Linguagem literária e vida sociocultural

Linguagem literária e vida sociocultural
Graciliano na livraria José Olympio, Rio de Janeiro, 1942 (Foto KURT KLAGSBRUNN / Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F01-001)

 

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.
Carlos de Oliveira, in Mãe po

Carlos de Oliveira, escritor neorrealista português que nos serve de epígrafe, foi um assíduo leitor de Graciliano Ramos. Em seus versos, ele se insere – como o escritor brasileiro – na perspectiva do artista em cujas produções a ênfase sociocultural se associa estreitamente com o trabalho estético sobre a linguagem. De um ângulo subjetivo, ao liberar o processo criativo, Graciliano Ramos descarta apriorismos de forma/conteúdo, procurando ter um máximo de consciência dos mecanismos de funcionamento da linguagem literária. Essa atitude, entendida como articulações, cria hábitos, que interagem com as múltiplas convenções da vida sociocultural.

Há, nessa práxis artística de Graciliano Ramos, a ideia de que a consciência da realidade (referencial ou literária) depende das conexões do objeto (fatos representados ou o próprio texto) com um sistema mais amplo de conexões, que se articulam, por sua vez, com as tensões da vida social. Com o procedimento, a escrita de Graciliano procura transformar-se em um fato social ativo pelo desempenho de uma dupla função histórica: por um lado, através da práxis e da metalinguagem dos narradores, essa escrita define a si mesma; por outro, contribui para o processo do conhecimento sociocultural, definição da totalidade social, presente em sua escrita não apenas como representação referencial, mas como formas articulatórias capazes de entrar em tensão com as articulações culturais de seus leitores. Pela práxis, entendida assim não como prática, mas como movimento que vai do sujeito para o objeto e, deste, com impactos no sujeito, estabelece-se uma dinâmica que provoca criticidade no leitor.

Graciliano Ramos rompe com a redução da subjetividade individual e coletiva que as imobiliza ao campo do objeto de referência, tal como foi entendido pelo realismo oitocentista e que se projetou no século 20. O seu sentido de representação objetiva pressupõe a participação ativa do sujeito em suas interações com as articulações socioculturais de sua situação histórica.

Concretude, objetividade, assim, não são conceitos que se reduzem ao objeto, expulsando o sujeito, como ocorreu com o modo de pensar a realidade afinada com o “velho” realismo. Graciliano não se coloca, por outro lado, na perspectiva neorromântica de absolutizar o sujeito, quando poderíamos ter processos de esfumaçamentos da realidade referencial. Ao contrário, procura construir uma escrita que pressupõe a interação contrastante entre dados subjetivos e objetivos, que se concretizam nas redes de articulação do texto.

Graciliano Ramos tensiona reflexivamente, em suas personae narradoras, níveis de consciência da enunciação (que traz marcas do próprio autor implícito no texto) e do sujeito do enunciado (personagem narradora), mostrando muitas vezes a consciência problemática dessas interconexões. Sua estratégia artística provoca impactos nos leitores, para que estes se conscientizem de emparedamentos que também são seus. Para tanto, os níveis de consciência dessas personae oscilam entre formulações da consciência “real” de suas personagens, em relação de homologia com as vividas muitas vezes por seus leitores, e os níveis mais amplos de consciência da situação histórico-social, possíveis de serem discernidos, para nos valer dessas categorizações de Lucien Goldmann. Como as personagens mostram-se alienadas desse sentido de totalização que envolve as articulações provenientes da enunciação, a dialética da dinâmica enunciativa evita, por exemplo, uma apreensão da realidade de “falsa consciência” (sentido mais usual do conceito de ideologia), como em Luís da Silva, personagem-narrador de Angústia.

O processo de efetivo conhecimento desse narrador-personagem do que seria o objeto focalizado (a personagem Marina, por exemplo), através de atributos físicos e psicológicos, não é possível apenas pela visão fragmentada da personagem ou pela simples somatória das partes no todo (“os pedaços não combinavam bem; davam-me a impressão de que a vizinha estava desconjuntada”), mas pela experimentação do objeto em sua função de “máquina”. Ainda assim a visão de Luís da Silva continua reduzida, sem a percepção do sentido de totalização que envolveria outras atribuições socioculturais. Via-a, ainda de forma reduzida, como “máquina”, um objeto que se circunscreve reduzidamente a sua função sexual.

Luís da Silva está alienado de si mesmo e transfere a sua visão reduzida para o objeto, uma mercadoria a ser consumida. Enquadra-se, sob este aspecto, na alienação social, que segue as convenções sociais dominantes, que preceituam valores a partir da valia de uso. Desconsiderou a personagem, entretanto, o fato de que, em sua perspectiva, Marina impregnou-se de atributos afetivos. Essa contradição na apreensão do objeto será intensificada posteriormente, quando Marina (como um produto sujeito às regras do mercado) lhe será alienada pelo poder de “compra” de Julião Tavares.

