sobre ele uma espécie de obsessão”, afirma Otto Maria Carpeaux). É da alegria e da força vital extraídas do ponto de vista tão luminoso que o grupo tem sobre o teatro e a música – ambas as artes sustentadas, aqui, por um aspecto coral de energia contagiante – que a encenação se deixa impregnar o tempo todo. Ao se lembrar do passado e o relacionar ao presente, a Cia. do Tijolo dá luz a uma forma libertadora de resistência, que ata artistas e público ao mesmo contexto existencial e histórico, movimento este que alcança o máximo de tensão dialética no momento em que o espetáculo interrompe sua trama ficcional para convidar uma personalidade do mundo da política ou das artes a dar seu depoimento pessoal a respeito da ditadura militar. Aqui, o teatro vai ao encontro da vida real, celebrada – em torno da solidária liturgia do pão e do vinho – como nada menos do que a verdadeira vida.
Há que se destacar o belo trabalho vocal e corporal de todos os atores e músicos envolvidos da montagem. É muito raro encontrar um grupo que mantenha uma média assim tão alta de qualidade técnica e artística. Lilian de Lima é uma Mariana trágica, comovente, retesada no corpo e na alma. Rodrigo Mercadante imprime a Lorca uma empatia e uma aura de dignidade absolutamente convincentes, naturais, sem soarem por demais naturalistas. Rogério Tarifa (que divide a direção geral com Mercadante) é um mestre de cerimônias tangido o tempo todo por uma emoção à flor da pele, que descobre a voragem dos sentimentos no exato momento em que eles se transformam em palavras. Karen Menatti faz uma Iara Iavelberg eloquente, vivaz, emocionante. De outro tipo de loquacidade é a Heleny Guariba defendida por Fabiana Vasconcelos Barbosa, discreta em sua máscara facial, mas não menos contundente nas emoções que quer comunicar. Dinho Lima Flor encarna um Manoel Fiel Filho cuja humildade infunde alegre nobreza. Trata-se de um ator que explora muito bem os recursos de sua briosa “nordestinidade”. O menino encarnado por Thais Pimpão é um verdadeiro achado em sua espontânea comicidade, lúdica e ladina. A presença dos músicos Aloisio Oliver, Jonathan Silva (responsável pelas composições inéditas), Mauricio Damasceno e Thiago França está plenamente incorporada à dinâmica cênica e contribui de modo muito expressivo para o cromatismo geral. (Convém evidenciar a direção musical, a cargo de William Guedes). O cenário de Rogério Tarifa e os figurinos de Silvana Marcondes extraem dos materiais utilizados a alma mágica das alfaias brasileiras, disfarçadas de andaluzas. A iluminação de Alessandra Domingues vibra no mesmo tom da dramaticidade da ação, intercalada de tempos em tempos pela enunciação de natureza épica.
A esse respeito, vale evocar, à guisa de conclusão, a análise que Miguel Garcia Posada faz no prólogo que escreveu em 2004 para a edição espanhola do teatro completo de Lorca: “La inteligencia del poeta evitó el tratamiento político de la protagonista para acercarse a ella como a una víctima del amor, ‘Julieta sin Romeo’ la llamó. Mariana muere por amor a don Pedro de Sotomayor, no por sus ideas políticas: ‘Yo soy la Libertad porque el amor lo quiso!’, exclamará dirigiéndose al sacrificio. Es heroína ya muy lorquiana, ‘mujer pasional hasta sus propios polos, una posesa, un caso de amor magnifico de andaluza en un ambiente extremamente político’, agregaba él”.
Distanciando-se igualmente da eloquência doutrinária, Cantata para um bastidor de utopias extrai toda sua força do modo muito particular como reverencia o romance popular espanhol e o lirismo de Garcia Lorca, fundidos em uma vibrante forma épica à brasileira – esgarçada, mas resistente, tal como a camisa colorida com que diariamente cobrimos nossa dor.
Cantata para um Bastidor de Utopias
Onde: Teatro da USP (Rua Maria Antônia, 294, Consolação – São Paulo)
Quando: até 22 de junho de 2015; sextas, sábados e segundas às 19h30 e domingos às 18h30
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$10 (meia)
Info: www.usp.br/tusp ou (11) 3123-5233