Sartre: liberdade e compromisso

Sartre: liberdade e compromisso
O filósofo Jean-Paul Sartre (Reprodução)

 

De todas as relações que se possa estabelecer na filosofia de Sartre, talvez não se possa apontar alguma mais íntima do que aquela que se dá entre liberdade e engajamento. Essas duas noções e a relação entre elas estão na base da própria definição sartreana de existência e, nesse sentido, desempenham função nuclear na filosofia existencial. Para percebê-lo, basta lembrar como ambas podem ser vistas enquanto explicitação do dístico emblemático do existencialismo, seu verdadeiro lema: a existência precede a essência.

A recusa da concepção tradicional, segundo a qual o homem possuiria uma essência dada a priori (animal racional, por exemplo), implica a aceitação de que o ser humano primeiramente surge na sua radical espontaneidade e depois se define, se faz aquilo que vem a ser. O primado da existência significa precisamente esse ato de projetar-se, de lançar-se à frente de si mesmo, de fazer-se e de assumir-se no mundo por via da realização de alguma possibilidade. Tudo isso está contido na acepção de liberdade originária, espécie de grau zero da realidade humana entendida fundamentalmente como existência. Não se trata, como se pensava na tradição filosófica, de compreender a liberdade como uma faculdade humana, disposição ou capacidade para agir livremente. O caráter absolutamente originário da liberdade nos leva a entender que ela não é algo que o homem tenha, e sim algo que ele é. Ora, sendo antes de tudo liberdade, o homem não é propriamente nada além das possibilidades de ser. É isso que o distingue das coisas e dos animais: não poder ser concebido na sua integridade essencial antes que o processo contingente de existir o leve a assumir por si mesmo um projeto de existência que tentará realizar como um modo de ser no mundo.

Por isso, O ser e o nada, o tratado de ontologia fenomenológica que Sartre publica em 1943, elucida principalmente três noções centrais na filosofia da existência: possibilidade, projeto e contingência. Dizer que o homem é o ser dos possíveis significa pensá-lo a princípio unicamente como abertura a todas as possibilidades, já que não traz em si antecipadamente nenhuma determinação. Assumir livremente alguma dessas possibilidades significa projetar um modo de existir e projetar-se na existência, num tipo de experiência em que a realidade humana se define muito mais como futuro do que como passado ou presente. Essa projeção antecipatória de si mesmo implica que o homem vive, sobretudo, fora de si, à frente de si, vindo a ser aquilo que poderá fazer de si mesmo a partir de um projeto de existência. Ora, como o homem pode assumir qualquer possibilidade, já que não está determinado para alguma em particular, isso significa que todas são igualmente contingentes, isto é, nenhuma o atrai mais do que outra, não está necessariamente determinado a assumir alguma dentre elas.

Vê-se como a liberdade originária, tal como é concebida por Sartre, só pode realizar-se a partir da escolha radical de um projeto a ser assumido num mundo contingente. A fenomenologia da existência desenvolvida em O ser e o nada faz da liberdade um tema de ontologia e não de psicologia, porque a compreensão fundamental da realidade humana só pode acontecer em termos da elucidação de um processo, em que as condutas humanas, fenomenologicamente desvendadas, constituem-se progressivamente como elementos de revelação dessa peculiaridade: o homem não é algo dado como uma natureza, mas vem a ser aquilo que se faz no devir da existência. Assim, a filosofia da existência supõe uma atitude interrogativa que nos afasta de qualquer ideia, natural ou metafísica, que se possa colocar como pressuposto explicativo do que seja o homem.

