A liberdade do espectador

A liberdade do espectador
'Jimmy Paulette and Tabboo! in the bathroom', NYC, 1991; mostra de Nan Goldin foi cancelada de última hora em 2011, no RJ (Foto: Nan Goldin)

 

Este texto foi escrito um pouco antes da eclosão da pandemia de Covid-19. Embora agora talvez soe menos urgente, a questão da censura e da liberdade no campo artístico-cultural merece continuada atenção, pois mobiliza tanto as forças ultraconservadoras de direita quanto os gestos de vigilância e suspeita  moral promovidos por setores autoidentificados como progressistas.  No centro desse debate estão em jogo a noção de arte e a manipulação do medo, de diversas formas.

O que estamos enfrentando hoje no campo artístico e cultural pode ser visto como uma nova forma de censura, ou a noção de censura tornou-se insuficiente para dar conta dos fenômenos contemporâneos que colocam em risco a liberdade nesse campo?

Mesmo em países onde se esperaria uma separação consistente entre Estado e religião e onde o regime democrático deveria garantir convívio saudável entre a produção artística e a sociedade, tem sido frequente a desprogramação, o cancelamento de exposições e eventos culturais. Blasfêmia, linguajar inadequado, atentado ao pudor são noções que vêm comparecendo de maneira insistente nos debates públicos em torno de exposições, espetáculos, filmes e livros.

A vigilância seletiva e falsamente pudica dos algoritmos sobre imagens de nudez e nus artísticos nas redes sociais já levou à suspensão de usuários que postaram reproduções de A liberdade guiando o povo, de Delacroix, da estátua da Pequena Sereia, símbolo de Copenhague, dos yanomami em fotos de Claudia Andujar e de trabalhos de Anna Bella Geiger. Acrescente-se à combinação tóxica entre religião, política e tecnologias digitais o fato de os novos representantes da direita populista munirem-se de modo bastante eficiente de estratégias de assédio jurídico que visam à criminalização de exposições, curadorias, instituições e artistas.

O papel contemporâneo das imagens artísticas não pode ser entendido sem a compreensão de sua inserção na cultura visual e nas instituições que regulam e determinam os modos de ver e a margem de liberdade do espectador. Vivemos uma época de produção de fobias sociais manipuladas por projetos de poder autoritário. Daí o incentivo à repulsa e até criminalização de imagens que não atendam aos padrões de uma moralidade instrumentalizada por interesses políticos e financeiros. O espectador fóbico que os fanatismos produzem está condenado a ficar aprisionado num regime de sentido unívoco, cego para os muitos sentidos e interpretações de uma mesma imagem. Quando a dúvida sobre o que está sendo visto é tomada de assalto por certezas fóbicas, recai-se num campo fechado de significações e de empobrecimento da experiência do espectador. Para que uma sociedade promova a transformação da arte em crime, é antes necessário reduzi-la enquanto fenômeno, suspender a dúvida sobre seu sentido, dogmatizar sua recepção. A lógica jurídica adotada pelo fanatismo político-religioso reduz a arte a um campo potencial de infrações. Assim também o incentivo ao medo das imagens artísticas tende a submeter o regime estético e cultural a uma determinação jurídico-religiosa obscurantista.

'Nan and Brian in Bed', NYC. 1983 (Foto Nan Goldin)
‘Nan and Brian in Bed’, NYC. 1983 (Foto Nan Goldin)

Por tudo isso, pode-se dizer, que enfrentamos uma crise do estatuto da imagem e da arte na sociedade. Hoje a imagem artística não existe e não circula sem uma consideração implícita da esfera legal. Um ponto fundamental nesse debate é que a judicialização da arte age em consonância com a lógica publicitária de administração do visível. É um bom exemplo o cancelamento em 2011, por parte do Oi Futuro, da exposição de Nan Goldin, com curadoria de Ligia Canongia. À época do cancelamento de última hora, a instituição justificou sua decisão alegando conteúdo inapropriado para menores. A exposição, que já estava em vias de ser inaugurada, acabou sendo transferida para o MAR – Museu de Arte do Rio, que inclui em suas mostras sinalização indicativa de faixa etária. Ou seja, o Oi Futuro manteve o patrocínio, mas não aceitou que a exposição ocorresse num prédio institucional da companhia de telefonia a que pertence. Mais recentemente, uma exposição individual programada para o Centro Cultural dos Correios de Niterói justificou a exclusão de duas obras afirmando que se tratavam de “imagens sem aderência aos seus princípios de gestão cultural”. Em 2019, a Caixa Cultural do Recife cancelou a temporada de um espetáculo da companhia Clowns de Shakespeare inspirado em livro de Eduardo Galeano. Dias após o cancelamento, a Caixa alegou descumprimento de uma cláusula do contrato segundo a qual os artistas seriam obrigados a “zelar pela boa imagem dos patrocinadores, não fazendo referências públicas de caráter negativo ou pejorativo”.

Essa é a face visível da censura; a face menos visível diz respeito à autocensura, que tenderá a afetar cada vez mais o funcionamento do campo artístico. As instituições passarão a evitar incluir em sua programação exposições e obras que possam expô-las a processos judiciais e escândalos midiáticos. À medida que se tornam vulneráveis a processos onerosos e a polêmicas que veem como prejudiciais à imagem de suas marcas patrocinadoras, as instituições tenderão a introjetar a autocensura nas escolhas curatoriais e na gestão de seus espaços expositivos.