Graciliano e a mulher, Heloísa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-025)
Graciliano e a mulher, Heloísa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, 1949 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F13-025)

Marina e Julião Tavares estão submetidos aos estereótipos culturais (hábitos) que estabelecem uma ponte comunicativa entre eles: gestos, vestuário, literatura, oratória. Luís da Silva tentou encantá-la imitando formas de impacto desses ritos convencionais, mas não possuía o poder maior que os enformava (dinheiro). Julião Tavares, ao contrário, é o símbolo desse poder e daí apropriar-se de sua mercadoria. Trata-se de um modelo de articulação simétrico ao que ocorre de maneira hegemônica em múltiplos campos da atividade social, em que toda forma de trabalho (físico, intelectual) é compelida para a sua transformação em mercadoria.

Formam-se então nos campos de atividades humanas dos romances de Graciliano Ramos inter-relações hegemônicas que envolvem os objetos, uma rede opressiva que reproduz as convenções dominantes, que procura subordinar a si as demais, que vêm da experiência sociocultural. Qual a solução? Para Luís da Silva foi o assassinato de Julião Tavares, símbolo do agente da opressão. A solução individual, para a enunciação, não resolve o problema: Luís da Silva não se desvincula dos valores do conjunto social, mesmo nos momentos de grande emoção. O ato de paixão, isto é, sem o controle da razão, levou-o a um delírio anárquico, rejeitado pela ânsia de rigor e ordem de Graciliano Ramos.

No nível da escrita de Angústia, quais seriam as homologias? Na desagregação da linguagem de Luís da Silva, nos momentos de delírio? A linguagem, como os fatos culturais, articula-se também em uma “rede” condicionadora não apenas da seleção vocabular, mas sobretudo da combinação sintática. Ela está associada de forma genética e estrutural com a situação social que a produziu, reproduzindo, por sua vez, congeminações ideológicas, dominantes ou não. É igualmente um campo de tensões. A ruptura passional da personagem narradora desse romance, de motivação psicossocial, vai ser registrada, então, através de uma acumulação de palavras em que não ocorrem hierarquizações de imagens. À desagregação psicossocial da personagem corresponde uma correlata desagregação de lógica discursiva.

A situação de Luís da Silva, nesse momento, aproxima-se da anomia: os hábitos sociais parecem ter perdido sua força reguladora, mas estes padrões estão presentes, tensionando interiormente a personagem. Não ocorre uma ruptura total pelo controle da enunciação que explica a projeção das imagens, como a evitar uma ruptura total com o discurso lógico. A personagem continua a aceitar os valores dominantes do conjunto social: sua visão reduzida permite-lhe apenas a observação de dados particulares. Falta-lhe uma visão mais totalizadora que lhe propicie a determinação para optar, por exemplo e segundo a enunciação, pela escrita de um romance. Isto é, para construir novas articulações valendo-se dos escombros das velhas. Mas era muito para o burocrata Luís da Silva: preferiu libertar-se da prisão referencial para prender-se a uma cadeia sociológica mais sutil, onde continuaria a escrever artigos jornalísticos sob encomenda.

Interessante a se destacar é o tópico da cadeia que ocorre no conjunto da obra de Graciliano Ramos. Para ele, os confinamentos/aprisionamentos do sujeito (dimensão individual e coletiva) não se limitam aos emparedamentos dos hábitos convencionais. Constituem também uma condição necessária para o exercício da atividade de escritor. Um horizonte mais amplo, que não se limita, pois, à particularidade de Luís da Silva.

A situação narrativa de Luís da Silva é similar à de outras personagens dos romances de Graciliano Ramos que vivenciam estados passageiros de anomia. Em Caetés, João Valério perturba-se pela paixão amorosa. Poderia ter outra paixão: escrever um livro, mas pondera que isso não ficaria bem em um comerciante. De mediador artístico comprometido com a verdade (condição da verdadeira literatura, de acordo com a enunciação), desloca-se para mediador de mercadorias, isto é, produtos sociais que sofreram o processo de alienação, em face das inter-relações estruturais que os subordinam.

A vinculação sociológica do alheamento psicológico torna-se mais enfática em S. Bernardo: a paixão de Paulo Honório por Madalena pode ser comutada pela paixão pela fazenda. Sua visão reduzida, que tudo subordina à ótica de uma espécie de “capitalismo selvagem” (Florestan Fernandes teorizaria uma década depois), segue a falsa consciência da redução correlata própria do seu pragmatismo. Paulo Honório, ao contrário das personagens protagonistas de Caetés e Angústia, conseguiu terminar o seu romance. Começou a escrevê-lo equivocadamente, pretendendo transformá-lo em uma mercadoria. A construção da narrativa de sua vida, em termos de autenticidade, exigia uma práxis mais de sentido totalizador e não aquela a que se habituara: a divisão social do trabalho, por meio da qual se apropriaria da produção alheia. As tensões provenientes de suas carências individuais compeliram-no a um processo de maior conscientização, através das interações contraditórias entre as vozes da personagem e do narrador-personagem, que problematizam sua vida/escrita.