Mas essa fenomenologia da existência só pode atingir o processo concreto de existir se a análise levar em conta as configurações efetivas de possibilidades em que se dá a escolha existencial pela qual o homem se faz projeto. Esse ajuste do projeto existencial a um dado contexto de possibilidades é definido como situação, outra das noções fundamentais que já aparece no tratado de ontologia fenomenológica. A situação é a demarcação concreta do exercício da liberdade, isto é, da escolha e do projeto. Por isso Sartre diz que a liberdade é sempre situada, e que a situação é a configuração real da abertura originária da realidade humana aos possíveis. É esse ajuste fenomenológico que faz com que a liberdade não seja uma categoria transcendental ou uma idéia reguladora, mas um exercício real de construção processual de si mesmo. É a consideração primordial do processo de existir que faz com que a liberdade, mesmo pensada como espontaneidade radical, não se exerça no vácuo, mas no denso universo de possibilidades, que não devem ser compreendidas simplesmente como princípios de ação, mas como que formando a teia complexa de tudo aquilo que devo afirmar e negar, aceitar e recusar, superar e evitar, transpor e contornar, na sucessão de atos concretos em que cada um se faz ser.

A essa variedade complexa que constitui o entorno mundano da subjetividade livre Sartre denomina facticidade. É algo que supera o sujeito porque cada um de nós, ao surgir no mundo, já encontra um mundo, isto é, um conjunto de fatos dados em que nos inserimos, mas que nos precede e nos transcende: família, sociedade, ambiente histórico, condição social etc. Desde fatores de ordem pessoal até condições gerais de ordem histórica, há todo um conjunto de fatos que constituem para cada sujeito a sua situação. Agir significa, em grande parte, reagir a tudo isso. E assim a liberdade é inseparável das condições concretas do seu exercício. Eis um ponto a propósito do qual é necessário enfatizar que o existencialismo sartreano, longe de propor uma liberdade que seria pura e simples fruição da espontaneidade da consciência, nos faz defrontar com o trabalho duro de vencer a adversidade, num enfrentamento difícil de tudo aquilo que temos de superar para realizar autenticamente um projeto livre de ser.

A noção de facticidade leva-nos ao engajamento ou ao compromisso. Diríamos que, primeiramente, não se trata tanto de assumir um compromisso quanto de reconhecer que estamos irremediavelmente comprometidos. E aqui a posição de Sartre faz eco ao que Pascal formula na sua famosa aposta: não se trata de escolher se apostamos ou não; estamos engajados e é a partir daí que se dá qualquer escolha. Como nascemos sempre num dado contexto real e concreto, já estamos, somente por isso, comprometidos com ele, isto é, com o mundo no qual temos de viver. Ainda que venha a optar pelo quietismo e pela indiferença, tais atitudes não deixam de representar a maneira pela qual respondo às solicitações do meu mundo, da minha época, da minha classe e, portanto, a forma como me comprometo com os problemas do meu tempo.

O primeiro texto em que essas questões aparecem explicitadas de modo diretamente histórico é Que é a literatura?, de 1947. Mas não é nesse livro, cujo tema é o engajamento do escritor, que tais questões surgem pela primeira vez, posto que já em O ser e o nada os problemas da relação entre liberdade e facticidade estavam presentes como indagações fundamentais. Ora, o compromisso é, por assim dizer, uma espécie de noção mediadora entre liberdade e facticidade, posto que representa de algum modo a decisão tomada a respeito de como devo lidar com os fatos. Assim, os elementos da facticidade, que pesam sobre mim com a força das determinações, não são irremediavelmente determinantes: tudo depende da conduta que cada um assume em relação a eles. Por isso Sartre insiste na contingência do mundo histórico; ninguém está predeterminado a qualquer coisa, por mais fortes que sejam os fatos que configuram uma situação. Eu sou aquilo que faço com o que fazem de mim. O contexto familiar, a condição de classe, a formação cultural, a herança histórica, tudo isso pesa sobre o indivíduo; mas esse indivíduo é sujeito de sua história e da História. Se tudo isso vier a determiná-lo, como se ele fosse passivo, é porque ele se terá feito passivo e determinado; terá sido uma escolha, porque, de tudo o que nos constitui, a única coisa que não podemos escolher é deixar de ser livres. Daí a célebre frase: o homem está condenado a ser livre. Isso significa que, por mais que procuremos mascarar a liberdade, nunca poderemos esconder de nós mesmos o movimento livre pelo qual nos disfarçamos com a máscara da determinação.

