Limites intransponíveis ou inócuos traços de giz? Quatro ensaios de Lou Andreas-Salomé

Limites intransponíveis ou inócuos traços de giz? Quatro ensaios de Lou Andreas-Salomé
(Foto: Reprodução)

.

“Veremos, pois, se a grande maioria dos assim chamados ‘limites intransponíveis’, que o mundo delineia, não se revelem inócuos traços de giz”. A frase é de uma carta que Lou Andreas-Salomé endereça, em 1882, então com 21 anos, ao professor e mentor intelectual de sua juventude, o pastor Hendrik Gillot, que não só lhe tinha dado o nome que ela usaria como nome artístico (no lugar de Liôlia, a versão russa de Louise, para ele de difícil pronunciação), mas também confundido, como tantos outros depois dele, a proximidade intelectual e espiritual com outra espécie de proximidade que lhe seria pronta e redondamente negada.

Ante a altivez e autoconfiança e tendo em vista os limites que o mundo impunha às mulheres de sua época e que muitas vezes foram de fato transformados por Lou Andreas-Salomé em inócuos traços de giz, é ao mesmo tempo estranho e sintomático que se tenha tornado uma espécie de lugar comum descrevê-la, antes de mais nada, como amiga e musa de homens famosos, nomeadamente de Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke e Sigmund Freud. Nesse sentido, não é o menor dos méritos do livro que a editora Blucher acaba de lançar (Lou Andreas-Salomé, Sobre o tipo feminino e outros textos) relativizar essa imagem, indicando no prefácio seu papel como pioneira da modernidade, mas, principalmente, tornando sua obra mais conhecida entre o público leitor brasileiro.

Louise von Salomé nasceu em 12 de fevereiro de 1861, como sexta e única filha mulher de um pai com ascendência no protestantismo francês e de uma mãe de origem alemã e dinamarquesa. Até sua morte em 1937, levou uma vida extraordinariamente rica e variada, em que cruzou o caminho e cultivou relações com boa parte da nata artística e intelectual germanófona da época. Para além dos já mencionados Nietzsche, que conheceu em 1882, em Roma, Rilke, com quem cultivou não só um relacionamento amoroso mas também uma amizade posterior de 23 anos, e Freud, que seria seu principal ponto de referência intelectual depois de 1911, têm de ser lembrados pelo menos os nomes de Arthur Schnitzler, Frank Wedekind, Gerhart Hauptmann, Hugo von Hofmannsthal, Max Reinhardt e Thomas Mann. Isso sem falar de suas amizades femininas e do campo feminista como Frieda von Bülow, Ellen Key, Marie von Ebner-Eschenbach, Helene Klingenberg e Anna Freud.

No que refere à sua obra, Lou Andreas-Salomé escreveu, ao lado de uma centena e meia de ensaios, que versam predominantemente sobre temas filosóficos e psicanalíticos, também número considerável de narrativas de ficção, entre contos, novelas e meia dúzia de romances. Os seus estudos sobre a obra de Nietzsche ou as figuras femininas de Ibsen são respeitados até hoje pelos especialistas das respectivas áreas. E embora tivesse o pendor de destruir muitas das cartas recebidas, pedindo frequentemente a seus correspondentes que também rasgassem as suas missivas, a epistolografia que restou, por exemplo de suas correspondências com Rilke, Schnitzler e Freud, dá testemunho importantíssimo das discussões e da vida cultural e intelectual europeia do fim do século 19 até a Segunda Guerra Mundial.

O volume agora publicado pela editora Blucher reúne quatro de seus ensaios que gravitam no âmbito e em torno da psicanálise: “O erotismo” (1910), “Sobre o tipo feminino” (1914), “Anal e sexual” (1916) e “Psicossexualidade” (1917), tendo o segundo e o quarto sido traduzidos pela primeira vez para o português. Se perguntarmos por um fio de Ariadne que perpasse os quatro escritos, o encontramos num aspecto que sempre foi caro a Lou Andreas-Salomé: a discussão a respeito de um lugar hipotético ou mesmo mítico em que material, corporal, pulsional e objetivo não só se opõem e se relacionam com espiritual, anímico, psíquico e subjetivo, mas onde conviveriam ou se fundiriam na lembrança ou na reedição de uma unidade primeva. Por questões de espaço, ficaremos apenas com dois exemplos. Em “Anal e sexual” afirma-se sobre o olfato:

Porém, significativamente, apenas um de nossos sentidos consegue talvez tocar sutilmente os mais profundos e obscuros passados da unificação inconcebível: o olfato, o mais animalesco dos sentidos, ou seja, aquele mais negligenciado pela diferenciação humana — na verdade, nela totalmente involuído. Crescendo no solo do prazer anal até chegar ao seu significado erótico, ele atua posteriormente muito mais a serviço de seu significado oposto — como representante do nojo —; em seu lado positivo, no entanto, ele permanece como uma última lembrança que nos rodeia daquela mais primária unidade do mundo e do eu que se apresentava em termos erótico-anais e que, privada de sua bruta materialidade, ainda paira por toda a nossa vida, sobre tudo o que nos excita e que nos afeiçoa, como uma última sanção primordial.