A resposta a esse fenômeno perigoso e preocupante tem se baseado frequentemente no direito à liberdade de expressão. Esse é o argumento norte-americano que está na base da sua compreensão de Estado laico, a partir do direito à liberdade individual. No entanto, o mesmo argumento, de defesa da liberdade individual, tem respaldado manifestações explicitamente fascistas, racistas e discriminatórias. Estas acabam por ser naturalizadas, pois reduzidas à condição de “opinião” ou mera expressão de perspectivas subjetivas que devem ser toleradas numa democracia. Não faltam “memes” e charges abordando com sarcasmo esse nó contraditório que se nos emaranha. O argumento da liberdade de expressão e o modelo de laicidade norte-americano têm nos enredado em um paradoxo que precisa ser enfrentado.

'Yogo Putting on Powder', Bangkok, 1992 (Foto Nan Goldin)
‘Yogo Putting on Powder’, Bangkok, 1992 (Foto Nan Goldin)

Em palestras recentes sobre o assunto, o francês Régis Debray chama atenção para outros modelos de Estado laico e alerta para o fato de a laicidade ter se tornado um termo passe-partout que precisa ser novamente praticado para readquirir densidade. A laicidade não é a religião dos que não têm religião, nem é um instrumento antirreligioso; ela é, diz Régis Debray, “uma forma de proteger a coisa pública da intrusão de imperativos particulares, notavelmente os religiosos”. Na paisagem mundial, a ascensão de novos governos movidos por uma compreensão não laica do Estado ameaça os modos de organização social que conhecemos. Diante da inexistência de uma definição jurídica de laicidade, Debray retoma a formulação do deputado socialista André Phillip, para quem ela seria “um quadro capaz de fornecer os meios de fazer coexistirem num mesmo território indivíduos que não partilham as mesmas convicções, em vez de simplesmente justapô-los em um mosaico de comunidades fechadas em si mesmas e mutuamente excludentes”.

O modelo de laicidade norte-americano, fundamentado na defesa da liberdade individual, não estaria induzindo mais à formação de comunidades fechadas em si mesmas e mutuamente excludentes – que na melhor hipótese apenas se toleram – do que à construção de um contexto em que possam coexistir e conviver democrática e civilizadamente grupos que não compartilham as mesmas crenças?

O Brasil

O Estado laico não é anti-religioso ou ateísta, nem pretende converter seus cidadãos à laicidade, tampouco deveria atuar como um grande supermercado onde os mais diversos tipos de crenças e atitudes – das mais pacificistas às mais violentas e excludentes – seriam adquiridos e consumidos como produtos. O Estado laico deve ser capaz de proteger a sociedade dos abusos do poder privado e afastar da organização da coisa pública e política as interferências da religião. Renunciar à laicidade, como temos visto ocorrer no Brasil, significa entregar a regulação das relações comunitárias à sociedade civil, com tudo o que isso implica de proselitismo, perseguições e oportunismos incontroláveis. No Brasil a Igreja Católica teve influência determinante sobre decisões fundamentais como instituição do divórcio e descriminalização do aborto, e o privilégio dado ao catolicismo sobre as demais religiões nunca foi totalmente dissolvido – na própria Constituição de 1988 consta a expressão “sob a proteção de Deus” – a partir dos anos oitenta as relações entre Estado e religião tornam-se mais preocupantes com a ascensão dos parlamentares evangélicos, com alto poder de barganha e de interferências em diversos assuntos e decisões.

'Trixie on the cot', New York City. 1979 (Foto Nan Goldin)
‘Trixie on the cot’, New York City. 1979 (Foto Nan Goldin)

Se a arte contemporânea conseguiu durante algum tempo proteger-se dos embates com a sociedade, crenças e valores religiosos, amparando-se na autonomia estética, ludicidade, jogo e interatividade, a judicialização moralizante recoloca em jogo a capacidade do setor artístico de resistir à desdemocratização. Pede-se aos setores progressistas e aos humanistas que tolerem arroubos de racismo que a lei enquadra como crime, enquanto a intolerância em relação aos conteúdos considerados blasfemos vem se tornando argumento juridicamente válido para embasar os censores, sejam eles prefeitos, secretários de cultura ou membros do Judiciário e do Executivo.

As imagens artísticas hoje ocupam o centro de uma disputa que desafia a compreensão das estratégias de poder e nossa capacidade de reagir ao sequestro cultural. Daí a necessidade de pensar imagens em contato com o tecido político de nossa época. É importante assegurar os direitos dos espectadores, dos críticos, dos curadores e das instituições e, diante da perspectiva de embotamento cultural da sociedade, pôr em prática estratégias de reação à interdição e à criminalização da arte. As novas formas de ataque às artes avançam sobre nosso direito de escolha, condicionando a recepção dos fenômenos artísticos e impedindo a formação do olhar autônomo. O que está em jogo não é apenas a liberdade autoral, mas nosso direito de autodeterminação enquanto espectadores e fruidores de arte. Por fim, cabe lembrar que o direito à fruição da arte está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Laura Erber é professora visitante da Universidade de Copenhague e diretora da Zazie Edições.


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