Ora, é um e o mesmo o movimento pelo qual alguém se coloca tal máscara e aquele pelo qual os outros a colocam nele. A opressão e a dominação econômico-política são os meios pelos quais os homens levam outros homens a assumirem a condição de coisa, a alienarem a própria humanidade. A partir de 1947, vai acentuando-se em Sartre a preocupação com a liberdade histórica, o que no contexto do capitalismo significa a preocupação com a alienação. Num primeiro momento, que vai até 1956, isso significou caminhar ao lado do PC francês, algo que representava muito mais uma aliança tática do que uma coincidência de pensamento. Depois da ruptura, marcada pela intervenção soviética na Hungria, seguiram-se as críticas ao Partido e ao marxismo oficial, que Sartre via como dogmático e mecanicista. Em 1960, a publicação de Questão de método esclarece, em pormenor, o que Sartre entende por esterilização doutrinal da Dialética entre os marxistas e a compatibilidade entre o existencialismo e o materialismo histórico, desde que este último seja entendido como o estabelecimento de uma relação verdadeiramente dialética entre subjetividade e história.

A partir daí, toda a vida de Sartre constituiu uma confluência entre o homem e a obra como raras vezes se pôde constatar. E isso aconteceu porque a figura do filósofo tornou-se uma espécie de encarnação do compromisso, sem que ele tivesse por isso de recuar um milímetro sequer em sua liberdade. A guerra da Argélia e o colonialismo, a condição do proletariado e a repressão, o imperialismo e a guerra do Vietnã, o racismo e a intolerância política: contra todas as desgraças que pontuaram a segunda metade do século 20, Sartre elevou a sua voz e exercitou sua escrita, na França e nos movimentos internacionais. Foi acusado de radicalismo e de inconse-qüência por aqueles que não souberam perceber que tudo isso não era senão a continuidade prática de um outro radicalismo, enunciado muito antes e ao qual nunca deixou de ser fiel: a liberdade radical e o engajamento completamente conseqüente.

Mas certamente o que está na raiz daquelas acusações é a incapacidade de perceber que, entre a liberdade existencial e a liberdade histórica, entre o projeto subjetivo e o compromisso objetivo, a continuidade se faz por via do substrato ético da filosofia de Sartre, algo que sempre esteve presente no seu pensamento e na sua ação, e que é absolutamente intrínseco ao rigorismo moral do seu existencialismo. Já na conferência de 1946, “O existencialismo é um humanismo”, esse rigorismo extremado se punha às claras por meio da insistência na relação entre a livre instituição dos valores imanentes à escolha e a responsabilidade aí inerente. O que então foi criticado como variante do subjetivismo já era a proposta de pensar a tensão entre o sujeito e a história, bem como a responsabilidade ética do agente histórico.

Essa tensão e essa responsabilidade ajudam-nos a compreender tudo aquilo que deixou perplexos os bem-pensantes, os dotados do “espírito de seriedade” e de outros atributos que constituem a má-fé, moral e intelectual. As passeatas, a distribuição de panfletos, os discursos em porta de fábrica, os jornais maoístas: a liberdade do compromisso, o compromisso da liberdade; o reconhecimento de que estamos engajados e de que é impossível não se comprometer com o seu tempo. A grande lição, que Sartre por convicção não aceitaria dar, mas que podemos extrair da sua conduta filosófica, ética e política, é que o indivíduo somente sai de sua particularidade abstrata para atingir a universalidade concreta do humano quando reconhece o lastro histórico que enraíza a subjetividade na generosidade.

Franklin Leopoldo e Silva
professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), autor de Bergson – Intuição e discurso filosófico (Ed. Loyola) e Descartes – A metafísica da modernidade (Ed. Moderna)

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