Já no ensaio que dá título ao volume, Lou Andreas-Salomé diz sobre o feminino:

O feminino deve ser definido como aquilo que apenas com o dedo mindinho abarca já a mão inteira. Não no sentido de um contentamento ascético, muito pelo contrário […] [Trata-se de] compreender, da forma mais espiritualizada possível, o sentido espiritual do que foi vivido onde ele permanece mais fisicamente encoberto, mais psiquicamente inexplicável, e tornar assim a própria unidade básica mais segura possível, onde ela oscila da forma mais abismal. Em outras palavras: aqui o feminino (de fato, em si já paradoxalmente orientado) consegue seu segundo e mais profundo paradoxo: experienciar o mais vital como o mais sublimado. Podemos acreditar que essas espiritualização e idealização em sua arbitrariedade são induzidas na medida em que, segundo o ser uniformemente feminino, a expressão original do amor, em suas transferências, permanece a vida toda mais perceptivelmente presente do que para o homem — aquela fusão primeva com o todo onde nós repousamos antes de nos termos entregado a nós mesmos e antes de o mundo se abrir em concepções individuais diante de nós.

Para os interessados em psicanálise, o ensaio mais instigante talvez seja aquele sobre “O erotismo”, ainda que, estilisticamente, mais se afaste da famosa transparência cristalina freudiana. Embora anterior ao encontro de Lou Andreas-Salomé com a psicanálise, parece antecipar diversos aspectos que Freud formularia só anos mais tarde, por exemplo sobre o narcisismo, a rocha-mãe ou mesmo a pulsão de morte, um conceito pelo qual Lou, como tantos outros psicanalistas, nunca nutriu qualquer simpatia. Digo isso sem querer insinuar qualquer dívida real ou direta.

Trata-se antes de observar, por um lado, quão preparada aparentemente estava Lou Andreas-Salomé para encontrar, aos cinquenta anos, o movimento que seria doravante seu lar espiritual e intelectual e, por outro, sublinhar o aspecto algo óbvio, mas ainda assim tão frequentemente negligenciado, de que as grandes ideias da humanidade via de regra pairam por algum tempo no espírito de uma época antes que se cristalizem nas obras de alguma ou de algumas mentes geniais.

De resto, esse ensaio por assim dizer pré-psicanalítico sintetiza já a relação dialética que Lou Andreas-Salomé sempre manteria com a psicanálise e seu fundador: fidelidade absoluta, por um lado, e manutenção da autonomia e do distanciamento crítico, por outro. Foi assim logo de início, quando Lou continuou a seguir, com o consentimento de Freud, os seminários de Alfred Adler, num momento em que as divergências e a rivalidade entre ele e Freud já eram evidentes, posicionando-se, porém, logo depois, nas dissidências abertas de C. G. Jung e do próprio Adler, de forma inequívoca ao lado de Freud.

E foi assim ainda vinte anos depois, em 1931, quando em meio à homenagem e ao agradecimento públicos a Freud, por ocasião de seus 75 anos, reitera seu ceticismo para com a noção de pulsão de morte, além de observar que, a seu ver, um conceito de narcisismo plenamente desenvolvido teria tornado supérfluo aquele do Id, resumindo em seguida sua relação com o pai da psicanálise:

Nada me agrada mais do que andar na sua trela guiante – apenas tem de ser um trela bem comprida –, de maneira que, quando eu meter meu nariz em algum lugar demasiado longe, o senhor só tenha que recolhê-la, para que eu volte a pisar, bem ao seu lado, o mesmo solo.

A tradução do volume em questão, que ficou a cargo de Renata Dias Mundt, revela um trabalho cuidadoso, ainda que se possa discordar de uma ou outra opção específica ou da decisão geral de nivelar um tanto idiossincrasias linguísticas do alemão ou estilísticas de Lou Andreas-Salomé, para produzir um texto de chegada porventura mais familiar ao leitor brasileiro.

Um ponto alto do livro é certamente o seu aparato, a começar pelos utilíssimos índices onomástico e remissivo, presentes já no primeiro volume da série. O prefácio é assinado por Cornelia Pechota, especialista nas relações entre Rilke e Andreas-Salomé, radicada em Genebra, e traça um panorama altamente informativo sobre vida e obra da autora, evidenciando sua importância como uma das pioneiras da modernidade.

No posfácio, por sua vez, Nina Virgínia de Araújo Leite desenvolve leitura instigantíssima dos ensaios de Lou Andreas-Salomé a partir de O riso da Medusa, de Hélène Cixous. Na soma chega-se à conclusão de que, incorporando Sobre o tipo feminino e outros textos, a nossa biblioteca, sempre necessariamente pequena, torna-se um pouco mais invulgar.

Markus Lasch é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de São Paulo e membro coordenador do centro de pesquisa Outrarte: psicanálise entre ciência e arte.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você. 

Deixe o seu comentário

Novembro

TV Cult