Casa onde nasceu Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas, 1892 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-040)
Casa onde nasceu Graciliano, em Quebrangulo, Alagoas, 1892 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-040)
Prefeitura de Palmeiras dos Índios, 1960. Após uma série de reviravoltas, Graciliano elegeu-se prefeito do município interiorano, em 1927 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-020)
Prefeitura de Palmeiras dos Índios, 1960; após uma série de reviravoltas, Graciliano elegeu-se prefeito do município interiorano, em 1927 (Fundo Graciliano Ramos do Arquivo IEB/USP / GR-F11-020)

A alienação da escrita-realidade dos narradores dos romances de Graciliano Ramos percorre setores sociais típicos: o burguês fazendeiro, o burocrata e o comerciante citadinos. Em Vidas secas, Fabiano, personagem proletária, não consegue “apropriar-se” da linguagem. Ela lhe foi alienada pela adversidade econômico-social. A perspectiva de Fabiano é lutar para que ela seja restituída pelo menos a seus filhos. Dominar a linguagem, para essa personagem, é uma forma de capital simbólico e de poder social.

A linguagem, modelada pela práxis social, desempenha uma função cumulativa: ela traz na simbolização de suas formas o conhecimento “acumulado” pela humanidade. Reduzida a condições subumanas, os filhos de Fabiano (o Menino mais Velho e o Mais Novo: não aparecem com nomes próprios) colocam-se diante dos objetos como se estivessem no início desse processo histórico ainda impregnado de pensamento mágico.

O palavrório dos bacharéis em direito, por outro lado, é marcado criticamente em todos os romances de Graciliano Ramos. Corresponde a um registro de linguagem estereotipado e que encobre a realidade dos fatos vivos. Como Julião Tavares (Angústia), são invariavelmente “reacionários e católicos” e, ao escrever, têm “linguagem arrevesada, muitos adjetivos, pensamento nenhum”.

O catolicismo também está presente no conto “Um ladrão”, protagonizado por um indivíduo que vive na margem social e que busca, ironicamente, auxílio celeste para seu primeiro roubo à residência. No conto, Graciliano permeia a narrativa com a linguagem típica do mundo marginal, como o uso da expressão “caneta” (ferramenta para abrir fechaduras), respeitando o léxico dos indivíduos cujo universo procura retratar.

O sonho do protagonista do conto é tornar-se proprietário de um bar, em seu comércio não permitiria frequentadores do mundo marginal, apenas pessoas da ordem e da lei; dessa forma, a personagem não prevê a ausência de senhores e sim a necessidade de se tornar um deles; em conformidade com Eric Hobsbawm: “Nesse sentido, os bandidos sociais são reformadores e não revolucionários”. Como parte das personagens de Graciliano, o Ladrão finda na prisão, dessa vez concreta, mas antes já se podia notar seu aprisionamento, uma vez que seus sonhos eram modelados pela “falsa consciência” aqui já referida.

A ativação da linguagem dos romances de Graciliano Ramos pauta-se pela estratégia de desmascaramento, em nível do texto, das redes articulatórias cujos efeitos são a alienação do sujeito e do objeto. Esse método dos processos de efabulação atinge, de forma correlata, o leitor, implícito nesse trabalho prático de construção. Este leitor, implícito na própria codificação da narrativa, situado historicamente dentro das condições socioculturais brasileiras, identifica-se, por sua vez, com um leitor real, que deve trabalhar igualmente sobre o texto com consciência crítica. Graciliano Ramos não rejeita o código linguístico; ao contrário, procura vê-lo em processo de desenvolvimento, para aprofundá-lo. As transformações da linguagem são gradativas, pois as inovações dependem de um acordo social entre os falantes. Também sob esse aspecto a enunciação não se afasta da realidade. Ela parece suspeitar que uma violentação mais radical do código não teria efeitos sociais porque quebraria a cadeia comunicativa? Ou ele se vê, como nas Memórias do cárcere, preso inicialmente à gramática e depois noutra cadeia, a da polícia política?

As situações mais próximas da anomia ficam restritas, em seus romances, ao nível do enunciado, nos momentos de alta tensão das personagens. Ela não atinge a enunciação: Graciliano afasta-se dos excessos narrativos das formas dispostas para “Épater le bourgeois”. Talvez considerasse que aqueles que costumam gritar muito alto muitas vezes procuram encobrir os seus próprios escrúpulos.

Sua opção é por um compromisso com os objetos da realidade social. Procura vê-los como os da criação cultural, em especial a linguagem, num problemático e áspero processo de desenvolvimento, no momento histórico em que se efetiva a comunicação literária. Não procura recursos artísticos que poderiam ser interpretados como “modismos”, afeitos ao mundo das mercadorias, mas a efetiva busca do “novo”, isto é, aqueles procedimentos que sua práxis de escritor evidencia como eficazes para produzir efeitos controlados por sua consciência social.


Benjamin Abdala Junior é professor titular da USP, autor de Graciliano Ramos: Muros sociais e aberturas artísticas (Record, 2017)

Luzia Barros 
é doutora em Estudos Comparados pela USP


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